Bombardeamento
O vasto céu arrebatador enchia-se de luz, a perfeita abóbada noturna dando lugar ao dia. Um sem-número de mundos cor de prata dissolvia-se acima do horizonte: o Sol preparava-se para nascer nesta quietude; nem o vento bulia.
Um ponto negro surgiu na ampla imensidão. Era um avião que cruzava lá no alto a misteriosa aurora. O zunido mudo do seu motor perdia-se no ar insondável: qual espetro, deslizava pelo firmamento intangível, a única coisa que bulia no céu e na terra.
O mapa inconsciente espraiava-se por baixo dele: a planura extensa, a praia comprida e alva, e o mar, ali expostos à mercê do seu olho célere.
À face da planura, aldeias e cidades; as habitações de homens que haviam confiado nos céus e tinham ousado povoar a terra.
O avião deu uma volta no céu e começou a circundar a vila.
Lá muito em baixo, a vila dormia, repousada na costa que tinha como segura; sombras violáceas arrimavam-se aos edifícios pálidos; não havia movimento nas ruas nem fumo nas chaminés. Os barcos jaziam imóveis no porto cercano; os mastros elevando-se da água esverdeada como um juncal cerrado, e no meio dele, as largas chaminés e as torres de artilharia dos navios de guerra assemelhavam-se a plantas ignotas. Para lá do robusto paredão, o mar era liso qual salva de prata; não se ouvia um som onde quer que fosse.
O avião desceu numa espiral lenta sobre a vila, cindindo um caminho invisível pelo ar perlado. Era como se um mensageiro celestial descesse sobre os vilãos adormecidos.
De súbito, um grito irrompeu da garganta do campanário. Por um instante, o céu pareceu tremer com a estocada daquele grito de terror arrancado à garganta pétrea. Por certo que a vila acordaria em pânico — e, porém, isso não aconteceu, nada se agitou. Nenhum som ou movimento ocorreu em nenhuma das ruas, e o céu não deu qualquer sinal.
O avião continuou a sua descida até que, visto do campanário, se assemelhava a um mosquito; então, dele caiu algo que lampejou no ar, uma centelha de fogo.
Ao grito seguira-se o silêncio.
O avião, agora magnificamente suspenso no céu, observava os edifícios lá em baixo como se esperasse que uma coisa estranha acontecesse; então, como que por sortilégio dos olhos mágicos daquele inseto, um grupo de casas desabou, e um rugido brotou da terra ferida.
O bombardeamento começara. A enorme peça de artilharia escondida nas dunas, na Bélgica, tinha obedecido ao sinal.
Ainda assim, a formosa superfície da espraiada vila não evidenciava qualquer alteração, salvo no lugar onde as casas tinham ruído. O quanto a vila tardava em despertar! A aurora iluminou-se, pintando as fachadas dos edifícios de rosa e amarelo-pálidos. As ruas vazias e imaculadas cortavam a vila em quarteirões bem definidos; a matriz da vila aberta sobre a terra, com as suas escrupulosas orlas delimitadas por muros e canais, cintilava como um mapa envernizado.
Depois, a sirene no campanário berrou de novo; ao seu lamento seguiu-se um novo rugido, e um buraco dissonante escancarou-se na praça central de vila.
À coca, o avião descreveu mais um círculo perfeito.
E, por fim, sinais de terror e desnorteamento despontaram no formigueiro humano, lá em baixo. Anões transtornados precipitaram-se das casas: para um lado e para o outro corriam eles, lançavam-se para fendas no chão: escaravelhos blindados e pressurosos investiam pelas ruas; jatos brancos de fumo erguiam-se das locomotivas na estação de caminho de ferro; o porto latejava.
Outra vez um estrondo; uma nuvem de destroços foi cuspida para o ar como se de um vulcão se tratasse, e chamas pularam-lhe no encalço. Uma parte do desembarcadouro que continha um barracão adernou, como que embriagada, e caiu ao mar num chape.
A praia fervilhava então de bichos; o enxame humano invadia o areal, de olhos fixos no ser maléfico e alado que voava no céu, e a cada explosão tombavam de joelhos, feitos devotos desesperados.
O avião cabriolava no céu, rodopiando atrás da sua cauda num êxtase autogratificante. Lá em baixo, entre as dunas, conseguia avistar as silhuetas negras e minúsculas dos homens que manejavam as peças de defesa antiaérea. Eram os defensores da vila; tinham ordens para abater um mosquito que esvoaçava num céu sem limites. As nuvenzinhas que rebentavam à luz do Sol eram como beijos materializados.
O rosto da vila começara a evidenciar uma curiosa mudança: cicatrizes semelhantes às marcas deixadas pela varíola, e à medida que se adensavam na sua pulcra face pareciam atacadas por uma criatura gigantesca e invisível que a estraçoava e roía com garras e dentes. Apareceram golpes nas ruas, feridas extensas com arestas irregulares. Desamparada, aberta, exposta aos céus, trejeitava com as suas feições mutiladas.
Não obstante, o Sol nasceu, dourando o avião, e este riu-se. Riu-se das feições convulsionadas da vila, da praia apinhada de bicheza, do magote de formigas-pessoas que se precipitava pelos portões da vila e enchia as estradas brancas; ria-se dos navios de guerra que abandonavam o porto, um por um, numa procissão solene, as bocas das suas armas escancaradas e sem serventia junto às amuradas. Com um derradeiro adejar das reluzentes asas, lançou-se-lhe qual seta em direção ao solo, esquivando-se aos beijos dos estilhaços, seduzindo-os, metendo-se com eles, brincando com eles: depois, entregue a mensagem, terminada a brincadeira, subiu rumo ao brilho ofuscante do Sol e desapareceu. Um ponto no céu infinito, e a seguir nada — e a vila ficou em bolandas.
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