O jantar foi longo e delicioso e, quando terminou, os convidados mais velhos começaram a sair. Os mais jovens regressaram à pista de dança, tendo o DJ tomado nota dos pedidos e reduzido o volume.
Por volta da meia-noite, Bruce encontrou Mercer e Thomas na borda da piscina, com os pés dentro de água. Juntou-se a eles e voltou a dizer-lhes que tinham organizado um casamento lindo.
— Quando é que partem para a Escócia? — perguntou.
— Amanhã, às duas — replicou Mercer. — Apanhamos um voo de Jacksonville para Washington e depois um direto para Londres.
— A lua de mel eram duas semanas nas Terras Altas da Escócia.
— Podem passar pela loja, de manhã? Terei o café pronto. Vamos precisar.
Thomas acenou com a cabeça, e Mercer disse:
— Claro. O que se passa?
Bruce ficou subitamente sério. Com um sorriso presunçoso, olhou para ela e disse:
— Tenho a história, Mercer. Talvez seja a melhor que alguma vez ouvi.
2.
A Bay Books abria todos os domingos às nove da manhã, altura em que Bruce destrancava a porta, a partir do interior, e dava as boas-vindas aos clientes habituais. Embora os dados demográficos fossem pouco claros, sempre presumira que cerca de metade dos residentes permanentes de Camino Island fossem reformados oriundos de climas mais frios. A outra metade era composta por nativos do Norte da Florida e do Sul da Georgia. Os turistas vinham de toda a parte, mas sobretudo do Sul e do Leste.
De qualquer forma, havia muitas pessoas do Norte que sentiam a falta dos seus jornais favoritos. Há uns anos, Bruce tinha começado a disponibilizar as edições de domingo do Times, Post, Enquirer, Tribune, Baltimore Sun, Pittsburgh Post-Gazette e Boston Globe. Juntamente com os jornais, vendia uns lendários biscoitos amanteigados e quentinhos de um restaurante ao virar da esquina, apenas aos domingos, e às nove e
meia, o café, no piso de cima, e a área de leitura, em baixo, enchiam-se de ianques a ler as notícias do local de origem. Tornara-se uma espécie de ritual, e muitos dos frequentadores habituais nunca perdiam uma manhã de domingo na livraria. Embora as mulheres fossem seguramente bem-vindas — Bruce aprendera há muito que a maioria dos livros era comprada por estas —, o pessoal das manhãs de domingo era todo do sexo masculino, e as conversas sobre política e desporto tornavam-se muitas vezes conflituosas. Era permitido fumar no terraço exterior e havia normalmente uma nuvem de fumo de charuto a pairar sobre Main Street.
Mercer e Thomas chegaram no fim da manhã, agora oficialmente casados, notavelmente sóbrios e preparados para a viagem. Bruce convidou-os a descer ao seu escritório, na Sala das Primeiras Edições, onde exibia alguns dos seus melhores livros raros. Serviu o café e conversaram sobre a noite anterior. Porém, os recém-casados estavam prontos para partir, com uma longa aventura pela frente.
Mercer sorriu e disse:
— Fizeste menção à melhor história de todos os tempos.
— Pois fiz. Serei breve. É uma história verdadeira, mas também pode ser ficcionada. Já ouviste falar de Dark Isle, que fica a norte daqui. — Talvez, não tenho a certeza.
— É deserta, certo? — perguntou Thomas.
— É provável que sim, mas há algumas dúvidas. É uma das duas ilhas-barreira mais pequenas entre a Florida e a Georgia, e nunca foi urbanizada. Tem cerca de cinco quilómetros de comprimento e um e meio de largura, com praias virgens.
Mercer estava a acenar com a cabeça e disse:
— Oh, sim! Agora, já me lembro. Tessa falou-me sobre ela há muitos anos. Não dizem que é assombrada ou algo assim?
— Algo assim. Há séculos, por volta de 1750, tornou-se um refúgio para escravos fugitivos da Georgia, que, sendo então governada pelos britânicos, permitia a escravatura. Florida estava sob bandeira espanhola e, embora a escravatura não fosse ilegal, era concedido asilo aos fugitivos. Houve uma longa disputa entre os dois países em relação ao que fazer com os escravos que fugiam para a Florida. A Georgia queria que voltassem. Os espanhóis queriam protegê-los só para irritar os britânicos e as suas colónias americanas. Por volta de 1760, um navio negreiro que regressava da África Ocidental preparava-se para ancorar em Savannah quando uma forte tempestade vinda de norte, mais propriamente de nordeste, o fez mudar de rumo, impelindo-o para sul e deixando-o praticamente inutilizado. Era um navio da Virgínia chamado Venus e tinha cerca de quatrocentos escravos a bordo, como sardinhas em lata. Bem, partiu de África com quatrocentos, mas nem todos sobreviveram. Muitos morreram no mar. As condições a bordo eram inimagináveis, no mínimo. De qualquer forma, o Venus afundou finalmente a cerca de uma milha da costa, perto de Cumberland Island. Como os escravos estavam agrilhoados, quase todos morreram afogados. Uns quantos agarraram-se aos destroços e deram à costa, no meio da tempestade, em Dark Island, como ficou conhecida. Ou Dark Isle. Não tinha nome, em 1760. Foram acolhidos pelos fugitivos da Georgia e, juntos, construíram uma pequena comunidade. Duzentos anos depois, toda a gente morreu ou mudou para outras paragens, e agora a ilha está deserta.
Bruce bebeu um gole de café e esperou por uma reação.
— Interessante, mas eu não escrevo livros de História — disse Mercer.
— Onde está o chamariz? Há algum sinal de enredo? — perguntou Thomas.
Bruce sorriu e agarrou num livro fininho e simples do tamanho de um vulgar livro de bolso. Mostrou-lhes o título: A história tenebrosa de Dark Isle, da autoria de Lovely Jackson.
Nenhum dos dois estendeu a mão para pegar no livro, o que não incomodou Bruce.
— Isto é uma edição de autor — disse — que talvez tenha vendido uns trinta exemplares. Foi escrito pela última herdeira viva de Dark Isle ou, pelo menos, é assim que ela se intitula. A Lovely Jackson vive aqui, em Camino, perto das antigas fábricas de conservas, num bairro chamado The Docks.
— Eu sei onde fica — disse Mercer.
— Ela diz ter nascido em Dark Isle, em 1940, e saído de lá com a mãe quando tinha quinze anos.
— Como é que a conheces?
— Veio cá pela primeira vez há uns anos, com um saco cheio destes livros, e queria fazer uma grande sessão de autógrafos. Como já me ouviste queixar, este pessoal que faz edições de autor consegue dar com um livreiro em doido. Muito insistente, muito exigente. Tento evitá-los, mas gostei muito da Lovely, e a sua história é fascinante. Fiquei muito impressionado com ela. Fizemos uma sessão de autógrafos. Recorri aos nossos amigos, a maioria dos quais estão dispostos a fazer qualquer coisa em troca de um copo de vinho, e tivemos um bonito evento. A Lovely ficou eternamente grata.
— Continuo à espera de um enredo — disse Thomas secamente.
— Aqui está ele. Sendo Florida como é, os agentes imobiliários vasculharam cada centímetro quadrado do estado à procura de uma praia inexplorada. Encontraram Dark Isle há uns anos, mas havia um grande problema. A ilha é demasiado pequena para justificar o custo de uma ponte. As promotoras nunca conseguiriam projetar apartamentos, hotéis, parques aquáticos e lojas de T-shirts, etc., em número suficiente para convencer o Estado a construir uma ponte. Por isso, Dark Isle estava interdita. Mas o furacão Leo mudou isso tudo. O seu olho passou diretamente sobre a ilha, separou a ponta norte e acumulou toneladas de areia, formando um enorme recife que liga a ponta sul a um local chamado Dick’s Harbor, no continente. Os engenheiros dizem agora que a construção de uma ponte ficaria muito mais barata. É claro que as promotoras imobiliárias andam todas em cima disso, como abutres, e contam com o apoio dos seus amigalhaços, em Tallahassee.
— Então, o enredo é a Lovely Jackson — disse Thomas.
— Isso mesmo. Ela alega ser a única proprietária.
— Se não mora lá — disse Mercer —, porque não há de vender a a ilha simplesmente às promotoras imobiliárias?
Bruce atirou o livro para um monte e bebeu o seu café. Sorriu e disse:
— Porque é solo sagrado. O seu povo está lá sepultado. Uma das suas bisavós, uma mulher chamada Nalla, estava a bordo do Venus. A Lovely não vende. Ponto final.
— E qual é a posição das promotoras? — inquiriu Thomas.
— Têm advogados e são duros de roer. Dizem que não há sequer registo de que a Lovely tenha nascido na ilha. Lembrem-se de que ela é a única testemunha viva. Todos os outros familiares morreram há décadas.
— E os maus da fita têm grandes planos? — perguntou Mercer.
— Estás a brincar? Condomínios, complexos turísticos, campos de golfe. Há quem diga que até firmaram um acordo com os Seminoles para um casino. O mais próximo fica a duas horas de distância. Toda a ilha ficará asfaltada dentro de três anos.
— E a Lovely não tem dinheiro para advogados?
— Claro que não. Tem oitenta e tal anos e recebe todos os meses da Segurança Social um cheque de um pequeno montante.
— Oitenta e tal anos? — repetiu Mercer. — Tens a certeza?
— Não. Não existe certidão de nascimento nem qualquer tipo de registo. Se leres o livro dela, e sugiro que o faças de imediato, vais perceber o quão isoladas viveram estas pessoas durante séculos.
— Já guardei livros para a viagem — disse Mercer.
— Está bem, isso é lá contigo, mas deixa-me dar-te um «cheirinho». Uma razão para estarem tão isoladas foi porque Nalla era uma feiticeira africana, uma espécie de sacerdotisa vudu. Numa cena que irás recordar durante muito tempo, ela lançou uma maldição sobre a ilha para a proteger dos forasteiros.
Thomas abanou a cabeça e disse:
— Agora, já deteto aí um enredo.
— E gostas dele?
— Gosto.
— Vou começar a ler no avião — disse Mercer.
— Envia-me uma mensagem da Escócia, quando terminares.
3.
Assim que o avião estabilizou, algures sobre a Carolina do Sul, Mercer tirou o livro do saco e analisou a capa. A ilustração não era má e mostrava uma estrada de terra estreita ladeada por enormes carvalhos e tufos de barbas-de-velho que chegavam quase ao chão. As árvores tornavam-se mais escuras e desvanecidas junto ao título: A História Tenebrosa de Dark Isle. O nome da autora vinha na parte inferior: Lovely Jackson. Lá dentro, havia uma página com o título e a ficha técnica. Tinha sido dado à estampa por uma pequena editora vanity, em Orlando.
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