Sim, foi em Portugal, mais precisamente na GenIbet Biopharmaceuticals, que foram produzidos para a Moderna os primeiros lotes com tecnologia de mRNA para ensaios clínicos de vacinas. Estes ainda não estavam diretamente relacionados com a covid-19, mas o estudo da tecnologia permitiu chegar a uma das principais respostas no combate à pandemia — o que resultou até num agradecimento de Stéphane Bancel, presidente executivo da farmacêutica norte-americana: “A Moderna está muito grata à GenIbet pela parceria para desenvolver a primeira vacina [com tecnologia] mRNA, no final de 2015.”
Todos os anos, novos fármacos são testados em ensaios clínicos, acabando por resultar em novas oportunidades para o tratamento de doenças. Em 2017, cerca de 65% dos medicamentos aprovados no mercado basearam-se na biotecnologia, de acordo com as estatísticas das Nações Unidas (ONU) — uma tendência que deverá acelerar nos próximos anos.
Espera-se uma enorme procura de produtos biofármacos, que deverá ser facilitada por este foco na investigação de mRNA e pelo investimento fomentado pela covid-19. Além disso, a possibilidade destes biofármacos poderem dar resposta a doenças não tratáveis pode alimentar a introdução de medicamentos inovadores no setor, reforçando o mercado durante a próxima década.
Do iBet à GenIbet
A GenIbet Biopharmaceuticals nasceu em 2006, criada por iniciativa do Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica (iBet), o seu maior acionista. A empresa é uma Contract Development Manufacturing Organization (CDMO), que produz biofármacos para ensaios clínicos de acordo com as chamadas Boas Prácticas de Fabrico (BPFs) ou Good Manufacturing Practices (GMP). As suas instalações estão localizadas no Edifício da Unidade de I&D do iBET, no campus do INIAV, em Oeiras.
O iBET tem duas grandes divisões: Health & Pharma (saúde e farmacêutica) — na qual desenvolvem processos para produção e caracterização de biofármacos, trabalho em terapias celulares, em terapias génicas e no desenvolvimento de novas vacinas, ou seja, tudo o que são os medicamentos avançados – e a Food & Health (alimentação e saúde).
Raquel Fortunato, a CEO da GenIbet e engenheira química, conta ao SAPO24 que “o iBet continua a operar e que já era reconhecido a nível internacional pelos serviços que prestava na parte de desenvolvimento de biofármacos”. “No entanto, em 2006, percebeu-se que havia aqui uma oportunidade: já havia muitos pedidos de algumas empresas com as quais o iBet trabalhava para se avançar para a fase seguinte da investigação em novas terapias e novos medicamentos, nomeadamente para a fase de ensaios clínicos”, explica.
Para tal, era necessário que a produção fosse feita “numa unidade certificada, que cumpra as boas práticas da indústria farmacêutica”, explica a CEO. “No fundo, estas boas práticas são um conjunto de regras. Na Europa, o controlo é feito pela Agência Europeia de Medicamentos, nos Estados Unidos é a FDA que tem esse papel. Essas regras dizem essencialmente como é que esta atividade de fabrico de medicamentos, quer seja de medicamentos já vendidos ao público nas farmácias, quer seja de medicamentos investigacionais – que são os medicamentos que ainda estão na fase dos ensaios clínicos, mas que já estão a ser administrados a humanos – deve ser feita”.
Mas o iBet não tinha instalações deste tipo, que, segundo a diretora, requerem construção “de salas limpas, com sistemas de tratamento de ar e um Sistema da Qualidade — que, no fundo, cumprem com as tais guidelines emitidas pela Agência Europeia do Medicamento”.
Assim, o fundador e, à data, CEO do iBet, o professor Manuel Carrondo, “desafiou alguns dos associados e parceiros” do instituto para “constituírem uma nova empresa, que é a Genibet, que se dedicaria exclusivamente à produção destes potenciais medicamentos para ensaios clínicos e ficaria localizada nas instalações do iBet, contando com todo o suporte do instituto para o arranque da parte técnica”. Manuel Carrondo percebeu que esta “poderia ser uma atividade rentável e autossustentável a médio longo prazo, e que poderia criar emprego altamente especializado”. E assim surgiu a GenIbet, que pretende também “diminuir o fosso entre a investigação que é feita nas universidades e aquilo que é necessário na indústria”.
De acordo com a atual CEO, o iBet tinha em mãos alguns projetos nos quais tinha quase um “cliente prospetivo” e “existia uma tendência, que se mantém, até em crescente, de subcontratação deste tipo de serviços por parte das grandes empresas farmacêuticas”.
A maioria das empresas ou institutos de investigação que iniciam o desenvolvimento de um produto não possuem instalações para produção de acordo com as Boas Práticas de Fabrico, acabando por recorrer à contratação de empresas prestadoras de serviços especializados, como por exemplo a GenIbet Biopharmaceuticals. Isto porque “a linha de produção montada para fazer medicamentos para o mercado tipicamente visa escalas que não têm nada a ver com as escalas e com as quantidades que são necessárias para ensaios clínicos”. Assim, os seus principais clientes são empresas farmacêuticas e de Biotecnologia e Grupos de Investigação, que recorrem aos seus serviços para a produção de biofármacos nas referidas condições.
Devido à sua estrutura mais complexa e atividade biológica associada, estes biofármacos são caracterizados essencialmente pelo seu processo de fabrico, dado que se trata maioritariamente de proteínas, moléculas grandes que variam em estrutura e são sensíveis às condições ambientais. O fabrico destes medicamentos pode ser resumido à produção da linha celular de referência; cultura das células e produção de proteínas; isolamento e purificação das proteínas das células; e preparação do medicamento.
Assim, o papel da biofarmacêutica é a produção destes biofármacos para utilização em fases pré-clínicas e ensaios clínicos de fase I e II (fases clínicas de verificação de toxicidade e eficácia de medicamentos). E em alguns casos também no desenvolvimento do processo de fabrico desses produtos – que necessita de ser reprodutível e confiável, de modo a fornecer um produto final seguro e eficaz, daí a importância das GMPs.
Desde 2010, o número de pequenas empresas biotecnológicas concentradas no fornecimento de medicamentos genéticos aumentou, tendo surgido centenas de startups nos últimos anos, a nível global.
Além da procura por parte das grandes farmacêuticas, começaram também a surgir pequenas empresas de biotecnologia com produtos prontos, “altamente inovadores e com grande potencial terapêutico”, mas que não tinham unidades de produção adequadas e, portanto, também subcontratam esse serviço.
mRNA: o trabalho desenvolvido pela GenIbet para a Moderna
Raquel Fortunato conta que mesmo a Moderna começou “como uma empresa muito pequena que subcontratava todos os serviços, que iam desde a parte da produção do RNA, que era onde a GenIbet estava envolvida, até à produção das próprias matérias-primas para produzir o mRNA”.
Isto porque quando arrancaram com esta tecnologia, não tinham nenhum sítio para os ajudar no desenvolvimento ao nível da estabilidade, bem como para como produzir mRNA na escala que necessitavam para os ensaios clínicos que tinham a decorrer de diferentes terapêuticas.
“Começámos a trabalhar com a Moderna em 2012, que foi o ano em que nos fizeram a primeira auditoria de qualidade — os clientes e parceiros com quem trabalhamos confiam obviamente no certificado passado pelo Infarmed, porque é ‘o braço’ da Agência Europeia do Medicamento em Portugal, mas conduzem sempre as suas próprias auditorias para conhecerem as instalações e perceberem de forma é que se adequa ao seu ao produto ou ao processo que pretendem”, explica. No entanto, acrescenta, desde o início que a Moderna queria “capacitar-se com a possibilidade de serem eles próprios a fazer a produção” e em 2018 acabaram por inaugurar uma fábrica nos Estados Unidos, que “ainda hoje está em operação. Ficaram autónomos”.
Sobre a duração do processo de produção de uma molécula de mRNA, Raquel Fortunato explica que depende de alguns fatores, desde a escala, às horas de trabalho diárias: “A reação são horas, mas depois temos a parte da purificação. Quando estávamos a produzir – mas nós não trabalhamos 24/24 –, na escala que trabalhávamos, tínhamos processos que chegavam a durar 5 semanas. Pronto, mas também evoluiu a ciência... Atualmente, estamos a trabalhar com outro parceiro num outro projeto, que também é mRNA, e o processo de produção demora uma semana, por exemplo”.
Mas vamos ao detalhe: “Há um dia que é o dia da reação, depois há outro dia em que se faz um primeiro passo de purificação, outro dia que faz um passo de verificação. Isto consegue-se encurtar trabalhando de seguida. E depois a parte do drug product, que são aquelas linhas de enchimento automáticas que vemos na televisão e que depende do output da máquina, mas há outputs bastante simpáticos e significativos”.
No que diz respeito à aplicabilidade do mRNA e à sua produção, Raquel Fortunato destaca que “a beleza é que, depois de se perceber como é que se consegue produzir de forma estável a uma larga escala, é relativamente fácil fazer um mRNA para tratar covid ou outra doença qualquer, porque como o mRNA funciona como um código, como um livro de instruções em que o corpo humano é a fábrica. Basta mudar ali uma ‘coisinha’, mas isso acaba por não ter influência na forma como o mRNA é produzido”.
“Quando se está a fazer o desenvolvimento de um medicamento novo, uma das partes mais importantes é o que se chama o CMC (Chemestry Manufactoring and Control), que no fundo é perceber o que é um produto, em que é que consiste, como é produzido e depois quais são os tipos de controlo de qualidade que têm de ser feitos. E esse CMC é muito semelhante para um mRNA usado para a terapia A ou para um mRNA usado para a terapia B”, detalha. E, portanto, isso obviamente facilitou este caminho e tornou-o mais rápido.
Uma das dificuldades apontadas para a utilização do mRNA era a instabilidade inerente das moléculas, que a CEO relembra: “A ideia que se tinha, aquilo que aprendíamos e que se sabia na altura, era quase que estávamos na bancada a fazer uma reação e quando a reação acabava, cinco minutos depois, já não tínhamos a mRNA. Percebeu-se, às tantas, que não era bem assim. Já a questão da estabilidade mais a longo prazo...”
“Nós, da GenIbet, fizemos aquilo a que chamamos a drug substance. Imagine que estamos a falar de uma aspirina, seria o equivalente ao ácido acetilsalicílico. Depois, no drug product, a Moderna evoluiu para usar uma tecnologia que é a tecnologia de lipid nanoparticules e percebeu-se que usando isso se conseguia aumentar a estabilidade e aumentar esta estabilidade a longo prazo”, refere a CEO.
A questão da estabilidade das moléculas é o que leva a que estas vacinas exijam condições de armazenamento tão específicas e a baixas temperaturas, e o mesmo se aplica à validade.
Raquel Fortunato explica que “não basta dizer que a validade desta vacina são 6 meses, é preciso ter dados que suportem isso. Quando digo ‘ter dados que suportem isso’, é porque é preciso ter um lote desta vacina que tenha sido feito há 3 ou 6 meses ou um ano e de ‘x’ em ‘x’ tempo ir lá tirar uma amostra e medi-la, caracterizá-la e verificar que é igual e que todas as características se mantêm”.
Agora, com a atenção da indústria farmacêutica virada para o RNA mensageiro, o mais provável é verificar-se uma aceleração na investigação, o que poderá desencadear novos capítulos da utilização desta molécula como terapêutica, o que para a diretora é “revolucionário”.
“Lembro-me de termos conversas com pessoas da Moderna e, já na altura, sentíamos que isto podia ser completamente revolucionário, precisamente por causa deste conceito, de isto poder ser o ‘código’ ou ‘o livro de instruções’. O conceito em si é revolucionário do ponto de vista científico, mas as vacinas administradas a larga escala comprovam que o conceito funciona e que é seguro — e isso é um boost muito grande em todas as outras possíveis aplicações desta molécula”, recorda.
As pessoas por trás dos medicamentos e dos lotes de mRNA
Para fazer este tipo de trabalho, há algo essencial: dispor de pessoas, e a GenIbet não é exceção.
“Acho que acho que por trás da ciência há pessoas e é a boa qualidade das pessoas que faz com que a ciência progrida e isso é muito importante. Nesse aspecto, temos a sorte de termos tido sempre pessoas muito capazes que contribuem diariamente para a evolução”, salienta Raquel Fortunato.
“Gostamos de dar a visibilidade às nossas pessoas do que é que estamos a fazer a nível de produtos, porque trabalhar de acordo com estas boas práticas de fabrico e trabalhar neste tipo de salas limpas não é exatamente a mesma coisa do que trabalhar num laboratório e pode ser muito difícil”, conta.
Para este tipo de trabalho, e por várias horas, os investigadores têm de utilizar roupas especiais e, explica, “não podem mexer-se muito”. “Este desconforto agora que toda a gente fala por terem que andar de máscara todo o dia? É assim que muitas pessoas trabalham e sempre trabalharam nas instalações da GenIbet, sempre de máscara. Em todos os medicamentos que nós produzimos, as pessoas trabalham de máscara todo o dia, porque a boca é um veículo transmissível e há risco de contaminação”.
Com mais de 50 profissionais altamente qualificados, esta é a primeira empresa portuguesa certificada pelo Infarmed para o fabrico de produtos biológicos e biofarmacêuticos para ensaios clínicos de fase I/II.
A GenIbet Biopharmaceuticals recebeu recentemente a Medalha de Ouro de Mérito Municipal pelo Município de Oeiras, um prémio reconhece a sua excelência, que nos últimos 15 anos tem atraído um elevado número empresas internacionais para visitar e investir em Oeiras.
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Este é o terceiro de uma série de artigos, a publicar esta semana no SAPO24, sobre o RNA e as suas potenciais aplicações noutras terapias e tratamentos.
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