O lançamento do ChatGPT no final do ano passado criou uma explosão de interesse no setor da IA generativa. Apesar da inflação, do aumento das taxas de juro e dos avisos dos economistas quanto a possíveis cenários de recessão, a esperança que as ferramentas turbinadas a IA vão aumentar a produtividade nas empresas e vão levar a uma redução de custos parece ser uma daquelas difíceis de resistir.
Porque o medo de perder o comboio é real. Veja-se o caso da francesa Mistral AI, uma startup fundada há apenas quatro semanas por um trio de antigos investigadores de inteligência artificial da Meta e da Google, mas que angariou 105 milhões de euros, naquela que já é a maior ronda de lançamento de sempre na Europa. Isto sem terem desenvolvido o seu primeiro produto e os seus trabalhadores terem iniciado funções há apenas alguns dias. O que tem para mostrar? Um plano para criar um modelo (LLM) de "IA generativa" da "família" GPT.
- A ideia é que a Mistral AI seja a resposta europeia à OpenAI, que criou o ChatGTP. A principal diferença, explica um dos fundadores, é que será Open Source (o código fonte é de acesso livre e universal) para construir uma IA generativa com "ADN europeu". Na prática, isto significa que vai permitir que a plataforma esteja acessível aos investigadores que estão a tentar descobrir como controlar os avanços IA. Adicionalmente, a Mistral AI faz intenções de trabalhar com os seus clientes para construir modelos personalizados mais seguros.
- Mas o que difere a Mistral AI de outras startups europeias - Stability AI, Aleph Alpha, Sana Labs, LightOn, ZetaAlpha e Silo AI - que tentam construir LLMs (Large Language Models)? Os fundadores acreditam que a sua experiência vai fazer com que desenvolvam alguns dos sistemas mais eficientes que existem. Timothée Lacroix, Guillaume Lample e Arthur Mensch, juntos, tem quase duas décadas de experiência a trabalhar em IA e Machine Learning na Meta e na Deepmind (o laboratório de investigação em IA da Google). Mensch, por exemplo, acredita que a sua ligação ao modelo Chinchilla da Deepmind - um modelo de IA concebido para exigir menos potência de computação para treino do que o GPT-4 da OpenAI - lhe deu experiência em primeira mão para tornar os modelos da Mistral AI mais eficientes do que os da concorrência.
- Para onde vão os milhões? A linha da frente dos LLM e das tecnologias de IA generativa é um jogo para os "grandes" — e é muito caro e dispendioso. Como Luís Sarmento, co-founder e CEO da Inductiva, já explicou num artigo para o The Next Big Idea, a sua existência é sustentada por infra-estruturas de supercomputação. Por isso, Arthur Mensch explica que "uma grande parte" do aumento de 105 milhões de euros será utilizada para alugar capacidade de computação para treinar o seu primeiro modelo, que estará pronto no "início de 2024".
Se surpreende? Pouco. Apesar de a IA generativa ser uma tecnologia emergente, já "mostra" obra feita. Esquecendo os feitos já muito documentados do ChatGPT, tome-se a evolução, por exemplo, da Midjourney, ferramenta que gera imagens através de promps (descrições) dos utilizadores. Em pouco mais de um ano, a evolução do Midjourney V1 para o Midjourney V5.1 é colossal — é tão absurda que quase só dá para acreditar vendo as diferenças lado a lado. Quando apareceu, em fevereiro de 2022, gerava imagens com um “grafismo” disfórmico estilo Playstation 1 (saiu em 94). Volvidos 15 meses, em maio de 2023, gera imagens ao nível do último Avatar (e pelo meio gera imagens virais com o Papa Francisco).
Portanto, visto que o "hype é real", não admira que exista um frenesim em torno desta tecnologia, qual corrida ao ouro prestes a mudar o séc. XXI. Em maio, o frenesim resultou num investimento recorde de 8,5 mil milhões de dólares — e a tendência é para continuar. De acordo com um relatório da Bloomberg Intelligence, analisado pela Business Insider, o mercado da IA generativa poderá tornar-se uma indústria de 1,3 biliões de dólares (do trillion americano) até 2032.
Dot-com 2.0
Todavia, todo este investimento vertiginoso — que por sua vez está a conduzir a uma escalada do preço das ações de muitas tecnológicas — está a suscitar algumas comparações pouco lisonjeiras com a bolha dot-com no final dos anos 90. Nessa altura, em que o Microsoft Windows 95 Plus Pack apresentava a primeira versão do Internet Explorer, acreditava-se que ter ".com" no domínio do site era suficiente para ter um negócio de sucesso. Tanto que toda uma nova geração de empresas angariou milhões em financiamento devido a esta crença, levando o índice Nasdaq a atingir máximos históricos. Mas como as extintas Pets.com (esta empresa tornou–se no caso mais conhecido, culpa dos seus anúncios hilariantes com uma meia em forma de cão) ou a Webvan.com (empresa de entregas, que declarou falência depois de ter evaporado mil milhões de dólares em um ano e meio) o provaram, só o nome não chegou. É preciso ter igualmente um modelo de negócio que tenha um plano que faça lucro.
Bolha? Facção "do Sim". Há quem considere que estamos a caminhar (ou que até já estamos) numa bolha estilo dot-com. Primeiro, porque o mercado está a valorizar demasiado as empresas associadas à IA; depois, porque está a sobrevalorizar a própria tecnologia (como esta opinião salienta, a IA generativa é uma ferramenta; uma muito poderosa e capaz de coisas incríveis, mas ainda assim uma ferramenta). A par, há quem veja sinais de uma repetição do "comportamento corporativo" levado a cabo no anos 90, isto é, uma corrida cega no investimento atrás do último grito tecnológico para ganhar rapidamente dinheiro, desvalorizando as ameaças de uma possível recessão ou se há ou não modelos de negócio viáveis nestas novas empresas.
Bolha? Facção "ainda é cedo". Contudo, há quem não acredite nesta ideia ou que o mercado afunde como aconteceu nos finais dos anos 90. Isto porque consideram que é errado colocar as empresas da IA no mesmo saco que as dot-com, nomeadamente porque as empresas como a Pets.com ou a Webvan.com não davam lucro e estavam sobreavaliadas por "conceitos irrealistas" dos primórdios da Internet. Hoje, ao contrário do que se passou em 99, as empresas que estão a levantar o S&P 500, índice de referência, ou o Nasdaq Composite, o tecnológico, são todas gigantes com bons resultados financeiros (Meta, Microsoft, Apple, Amazon, Intel, AMD). E a liderar o pelotão está uma Nvidia forte, que em 2023 está a ter uma valorização em bolsa meteórica e que em maio foi temporariamente uma "trillion dollar company". Neste momento, a inteligência artificial é o ouro e a Nvidia valoriza porque é a única que faz picaretas - chips — para o extrair; sem chips, não há matéria prima para as empresas como a francesa Mistral desenvolverem a IA.
Veredicto: mesmo que os especialistas discordem se estamos ou não numa bolha, a realidade é que ninguém passa ao lado da inteligência artificial ou quer ficar na cauda. A tecnologia é tida como revolucionária e já é vista como sendo de importância estratégica inclusive geopolítica (prova disso são declarações recentes do presidente francês, Emmanuel Macron, que disse à CNBC que a França vai "investir de forma louca" em IA). Portanto, com bolha ou sem bolha, o ChatGPT parece ter sido mesmo só o início. É que a conversa em torno IA tem todo o ar de estar só a começar.
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