Bombardeamento

O vasto céu arrebatador enchia-se de luz, a perfeita abóbada noturna dando lugar ao dia. Um sem-número de mundos cor de prata dissolvia-se acima do horizonte: o Sol preparava-se para nascer nesta quietude; nem o vento bulia.

Um ponto negro surgiu na ampla imensidão. Era um avião que cruzava lá no alto a misteriosa aurora. O zunido mudo do seu motor perdia-se no ar insondável: qual espetro, deslizava pelo firmamento intangível, a única coisa que bulia no céu e na terra.

O mapa inconsciente espraiava-se por baixo dele: a planura extensa, a praia comprida e alva, e o mar, ali expostos à mercê do seu olho célere.

À face da planura, aldeias e cidades; as habitações de homens que haviam confiado nos céus e tinham ousado povoar a terra.

O avião deu uma volta no céu e começou a circundar a vila.

Luísa Sobral vem ao É Desta Que Leio Isto. Quer ler "Apenas Miúdos", de Patti Smith? Junte-se à conversa

Luísa Sobral junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 14 de setembro, pelas 21h.

Habituada a recomendar leituras nas suas redes sociais, traz um livro para o clube É Desta Que Leio Isto — e não deixa a música de fora: "Apenas Miúdos", de Patti Smith.

"Apenas Miúdos", de Patti Smith

Este é o primeiro livro de Patti Smith em prosa. É um livro de memórias — que começa no Verão em que Coltrane morreu, do Verão do amor livre e de todos os motins, do Verão em que conheceu a figura central deste livro — o lendário fotógrafo americano Robert Mapplethorpe. Mas é também um retrato de época — dos dias do Chelsea Hotel e de Nova Iorque no fim dos anos 1960 — e uma comovente história de juventude e amizade.

Just Kids é uma fábula em que encontramos poesia, rock’n’roll, sexo e arte que começa numa história de amor e acaba numa elegia.

Sobre Luísa Sobral:

Luísa Sobral é considerada uma das cantoras-compositoras mais importantes da nova geração de músicos portugueses. Estreou-se em 2011 com ‘The Cherry on My Cake’. Seguem-se ‘There’s A Flower In My Bedroom’ (2013), com convidados como Jamie Cullum, António Zambujo e Mário Laginha, ‘Lu-Pu-I-Pi-Sa-Pa’ (2014), destinado ao público infantil, e ‘Luísa’ (2016), gravado em Los Angeles. ‘Rosa’, o quinto álbum de originais, chegou em 2018.

"A sua faceta de compositora vai-se destacando ao longo dos anos, chegando a compor para artistas como Ana Moura, António Zambujo, Gisela João, Sara Correia, Mayra Andrade, entre muitos outros. Em 2017, assina ‘Amar Pelos Dois’, que entrega ao irmão, Salvador Sobral, para interpretar. A parceria fraterna revela-se um estrondoso sucesso: Portugal conquista a sua primeira vitória de sempre na Eurovisão", pode ler-se na sua biografia.

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Lá muito em baixo, a vila dormia, repousada na costa que tinha como segura; sombras violáceas arrimavam-se aos edifícios pálidos; não havia movimento nas ruas nem fumo nas chaminés. Os barcos jaziam imóveis no porto cercano; os mastros elevando-se da água esverdeada como um juncal cerrado, e no meio dele, as largas chaminés e as torres de artilharia dos navios de guerra assemelhavam-se a plantas ignotas. Para lá do robusto paredão, o mar era liso qual salva de prata; não se ouvia um som onde quer que fosse.

O avião desceu numa espiral lenta sobre a vila, cindindo um caminho invisível pelo ar perlado. Era como se um mensageiro celestial descesse sobre os vilãos adormecidos.

De súbito, um grito irrompeu da garganta do campanário. Por um instante, o céu pareceu tremer com a estocada daquele grito de terror arrancado à garganta pétrea. Por certo que a vila acordaria em pânico — e, porém, isso não aconteceu, nada se agitou. Nenhum som ou movimento ocorreu em nenhuma das ruas, e o céu não deu qualquer sinal.

O avião continuou a sua descida até que, visto do campanário, se assemelhava a um mosquito; então, dele caiu algo que lampejou no ar, uma centelha de fogo.

Ao grito seguira-se o silêncio.

O avião, agora magnificamente suspenso no céu, observava os edifícios lá em baixo como se esperasse que uma coisa estranha acontecesse; então, como que por sortilégio dos olhos mágicos daquele inseto, um grupo de casas desabou, e um rugido brotou da terra ferida.

O bombardeamento começara. A enorme peça de artilharia escondida nas dunas, na Bélgica, tinha obedecido ao sinal.

Ainda assim, a formosa superfície da espraiada vila não evidenciava qualquer alteração, salvo no lugar onde as casas tinham ruído. O quanto a vila tardava em despertar! A aurora iluminou-se, pintando as fachadas dos edifícios de rosa e amarelo-pálidos. As ruas vazias e imaculadas cortavam a vila em quarteirões bem definidos; a matriz da vila aberta sobre a terra, com as suas escrupulosas orlas delimitadas por muros e canais, cintilava como um mapa envernizado.

Livro: "A Zona Interdita"

Autor: Mary Borden

Editora: Minotauro

Data de Lançamento: 14 de setembro de 2023

Preço: € 15,90

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Depois, a sirene no campanário berrou de novo; ao seu lamento seguiu-se um novo rugido, e um buraco dissonante escancarou-se na praça central de vila.

À coca, o avião descreveu mais um círculo perfeito.

E, por fim, sinais de terror e desnorteamento despontaram no formigueiro humano, lá em baixo. Anões transtornados precipitaram-se das casas: para um lado e para o outro corriam eles, lançavam-se para fendas no chão: escaravelhos blindados e pressurosos investiam pelas ruas; jatos brancos de fumo erguiam-se das locomotivas na estação de caminho de ferro; o porto latejava.

Outra vez um estrondo; uma nuvem de destroços foi cuspida para o ar como se de um vulcão se tratasse, e chamas pularam-lhe no encalço. Uma parte do desembarcadouro que continha um barracão adernou, como que embriagada, e caiu ao mar num chape.

A praia fervilhava então de bichos; o enxame humano invadia o areal, de olhos fixos no ser maléfico e alado que voava no céu, e a cada explosão tombavam de joelhos, feitos devotos desesperados.

O avião cabriolava no céu, rodopiando atrás da sua cauda num êxtase autogratificante. Lá em baixo, entre as dunas, conseguia avistar as silhuetas negras e minúsculas dos homens que manejavam as peças de defesa antiaérea. Eram os defensores da vila; tinham ordens para abater um mosquito que esvoaçava num céu sem limites. As nuvenzinhas que rebentavam à luz do Sol eram como beijos materializados.

O rosto da vila começara a evidenciar uma curiosa mudança: cicatrizes semelhantes às marcas deixadas pela varíola, e à medida que se adensavam na sua pulcra face pareciam atacadas por uma criatura gigantesca e invisível que a estraçoava e roía com garras e dentes. Apareceram golpes nas ruas, feridas extensas com arestas irregulares. Desamparada, aberta, exposta aos céus, trejeitava com as suas feições mutiladas.

Não obstante, o Sol nasceu, dourando o avião, e este riu-se. Riu-se das feições convulsionadas da vila, da praia apinhada de bicheza, do magote de formigas-pessoas que se precipitava pelos portões da vila e enchia as estradas brancas; ria-se dos navios de guerra que abandonavam o porto, um por um, numa procissão solene, as bocas das suas armas escancaradas e sem serventia junto às amuradas. Com um derradeiro adejar das reluzentes asas, lançou-se-lhe qual seta em direção ao solo, esquivando-se aos beijos dos estilhaços, seduzindo-os, metendo-se com eles, brincando com eles: depois, entregue a mensagem, terminada a brincadeira, subiu rumo ao brilho ofuscante do Sol e desapareceu. Um ponto no céu infinito, e a seguir nada — e a vila ficou em bolandas.