O facto de ser presidente da Acreditar e presidente da Childhood Cancer International dá-me uma perspectiva dramaticamente global do que é o mundo das crianças / adolescentes / jovens adultos com cancro. As condições económicas ou sociais são diferentes, a língua é diferente, a cultura é diferente. Mas uma criança com cancro é sempre uma violência para uns Pais, ou mesmo para uma comunidade.
A nível nacional, a COVID – essa palavra maldita que invadiu todos os cantos da nossa vida – fragilizou um tecido já de si débil. Ser-se criança com cancro ou ser-se pai / mãe de uma criança com cancro já era tarefa humanamente desafiante. Em cima da desestruturação emocional inerente há tudo o resto: o medo de ir ao hospital, a escola à distância que não funciona, as dificuldades económicas ou o desemprego, a angústia de viver com uma criança doente em casa, jovens presos a um confinamento que protege o corpo, mas que corrói a alma. E quantos diagnósticos ficaram por fazer?
Por outro lado, o nosso compromisso não é só com o presente destas crianças ou jovens, mas com o seu futuro. Porém, se a escola à distância não funciona, como é que eles aprendem? Talvez valha a pena revisitar o artigo que a Jessica Arez escreveu neste espaço no mês passado, em que fala do R., do A. e da C., três casos reais mas que são, também, o somatório de todas as crianças ou jovens que querem aprender e a quem o Estado não dá resposta cabal.
A COVID dificultou, mas não foi causa única da fragilização do tecido. Os problemas dos registos oncológicos nacionais parecem não resolver-se, os sobreviventes continuam sem consultas de acompanhamento e batem a uma porta que não se abre quando querem comprar uma casa; para além disso, o plano oncológico nacional é omisso quanto à oncologia pediátrica e, para o IPO de Lisboa, a pediatria acaba aos 16 anos.
Numa altura em que a Europa desenvolve um plano para combater o cancro; numa altura em que vários países da Europa já aprovaram legislação sobre o esquecimento, era altura de, em Portugal, se fazer mais – e não é preciso muito mais para se fazer muito.
A Childhood Cancer International (CCI) é uma confederação de associações de Pais / doentes, de que a Acreditar faz parte. Temos mais de 170 membros espalhados por mais de 90 países em (quase) todos os continentes. E temos, como disse acima, um olhar dramaticamente global sobre o estado da oncologia pediátrica no mundo: estimam-se, para 2020, cerca de 413.000 crianças com cancro, diagnosticadas e não diagnosticadas. Destas, cerca de 328.00 não sobreviverão. Se nada se fizer, nos próximos 30 anos morrerão 11 milhões de crianças em todo o mundo, vítimas de cancro. Olhamos para o mundo. O que é preciso fazer para melhorar esta estatística terrível? Onde temos de investir para cumprir o objectivo definido pelo Global Initiative for Childhood Cancer (um projecto liderado pela OMS) de termos uma taxa de sobrevivência global de 60% em 2030 e, com isso salvarmos 1 milhão de vidas?
- Boas políticas governamentais, incluindo cobertura universal dos cuidados de saúde;
- Diagnóstico oportuno e preciso;
- Tratamentos adequados;
- Atendimento multidisciplinar;
- Cuidados paliativos e de suporte;
- Apoio familiar;
- Pessoal de saúde qualificado;
- Medicamentos essenciais disponíveis e acessíveis;
- Registos oncológicos;
- Reabilitação e reintegração dos sobreviventes.
Esta é a visão global do que é necessário para uma sobrevivência cada vez maior e melhor. Numa visão estatística simples, mas que não foge muito da realidade, nos países mais desenvolvidos ocorrem 20% dos casos, com 80% de sobrevivência; nos países menos desenvolvidos (África, por exemplo) ocorrem 80% dos casos com 20% de sobrevivência. A estatística não deve ofuscar-nos da realidade: por trás de cada um destes números ou indicadores está o rosto de uma criança cujo futuro foi hipotecado; está o rosto de uns Pais angustiados. Está o rosto de uma comunidade que ficou mais pobre.
Regresso a Portugal. Das 10 áreas listadas acima, algumas se aplicarão ao nosso país; é nelas que deveremos apostar para garantir que os nossos doentes, família e sobreviventes são bem acompanhados com vista a uma sobrevivência maior e melhor. Mas é preciso que as políticas governamentais não se esqueçam, também, da saúde financeira das associações que fazem o que o Estado não faz – ou faz pior. Associações, como a Acreditar, cujos apoios de particulares diminuíram brutalmente, ao mesmo tempo que aumentavam – de uma forma igualmente brutal – os apoios financeiros que damos às famílias confrontadas com um filho com cancro. Famílias que têm dificuldade em viver acima do limiar da indigência ou que não podem apostar na educação dos filhos, porque não há dinheiro para escolas ou universidades.
Desejo a todos os que me lêem o melhor Natal possível e um Bom Ano Novo. Que em cada um de nós mantenha acesa a vela da esperança em dias melhores; quem em cada presépio, em cada árvore de Natal ou em cada tradição consigamos ver o reflexo do que nos motiva: servir as crianças / jovens com cancro e as suas famílias.
A Acreditar existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional, logístico, social, entre outros. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias. A promoção de mais investigação em oncologia pediátrica é uma das preocupações a que mais recentemente se dedica. O que a Acreditar faz há 26 anos - minimizar o impacto da doença oncológica na criança e na sua família - é ainda mais premente agora em tempos de crise pandémica.
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