O que aconteceu com o voto dos emigrantes portugueses?
Esta quarta-feira, esperava-se que 'A' notícia fosse a distribuição dos mandatos a votos pelos emigrantes portugueses na Europa e fora do continente europeu. No entanto, depois de uma distribuição sem surpresas — dois lugares para o Partido Socialista que vai, assim, ter 119 deputados nos próximos quatro anos, e dois para o Partido Social Democrata, que fica assim com um total de 73 lugares no Parlamento —, 'A' notícia não foram os os votos que contaram, mas sim os que foram 'deitados ao lixo'.
Depois de um período com várias queixas de emigrantes que afirmaram não ter conseguido votar, foi hoje divulgado que mais de 80% dos votos dos emigrantes no círculo da Europa foram considerados nulos.
Segundo o edital publicado hoje sobre o apuramento geral da eleição do círculo da Europa, de um total de 195.701 votos recebidos, 157.205 foram considerados nulos, o que equivale a 80,32%.
Em causa estão protestos apresentados pelo PSD após a maioria das mesas ter validado votos que não vinham acompanhados de cópia da identificação do eleitor, como exige a lei.
Como esses votos foram misturados com os votos válidos, a mesa da assembleia de apuramento geral acabou por anular os resultados de dezenas de mesas, incluindo votos válidos e inválidos, por ser impossível distingui-los uma vez na urna.
No entanto, apesar de tamanho caso para a democracia, o Partido Socialista disse que não iria recorrer da anulação dos votos para evitar “mais perturbação".
Segundo o deputado Paulo Pisco, cabeça de lista do PS pelo círculo da Europa, decisão da mesa de apuramento geral do círculo da Europa era “totalmente evitável” porque a mesa de apuramento geral do círculo Fora da Europa, perante a mesma situação, rejeitou o protesto do PSD e validou todos os votos, com ou sem cópia do CC.
Atribuiu por isso à mesa de apuramento geral da Europa “a sua quota parte de responsabilidade”.
Acrescentou que existe um “sentimento ambivalente” relativamente aos resultados finais dos círculos da emigração porque, por um lado, registou-se uma “enorme participação dos portugueses residentes no estrangeiro”, mas por outro “há um sentimento de desânimo de grande frustração” relativamente à anulação dos votos.
Lembrou que a anulação representa “uma redução brutal” do número de votos no Partido Socialista, que tinha 78.000 votos antes da anulação e ficou com 14.000 votos.
“Esta anulação retirou ao Partido Socialista 64.000 votos, e o PSD, que tinha 49.000 e passou a ter 9.000”, perdeu cerca de 40.000 votos.
Questionado sobre por que motivo a lei não foi alterada na sequência das eleições legislativas de 2019, em que já tinham sido anulados 34 mil votos pelo mesmo motivo, o deputado socialista lembrou que a pandemia e a interrupção da legislatura impediram a concretização dessa intenção.
Além disso, explicou que havia três leis eleitorais para alterar e a prioridade foi mudar a das eleições autárquicas, uma vez que havia eleições para os municípios em 2021.
Já o PSD, pela voz de Rui Rio, rejeitou que a responsabilidade da anulação de 157 mil votos da emigração seja “de quem reclamou” o cumprimento da lei, admitindo a necessidade de “revisitar” a lei eleitoral.
“Se os votos que estavam sob protesto, que não trouxeram fotocópia do cartão de cidadão, não tivessem entrado na urna e tivessem ficado à espera da decisão, isto não aconteceria. A responsabilidade não é de quem reclamou, é de quem pegou neles e os misturou com os outros”, acusou Rui Rio, questionado pelos jornalistas, à margem de uma declaração no parlamento sobre outra matéria.
O presidente do PSD frisou que a lei diz que os votos têm de ser acompanhados da identificação, para garantir que foi aquela pessoa que votou.
“Isso não aconteceu com uma série de votos, e o PSD fez uma reclamação. Não era uma matéria muito grave se esses votos tivessem sido colocados à parte, à espera da deliberação final do juiz. O problema é que, apesar da reclamação do PSD, meteram esses votos nas urnas, juntamente com outros, e deu esta situação profundamente desagradável em que têm de se eliminar todos”, afirmou.
Questionado se o PSD não deu, um tempo antes, um acordo verbal para que fossem contados todos os votos, mesmo sem essa identificação, Rui Rio admitiu que sim.
“Numa reunião, houve um representante do PSD que aceitou isso. Mas há aqui uma parte que é muito difícil de superar, a lei é taxativa. A forma de resolver, enquanto não se alterar a lei, era os votos sob protesto ficarem ao lado e só serem contados se o juiz assim determinasse”, afirmou.
Questionado se o PSD admite, tal como o PS, rever a lei eleitoral para a Assembleia da República neste ponto, Rio afirmou ser necessário “olhar para a lei para encontrar uma solução”, lembrando que a situação já se verificou em 2019.
“Revisitar a lei para encontrar uma solução sim, que solução temos de ver, temos de ter a certeza que os votos foram mesmo a parar a quem de direito e não todos ao mesmo sítio”, alertou.
Entre os outros partidos, nota para a posição da Iniciativa Liberal que acusou PS e PSD de “grave incompetência na contagem de votos da emigração”, na qual foram considerados nulos 157 mil votos, insistindo na revisão urgente da lei eleitoral para evitar que volte a acontecer.
“A Iniciativa Liberal repudia mais um inaceitável momento de incompetência do Estado português, que desrespeita de forma grave os portugueses no exterior, e quer rever urgentemente a lei eleitoral para evitar um processo semelhante nas próximas eleições”, pode ler-se numa nota enviada à agência Lusa pelo partido de João Cotrim Figueiredo.
No meio do caos, uma boa notícia
O número total de votantes no círculo da Europa equivale a 20,67% do número de inscritos, o que representa um forte aumento da participação relativamente às legislativas de 2019, quando apenas 12,05% dos eleitores inscritos no estrangeiro votaram.
O especialista em emigração Jorge Arroteia defendeu hoje que o aumento da participação eleitoral das comunidades nas legislativas se deveu à nova geração de emigrantes e não a qualquer esforço de mobilização das autoridades ou dos partidos.
“Embora não seja possível de imediato fazer uma associação entre a população que votou e o estrato etário desta mesma população, eu inclino-me para já para que isso tenha justamente a ver com a participação de uma emigração mais jovem, mais participativa, mais interessada nos destinos da sua terra, do seu país”, disse o professor catedrático da Universidade de Aveiro em declarações à Lusa por telefone.
No círculo eleitoral Fora da Europa, a participação foi de 10,86%, também maior do que a participação de 2019, quando apenas 8,81% dos eleitores registados votaram.
Neste círculo, o número de votos nulos foi de 1.907, ou seja 2,95% dos 64.534 votos registados.
Quanto aos resultados, no círculo da Europa o PS conquistou 14.345 (39,63%) dos 36.191 votos válidos e o PSD 9.761 (27,05%), tendo o Chega sido o terceiro partido mais votado, com 3.985 votos (11,01%).
Foram eleitos Paulo Pisco, do PS, e Maria Ester Vargas, do PSD.
No círculo Fora da Europa, o PSD foi o partido mais votado, com 23.942 (37,09%) dos 64.534 votos válidos, enquanto o PS obteve 19.084 (29,57%), tendo o Chega sido, mais uma vez, o terceiro partido mais votado, com 6.123 votos (9,48%).
Foram eleitos António Maló de Abreu, do PSD, e Augusto Santos Silva, do PS.
Com os quatro deputados eleitos pela emigração, o PS fica com 119 deputados e o PSD com 73 deputados sozinho, subindo para 78 deputados somando os valores obtidos nas coligações de que fez parte na Madeira e nos Açores.
Os partidos têm 24 horas para recorrer destes resultados.
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