Habituados ao Perigo

António Moura dos Santos
António Moura dos Santos

“Tudo o que é demais enjoa”, costuma dizer-se. A expressão é empregue para advertir para os perigos da habituação a certas coisas de que gostamos, de como a sua fruição ou uso frugal é a chave para que não nos fartemos delas.

Mas os riscos da familiaridade excessiva talvez possam não circunscrever-se meramente às nossas paixões e gostos. O que é perigoso pode deixar de parecê-lo quando a ele nos habituamos.

Ao fim de quatro meses sob o jugo da pandemia da covid-19, é natural que o medo e a incerteza que repentinamente se abateram sobre as nossas vidas tenham começado a dissipar-se com o tempo, porque, lá está, nos habituámos a viver sob as novas circunstâncias.

No entanto, é crucial sublinhar que não é porque algo deixa de “parecer” perigoso que deixa de “ser” perigoso. E esse parece ser um dos maiores desafios que as autoridades de saúde têm de enfrentar neste momento.

Depois de forçar as pessoas ao confinamento súbito pela sua própria segurança, o passo seguinte foi pedir-lhes para voltar paulatinamente a recuperar alguns hábitos de vida pré-pandemia, a bem do funcionamento da economia e da sociedade em si.

Esse processo, porém, não tem sido linear, e vão somando-se casos de violação das mais elementares regras de segurança sanitária. O mais recente reporta ao Instituto Politécnico da Guarda, forçado a suspender os exames presenciais nas suas instalações. A razão? Segundo a instituição, foram festas de estudantes à revelia das normas, que resultaram em várias infeções.

Episódios como estes têm-se repetido, e não apenas por cá. Em Inglaterra, por exemplo, deu-se ontem a reabertura daquela que é uma das maiores instituições sociais — e económicas, diga-se — do país: os pubs e os bares. Como consequência, no Soho, em Londres, um dos bairros da “movida” londrina, registou-se uma enchente de gente que, como reportou um polícia que esteve de serviço, foi incapaz de cumprir o distanciamento social por se encontrar embriagada.

Casos como estes são extremamente sensíveis nesta fase:

  • Primeiro, porque se cai no erro de tomar a parte pelo todo. Não só o que se passou em Londres foi uma exceção face à abertura ordeira de pubs e bares um pouco por toda a Inglaterra, como, por exemplo, por cá, corre-se o risco de diabolizar os “jovens” como irresponsáveis quando é apenas uma minoria a organizar ajuntamentos ilegais.
  • Segundo, porque mesmo quando considerando quem tem prevaricado, é preciso ter em conta que a restrição de liberdades não pode ocorrer indefinidamente, já que as pessoas começam a cansar-se de viver privadas. Se o confinamento pode ter sido necessário, os excessos que se registam podem ser uma consequência do mesmo.

Tem sido repetido por todos os responsáveis de saúde que ainda não estamos nem perto de chegar ao fim desta pandemia, de que isto é uma maratona e não um sprint. As maratonas, porém, também cansam, e o esforço tem de ser doseado.

Fazer essa maratona respeitando as liberdades individuais mas protegendo em simultâneo o coletivo: esse é não só o objetivo, mas é também um desafio enorme em democracia.

Para que conseguimos atingir essa meta, precisamos de olhar para outras realidades e pensar em estratégias sociais que nos ajudem a viver com as restrições necessárias à saúde pública sem perdermos de vista que todo o esforço feito até então foi justamente o necessário para podermos ter a nossa vida “normal” de volta.

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