É comum haver notícias sobre crianças que foram abusadas sexualmente. Na semana passada, «um homem de 56 anos foi detido por ser suspeito de “cerca de 600 crimes” de abuso sexual de crianças, praticados desde 1994», dois dias antes tinha sido noticiada a «pena suspensa para homem que abusou sexualmente da neta de 12 anos em Guimarães». São notícias que são partilhadas nas redes sociais e que, muitas vezes, geram comentários e reações variadas, desde indignação à exigência de justiça popular.
No entanto, a cobertura nacional é uma cobertura pontual, exclusiva a cada caso que ocorre. São abordados os pormenores do que aconteceu, mas não há uma abordagem que contextualize e enquadre o que estes casos têm em comum.
A verdade é que, apesar de todas as notícias publicadas frequentemente, a violência sexual continua a ser um tema tabu. Não é um assunto conversado e há muita desinformação, o que contribui para que mais crianças sejam abusadas sexualmente. Que não haja ilusões: este silêncio apenas beneficia os abusadores - e são os próprios que o dizem. Vários afirmam que o maior “favor” que lhes podemos fazer é não falar sobre violência sexual, o que cria um ambiente de falsa sensação de segurança para as crianças. Precisamos de quebrar urgentemente este ciclo promotor de silêncio.
Nesse sentido, aproveito o dia 18 de novembro, assinalado como o Dia Europeu para a Proteção das Crianças Contra a Exploração Sexual e o Abuso Sexual, para apresentar alguns aspectos que são comuns à maioria dos casos:
Não são crimes pontuais: uma em cada cinco crianças é vítima
Na Europa, uma em cada cinco crianças é, foi ou será vítima de alguma forma de violência sexual. Ao contrário do que algumas pessoas acreditam, esta não é uma realidade que acontece raramente e também não é uma realidade distante. Se pensarmos numa turma com 30 crianças, seis delas poderão ser abusadas sexualmente. São seis crianças vitimadas, a maioria das quais não irá partilhar com nenhum adulto de referência o que lhe aconteceu e que só procurará apoio em idade adulta. Se considerarmos que uma escola pode ter 20 ou mais turmas, podemos ver como esta realidade é muito mais alarmante do que possa parecer inicialmente.
A maioria dos abusadores são pessoas próximas da vítima
Juntamente com a desinformação, existem vários mitos que contribuem para a não identificação de casos de abuso sexual na infância e para a manutenção do silêncio das vítimas. Um dos mitos é que os abusadores são completos estranhos à criança, o que não é verdade. A realidade diz-nos que em 70% a 85% dos casos o abusador conhecia e mantinha uma relação de proximidade com as vítimas. A maioria dos casos ocorre na própria família (incesto) e nos restantes são pessoas em quem confiamos (vizinhos, professores, treinadores, padres, etc).
A maioria dos abusadores são homens
A maioria dos abusadores são homens que conhecem a criança. Os familiares podem ter uma relação privilegiada ou de maior acesso à criança. Nos outros casos trabalham de forma a conseguir aproximar-se das crianças e da sua família sem levantar suspeitas, recorrendo a diferentes estratégias de manipulação e sedução.
As mulheres também podem abusar de homens e rapazes, como podem abusar de outras mulheres e raparigas - sobre isso não há dúvidas. No entanto, representam a minoria dos casos denunciados. No Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2019, 95,2% dos arguidos era do sexo masculino e 4,8% do sexo feminino.
Crimes não denunciados
O Conselho da Europa indica que cerca de 1/3 das crianças vitimadas não partilham com ninguém o que lhes aconteceu. No entanto, há indicadores que apontam para números ainda mais baixos quando falamos de partilhas e denúncias. Quando uma criança faz uma partilha ou uma tentativa de partilha, pode não saber como fazê-lo ou o adulto pode não reconhecê-la enquanto tal. Há vários casos que passam despercebidos e que não são identificados como violência sexual.
Apesar dos números alarmantes, em Portugal, tal como em outros países, a esmagadora maioria deste tipo de crimes não é denunciada às autoridades. Estamos a falar de cerca de 90% do casos que não chegam ao conhecimento da polícia.
Experiência traumática
A violência sexual é uma experiência potencialmente traumática que pode ter consequências devastadoras na vida da criança e no seu desenvolvimento. Estas consequências podem ter um impacto disruptivo na criança, que poderá depois tomá-las como suas enquanto cresce, e desenvolver um quadro de Perturbação de Stress Pós-Traumático (PSPT). Há estudos comparativos que comparam sobreviventes de guerra e sobreviventes de violência sexual e concluem que a sintomatologia de PSPT é comum, diferenciando-se somente nos desencadeadores (triggers).
A responsabilidade é unicamente do abusador
Uma criança não pode ser responsabilizada por ter sido vítima de violência sexual. Do mesmo modo que uma menina ou um menino não pode consentir quaisquer tipo de contactos sexualizados com um adulto. O abusador é sempre o único responsável.
No entanto, há quem acredite que uma criança pode seduzir um adulto e que pode ser co-responsabilizada. Este tipo de crenças estão erradas e contribuem para alimentar a cultura de responsabilização das vítimas e de descrença das mesmas. Uma criança vítima de violência sexual, e que compreende desde cedo que o contexto onde está inserida não é recetivo à partilha de histórias de abuso, não vai encontrar a segurança necessária para tomar esse passo.
Não é sexo, é crime
Violência sexual não é uma experiência natural do crescimento humano, nem é parte integrante do desenvolvimento sexual. A violência sexual é crime e uma violação grave dos direitos humanos das crianças.
Perpetuar a ideia errada de que a violência sexual é o mesmo que uma experiência sexual que correu mal ou “menos bem”, contribui para que as vítimas tenham dificuldade em reconhecer a sua história de abuso. Prova disso é ouvirmos testemunhos de homens e mulheres, vitimados na infância, que dizem “a minha primeira vez foi com o meu tio quando eu tinha 6 anos” ou “com 8 anos eu era já uma criança muito sexual”.
Meninos e rapazes também são vítimas
A violência sexual afeta principalmente mulheres e meninas, mas também afeta homens e rapazes. Um em cada seis homens é vítima antes dos 18 anos. Este é um grande tabu dentro de outro tabu, e por isso não é assim tão surpreendente que apenas 16% dos homens que foram vítimas na infância, reconhece ter sido vítima. Precisamos de desocultar esta realidade também.
É preciso quebrar o silêncio
Há quase quatro anos criei a associação Quebrar o Silêncio para prestar apoio especializado a homens e rapazes que foram abusados sexualmente, tal como eu fui. O meu objectivo é que mais nenhum menino cresça, como eu cresci, a sofrer em silêncio com o impacto traumático daquelas experiências. O meu objectivo é que mais nenhum homem sobrevivente de violência sexual continue a acreditar que está sozinho e que foi um caso raro. Não foi, não somos. A verdade é que 1 em cada 6 homens é vítima de alguma forma de violência sexual e a grande maioria dos casos ocorre na infância.
Sejam meninos ou meninas, precisamos de abrir um debate público informativo e construtivo para combater os crimes sexuais contra crianças. O dia 18 de novembro é acima de tudo um dia simbólico e mais uma oportunidade para informar e sensibilizar, mas não é suficiente para abranger todas as questões relativas à violência sexual contra crianças. Por ser um tema complexo, é necessário que esta efeméride seja prolongada durante todo o ano. Para que tal aconteça, dependerá de cada um e de cada uma de nós. Enquanto pessoas adultas, somos nós quem tem a obrigação de garantir a protecção e a segurança das crianças.
Por último, se foi vítima de violência sexual na infância ou em idade adulta, contacte a Quebrar o Silêncio através do email apoio@quebrarosilencio.pt ou da Linha de Apoio 910 846 589. Não está sozinho.
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