O conceito "fake it until you make it" ("fingir até conseguir", de maneira a projetar confiança) acontece no mundo dos negócios por uma razão e é prática corrente e aceitável (até certo ponto). Afinal, se um fundador de uma startup não acreditar nele próprio ou no seu produto, dificilmente vai conseguir convencer alguém a investir ou fazer a sua marca crescer. Porém, há casos e casos, e fingimentos e fingimentos. E o fingimento da rede social "IRL", foi um de todo o tamanho. Mas, por partes. Primeiro, as apresentações.
Há dois anos, uma startup norte-americana chamada IRL (abreviação para "In Real Life", que traduzido livremente para português é "Na Vida Real") atingiu o célebre estatuto de unicórnio (acontece quando uma empresa é avaliada em mil milhões de dólares) depois de receber uma ronda de financiamento de 170 milhões de dólares liderada pelo SoftBank (e mais 30 milhões de outros fundos, tendo angariado no total 200 milhões) — um feito digno de registo para qualquer empresa, mas que aqui sobressai ainda mais porque estamos perante uma aplicação/rede social de mensagens estilo Messenger que ainda não gerava receitas e tinha sido criada apenas em 2018.
O que é ao certo? Em 2021, ao The Verge, Abraham Shafi, CEO e cofundador, resumia a rede social de mensagens e o que se fazia na IRL: "Estamos a criar grupos e eventos no Facebook para a geração que não usa o Facebook". Na mesma entrevista, Shafi mostrava confiança porque "não havia outra" app no mercado como a IRL, desenhada e pensada para a maneira de comunicar e viver da "próxima geração".
E devido ao seu conceito inovador, que parecia agarrar os mais novos e a Gen Z, foi conquistando a atenção dos meios especializados. Ganhou a atenção pelo facto de, ao contrário de outras aplicações do género, a IRL ter a intenção de afastar os adolescentes dos seus telemóveis; falou-se sobre a natureza inovadora ao ser um o Instagram para eventos e por estar a querer atrair os adolescentes para o mundo da calendarização; chegou inclusive a ser destaque na App Store da Apple.
No entanto, diga-se: apesar da sua curta existência, teve que se reinventar e ter várias vidas. Primeiro nasceu para ser aplicação de calendário para os jovens ("A nova geração não usa o Facebook Events. Ninguém – ninguém – está no Facebook", reiterava o CEO), mas depois a Covid-19 trancou o mundo em casa e a IRL passou a ser um calendário principal para tudo o que acontecia, digital ou não. Depois, veio o desconfinamento e a IRL voltou a mudar de rumo, tirando partido da vontade de as pessoas se encontrarem pessoalmente. E a verdade é que o futuro parecia risonho, uma vez que os utilizadores estavam a enviar 100 milhões de mensagens diárias e havia "clareza" na visão para os próximos dez anos:
- A curto prazo: queria rivalizar diretamente com os grupos de Facebook, ambicionando ser a rede social de mensagens de grupo que reúne pessoas através de eventos e a partilha de experiências. Isto é, os utilizadores procuram pessoas com gostos semelhantes (concertos, livros, futeboladas, etc) e juntam-se às comunidades existentes através do telemóvel, mas ultimamente a intenção é que o convívio seja feito também fora do telemóvel — lá está, em "IRL", ou "Na Vida Real".
- A longo prazo: queria tornar-se "uma super rede social de mensagens" e apresentar-se como a opção "WeChat para o resto do mundo". (Para quem não está familiarizado, a WeChat é a aplicação mais popular da China, que embora seja estilo WhatsApp, na verdade permite fazer tudo, desde pagar contas a chamar táxis — e é utilizada por 1,3 mil milhões de utilizadores todos os meses.)
- Para fazer dinheiro: segundo explicou Shafi à Forbes, a intenção era evitar o modelo de receitas da publicidade tradicional. Por exemplo, a IRL experimentou um programa piloto em que permitiu que 25 influenciadores criassem chats de grupo pagos, que acumularam 1.000 subscritores, que pagavam em média 70 dólares por mês (imagem abaixo revela um desses casos).
Portanto, em outubro do ano passado, como salientou a Fortune que noticiou a queda da empresa, temos uma IRL avaliada em mais de mil milhões de dólares a caminhar para o Top 10 das aplicações de redes sociais e a dar eventos e plataforma a uma comunidade de cerca de 20 milhões de utilizadores ativos (dos quais 75% eram da Geração Z, o que fazia da IRL uma das redes sociais a crescer mais rápido entre os jovens). Pelo meio, há ainda que contar com a celebração de um acordo com a UFC, a principal promotora de artes marciais mistas do mundo, tornando-se na plataforma oficial para os fãs da modalidade conviverem online e offline.
Tudo parecia bem e encarrilado para uma história de sucesso. Mas não.
As preocupações dos bastidores
Se há algo que o CEO afirmou repetidamente durante o ano passado, era que a IRL tinha 20 milhões de utilizadores ativos mensais. Como noticiou a The Information em maio de 2022, Abraham Shafi fazia referência ao número tanto em entrevistas como em conversas com os investidores. No entanto, há um senão: Shafi utilizava uma definição de "utilizadores ativos" mais abrangente do que a maioria das redes sociais para fazer com que a sua aplicação parecesse maior do que na verdade era. E a suspeição começou a ganhar outra dimensão quando uma empresa especializada em seguir este tipo de métricas revelou que, pelas suas contas, a IRL tinha na verdade entre 1 e 2 milhões de utilizadores ativos mensais — bem menos do que os 20 que Shafi alegava que a IRL tinha.
O clima de suspeição iria escalar depois quando a SEC começou a investigar o caso e um antigo trabalhador alegou no início do ano que a IRL o tinha despedido depois de ter manifestado a sua preocupação com o facto de muitos utilizadores serem bots. Pressionado pelas polémicas e no olho do furacão, Shafi acabaria por deixar o cargo de CEO em abril (foi afastado por má conduta). Não que isso fizesse grande diferença. O mal já estava feito.
"Fake it until you make it" é válido e OK, mas mentir aos investidores e dar dados falsos é fraude. É uma linha que não se pode cruzar e que por norma acarreta consequências. Porque pese embora a SEC já estivesse a investigar possíveis irregularidades, o conselho de administração da IRL anunciou na semana passada que levou a cabo a sua própria investigação e que deu razão às preocupações do ex-funcionário que foi alegadamente despedido por dizer que havia muito bot na plataforma (segundo o TechCrunch, a IRL despediu 25 trabalhadores e Shafi encorajou numa nota interna os empregados a "adaptarem-se" e a "serem disciplinados", referindo que o WhatsApp cresceu para 450 milhões de utilizadores com uma equipa de apenas 55, não terá ajudado a dar confiança).
Segundo a investigação, cerca de 95% dos utilizadores da IRL eram "automatizados ou provenientes de bots". Portanto, "com base nessas descobertas, a maioria dos acionistas concluiu que as perspetivas futuras da empresa são insustentáveis", pelo que a IRL vai deixar de existir e a empresa vai devolver o capital aos acionistas.
Moral da história: No auge, há sensivelmente um ano, a IRL gozava do estatuto de unicórnio, contava com 100 trabalhadores e tinha assegurado 200 milhões de dólares (SoftBank e outros) para ser a WeChat do mundo. Agora, é apenas mais um caso que parece dar força aos analistas que consideram ser necessário reconsiderar a forma como o sucesso é visto no mundo tecnológico. Porque se a IRL é prova de alguma coisa, é que ser unicórnio não é sinónimo de investimento infalível ou de startup a manter debaixo de olho — e que se os números cheiram a esturro e são demasiado bons para serem verdadeiros, é porque há uma razão para isso.
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