Mas quem é afinal Jessica Bennet e porque raio é chamada a um artigo sobre os Óscares se aparentemente nada a liga de forma inequívoca ao glamoroso mundo da sétima arte? Jessica Bennet é a editora de género do New York Times e este ano estreou-se pela primeira vez como membro da equipa que fez o acompanhamento ao minuto para o jornal americano lido em todo o mundo. Ao seu lado teve uma repórter de cultura experiente neste tipo de reportagens, Melena Ryzik, e um crítico de cinema, Wesley Morris. Bennet não esteve nesta equipa a título de curiosidade ou por acaso - como era expectável foi muito de género que se falou na 90ª cerimónia de entrega dos Óscares e à boleia do género falou-se de todo o tipo de discriminação num evento que quase se pode descrever como desenhado com régua e esquadro para endireitar o mundo numa só noite.
Começando por um ponto prévio obrigatório a todos os que são menos familiarizados com a indústria do cinema, essa esmagadora maioria de nós que ‘apenas’ gosta de ver filmes. Os Óscares são, sempre foram e são hoje mais do que nunca, um momento político. Desde a escolha dos filmes à entrega da ambicionada estatueta, a costura política está sempre lá, urdida ponto por ponto, desde a escolha dos nomeados até ao prémio final em cada uma das categorias. Algumas categorias, nomeadamente as mais técnicas, serão eminentemente cinéfilas, mas ainda assim servem também de moeda de troca para filmes por vezes injustiçados nas categorias ditas grandes ou de sinal para as opções que a Academia decidiu assumir nessa edição.
Portanto, aquilo que nos convidam a ver quando nos tornamos espetadores do que se passa no Dolby Theater - e ainda antes, na rampa de lançamento dos vários prémios que vão sendo entregues até aos Óscares - é a uma espécie de cerimonial, mais que a própria cerimónia, onde vamos assistir a uma declaração política, cultural, económica - mais uma do que outras dependendo dos anos.
Ora este é o ano #MeToo. O Ano Time’s Up. O ano Weinstein, o produtor que teve Hollywood aos seus pés durante décadas até há menos de seis meses ter, enfim, sido exposto nas inúmeras perversões de poder com que assediou várias, demasiadas mulheres. Seria impossível que nesta madrugada este não fosse “o” tema.
O problema - ou vamos antes chamar-lhe o desafio - é que este tema, inequivocamente obrigatório por ser protagonizado pela própria indústria que hoje se perfilou na cerimónia dos Óscares, não podia deixar esquecer outros temas, legados igualmente inequívocos da arena política que é o evento. Como, por exemplo, a discriminação racial - afinal foi há apenas dois anos que se discutiu os #oscarsowhite. Ou ainda, a imigração - afinal foi há apenas um ano que Trump foi eleito e declarou quase simultaneamente “guerra” a Hollywood e o imperativo de um muro na fronteira com o México.
O problema - ou o desafio - era como é que Hollywood queria contar esta história sobre si própria, que é afinal o roteiro de qualquer edição dos Óscares.
Recapitulando: estes Óscares tinham de conseguir dizer o que precisava ser dito sobre assédio sem esquecer, sob pena de reabrir feridas, o tema da discriminação racial e mantendo em agenda o tema da imigração numa comunidade, como a das artes, constituída - e enriquecida - pelas suas múltiplas nacionalidades.
E isso foi conseguido. Pagou-se um preço - provavelmente assistimos a um dos eventos mais absolutamente previsíveis de que há memória - mas talvez fosse difícil ser diferente. Porque existia efetivamente uma necessidade de deixar claro que Hollywood não é Harvey Weinstein e que o cinema não perdeu voz no que toca a fazer a sua parte nas “grandes mudanças do mundo”.
“Vamos lembrar-nos deste ano como aquele em que os homens lixaram as coisas de tal maneira que as mulheres começaram a sair com peixes”
O que não se conseguiu foi fazer tudo isto e ao mesmo tempo ser brilhante, irreverente, inesquecível. Jimmy Kimmel que, há um ano, tinha mostrado aos críticos que afinal tinha sido uma boa escolha - numa 89ª edição dos Óscares onde o impensável aconteceu e se trocou o nome do grande vencedor da noite no final da cerimónia - foi uma sombra dessa performance na edição deste ano. Nem Matt Damon ajudou a abrilhantar. Ainda que sobrem uma ou duas frases que fazem sorrir - e uma delas assenta que nem uma luva no desfecho da noite com o Óscar para melhor filme entregue a “A forma da água” e o de melhor realizador a Guilhermo Del Toro [“Vamos lembrar-nos deste ano como aquele em que os homens lixaram as coisas de tal maneira que as mulheres começaram a sair com peixes”].
Os Óscares foram tão corretamente irrepreensíveis que nem a revisão da gaffe histórica da edição anterior ficou esquecida. Recordemo-nos: dois monstros sagrados de Hollywood saíram chamuscados em 2017 pela troca de envelopes no anúncio do melhor filme. Nada mais, nada menos que Warren Beaty e Faye Duanaway. O que se faz em 2018? Leva-se de novo o mesmo par ao mesmo momento, mostra-se que a Academia não falha aos seus (o que só fica bem, diga-se de passagem) e à frente dos milhões que sempre seguem a cerimónia faz-se o que tem de ser feito: corrige-se a realidade, emenda-se a mão, coloca-se o mundo nos eitos.
Esse foi o propósito de toda esta edição: como se escreve no título deste artigo. Uma noite mágica em que as mulheres não são mais assediadas e menorizadas (vamos lembrar-nos, como aliás Jimmy Kimmel fez na intervenção de abertura que não é só de assédio que se trata, é também de igualdade que se trata; a igualdade que por exemplo não existe no salário de dois atores, mulher e homem, no mesmo filme que usou como exemplo, Michelle Williams/Mark Wahlberg, protagonistas de “Todo o dinheiro do Mundo”)
Também uma noite mágica em que as minorias são tratadas de igual, em que os imigrantes são reconhecidos como membros de pleno direito da comunidade.
Uma noite quase tão mágica que até o grande tabu que é a soma das palavras “idade” e “mulheres” foi um bocadinho corrigido com Sandra Bullock a levar o tema ao palco e a ser aplaudida - que é uma espécie de confirmação de que o problema abordado “já” está a ser resolvido. E na realidade a edição deste ano até apontou nesse sentido, como observou Jessica Bennett na sua estreia como comentadora de Óscares: a média de idades das nomeadas para o Óscar de melhor atriz secundária é 55 anos, sendo Mary J. Blige a mais nova com 47 anos. Pode ter sido coincidência, mas pode ser mesmo uma mudança.
São apenas exemplos dos muitos sinais que foram dados - e mais houve. Como a exclusão de Casey Affleck (acusado de assédio em 2010) da apresentação do Óscar para a melhor atriz, sendo o prémio pela primeira vez apresentado por duas mulheres, Jodie Foster e Jennifer Lawrence. Ou o momento totalmente declarativo da noite, aquele em que subiram ao palco Ashely Judd, Salma Hayeck e Annabella Sciorra, três atrizes que romperam o silêncio sobre o assédio de que foram alvo por parte de Harvey Weinstein e um coletivo de ativistas.
A noite das mulheres que não são fáceis de gostar
E correu tudo bem e estava tudo certo. O problema é que a noite já acabou, o Dolby Theater já se esvaziou de toda a gente bem-intencionada e convicta de que é mesmo preciso mudar o estado das coisas - e não é ironia, a maioria pensará mesmo assim - e amanhã é um novo dia. Um novo dia para mulheres, homens, transgéneros, afro-americanos, mexicanos, russos (sim, também houve uma mensagem política para a Rússia com a escolha de “Ícaro” como melhor documentário), demasiado novos, demasiado velhos, humanos em geral nas suas diversas forças e fraquezas.
Um novo dia em que a maior parte do que está errado, continuará errado e assim será por muitos dias. A única maneira de fazer essa mudança, como em todas as mudanças que não são cosméticas, é mudar todos os dias um bocadinho, mesmo que um grão de areia, e não deixar as magníficas intenções guardadas num guião que há de ser escrito em 2019, mais ou menos por esta altura, quando todos se voltarem a reunir ali, no Dolby Theater, e a partir dali mandarem mensagens à América primeiro, e ao mundo.
Talvez por isso o discurso de Frances McDormand, a vencedora do Óscar para a melhor atriz pela sua interpretação em “Três cartazes à beira da estrada”, tenha sido ainda mais arrebatador do que já se poderia esperar. Subiu ao palco como uma qualquer personagem dos seus filmes - melhor, como esta personagem que lhe deu o Óscar. Uma daquelas mulheres que, como sublinhou Jessica Bennett, a editora de género do New York Times, não são fáceis de gostar ou imediatamente “gostáveis” e “simpáticas”. Pelo contrário, “são complicadas, confusas, zangadas e mais qualquer coisa”. Foi essa mulher, que depois de agradecer o Óscar, depois de ter dito que queria ganhar perspetiva, pousando a estatueta no chão e pedindo a todas as mulheres nomeadas para se levantarem na sala, foi essa mulher, dizíamos, que falou do dia seguinte. “Olhem à vossa volta, senhoras e senhores, todas temos histórias para contar que precisamos de financiar”, disse naquele mesmo tom rude. “Não venham falar sobre isso hoje na festa, convidem-nos para as apresentar no vosso escritório, ou no nosso, onde vos der mais jeito”.
Não sairia de palco sem deixar muitas cabeças a pensar em duas palavras, aquelas que disse expressamente lhes querer deixar: “Inclusion ride”. Uma cláusula de inclusão, uma proposta (?) para que os contratos possam contemplar quotas ou definir condições que assegurem a diversidade, racial e de género, que tanto se defendeu e proclamou ao longo da 90ª cerimónia dos Óscares, algo a ser exigido por quem pode, os atores e realizadores de primeira linha cuja voz é decisiva para um projeto avançar ou não.
[Frances foi tão boa que numa das melhores tiradas da noite Jimmy Kimmel dizia que ela devia receber um Emmy pelo discurso nos Óscares].
Esta madrugada Hollywood quis mostrar que está do lado certo da História. O dia - e os dias - seguinte mostrará se assim é ou se no futuro esta edição será lembrada por ser aquela em que Mark Bridges, vencedor do Óscar para o melhor guarda-roupa pelo filme "A Linha Fantasma", ganhou também um Jet Ski pelo discurso mais curto de vitória.
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