Este livro foi escrito em 2018 e a sua narrativa situa-se em 2017, quando a guerra no Donbas estava num impasse. Muito mudou desde então. Como olha agora para "Abelhas Cinzentas"?

Bem, é um sentimento muito estranho. A altura em que escrevi isto quase parece um período feliz, porque esta "zona cinzenta" já não existe sequer, foi destruída e ocupada pelos russos. Não sei o que aconteceu aos seus habitantes, e havia muitos deles, milhares, a viver por lá. Não posso dizer que me sinta nostálgico em relação a esses tempos, mas é a prova de que qualquer situação má pode piorar. É preciso pensar o que mais pode acontecer para avaliarmos o perigo do nosso momento atual, mesmo que esse não seja o máximo perigo possível.

No que toca à zona cinzenta, tem referido em várias entrevistas que, apesar das aparentes semelhanças entre a Rússia e a Ucrânia, os seus povos têm mentalidades muito diferentes. Em "Abelhas Cinzentas", a ideia da zona cinzenta não parece ser apenas geográfica, mas também mental, já que descreve a população como ambivalente quanto à guerra. Como se explica isto?

A grande diferença é que os russos, tal como os soviéticos, têm uma mentalidade coletiva. Estão preparados para tudo quando estão num grande grupo ou numa multidão. Já os ucranianos sempre foram individualistas. O que acontece é que na zona leste do país e na Crimeia, esta mentalidade coletiva permaneceu, mesmo depois do colapso da União Soviética, porque os políticos ucranianos nunca conseguiram perceber como unir as pessoas, integrar as várias regiões num só país. Estas pessoas nas extremidades da Ucrânia vivem sob o controlo dos mafiosos e dos oligarcas locais. Por exemplo, no Donbas, a sua nostalgia pelo período soviético foi apoiada pela televisão russa. Existe, ainda hoje, um canal chamado "Nostalgiya", que pode ser acedido por satélite, e que mostra filmes e programas soviéticos. É possível manter as pessoas nesta bolha se elas quiserem. Os habitantes do Donbas foram levados a pensar que Putin está a restaurar a vida soviética — é por isso que pensaram que era bom voltar atrás no tempo. A maioria não tem escolarização, são pessoas trabalhadoras, são proletariado, mineiros.

É uma área maioritariamente industrial, não é?

Sim, eles não viajam, nunca foram ao ocidente e não viajam muito na Ucrânia. O que significa que o seu acesso à informação foi por si mesmas limitado. Só a população mais nova das grandes cidades como Donestk e Lugansk é que é mais moderna e bem-viajada. Há um enorme fosso entre os habitantes mais contemporâneos e urbanos e os restantes 95% da população.

Aquando da invasão, entrevistámos um empresário português que fugiu de Odessa e ele contou-nos como o seu sócio, luso-ucraniano, confessava algum saudosismo, particularmente quanto à estabilidade que a vida na União Soviética proporcionava em relação ao tempo atual.

Mas esse também é um elemento de diferença das mentalidades, porque para a maioria dos ucranianos, a liberdade é mais importante do que a estabilidade — pelo contrário, para os russos e os soviéticos, esse sempre foi o aspeto mais importante. Na verdade, a propaganda soviética que passou constantemente desde a Segunda Guerra Mundial defendia que podíamos viver com pobreza, mas ao menos não passaríamos por outra guerra. Ou seja, a ausência de guerra era, por si só, a grande dádiva e deveríamos apreciá-la e não pedir mais nada.

"A vida mudou completamente, está de pernas para o ar. Não consigo escrever ficção, não consigo continuar romances nos quais estava a trabalhar"

Em relação à população do Donbas, refere na nota prévia do livro que esta ambivalência é uma forma de sobrevivência. E o protagonista, Sergeyich, por exemplo, deixa de notar nas explosões ao longe, passam a fazer parte do silêncio. Parece uma ideia de que as pessoas têm de se adaptar às circunstâncias.

Mas isso é também parte dessa mentalidade coletiva. Não queres mostrar a tua cara, tens medo de te destacar. Deves ser cinzento como toda a gente, para que ninguém te diferencie dos outros milhões de pessoas. A ideia do 'cinzento' é que tudo o que é cinzento é invisível, porque não prestamos atenção a esta cor. Da primeira vez que fui ao Donbas, ainda antes da guerra e dos eventos da praça Maidan [uma onda de manifestações e de agitação civil na Ucrânia, entre 2013 e 2014], fiquei chocado como praticamente não havia, por exemplo, vedações pintadas com cores vivas. Toda a gente quis usar preto ou branco ou cinzento, ou seja, cores que não atraem atenção. É quase como que permanece o medo dos tempos de Estaline: escondes-te, vives invisível e ficas feliz de morrer na tua cama e não num gulag.

Como que uma cicatriz mental que permanece?

Sim, é um medo genético.

Ao mesmo tempo, ao ler este livro, sente-se que Sergeyich não só vive preocupado com a segurança das suas abelhas, como também tem saudades das pessoas que o deixaram. Esta ideia de cuidado e da necessidade humana por conexões, mesmo em tempos de guerra, foi uma ideia que quis explorar?

Em tempos de dificuldade, as pessoas querem estar com alguém, querem ter esteios na sua vida. No meu livro "Death and the Penguin", que foi editado há 20 anos em Portugal [publicado como "Morte de um Estranho", pela Temas & Debates, em 2002], eu abordei este tema, porque passa-se num tempo de crise e uma pessoa está a sobreviver por si só e está pronta para sobreviver com mais alguém, com quem tome conta de si se algo acontecer.

E, neste caso, estamos a falar de um homem que, como menciona no livro, viu-se completamente abalado pela guerra, desprovido daquilo e de quem amava. O que permanece é a noção de responsabilidade que tem quanto às suas abelhas. Há uma ideia de manter a missão, mesmo quando tudo o resto colapsa?

A apicultura na Ucrânia é muito importante no Donbas —  e é uma atividade que faz uma pessoa tornar-se mais individualista, porque costuma estar sozinha com as abelhas. Os apicultores sempre foram vistos como pessoas sábias e nunca agressivas. Por isso, apesar de ele manter esta atitude política ambivalente, não deixa de ser ucraniano, porque é teimoso, individualista — é ele que vai sozinho cobrir o corpo do soldado com neve quando o Pashka se recusa a ajudá-lo. Ele toma decisões por si só, porque quando se trata de responsabilidade coletiva, estás sempre à espera que te digam o que fazer. E se és capaz de fazê-lo por ti mesmo, quer dizer que já não fazes parte [desse grupo coletivo]. Diria que é um caso de identidade mista, da identidade da fronteira, entre o coletivo e o ucraniano.

É interessante, porque no início do livro, as duas personagens que acompanhamos parecem incorporar esses dois tipos de mentalidades de que fala: Paskha parece ser mais "separatista" ou "russo" e Sergeyich mais "ucraniano".

Sim, porque ele [Sergeyich] é um agricultor. Perto de 300 mil ucranianos foram deportados nos anos 30 porque não quiseram dar a sua terra ao estado, não quiseram quintas coletivizadas. De certa forma, estiveram a proteger o que era seu até ser-lhes tirado à força. Nesta lógica, Sergeyich é ucraniano, porque mantém as suas colmeias, são o seu tesouro.

No que toca à necessidade de adaptação aos tempos de guerra, teve de fazê-lo quando a Ucrânia foi invadida em fevereiro. Pode descrever como foram estes últimos meses para si?

Eu e a minha mulher tornámo-nos praticamente refugiados. Os nossos filhos mais velhos estão em Kiev, o nosso mais novo já tinha saído da cidade antes da guerra e esteve connosco durante uma semana na zona oeste da Ucrânia, mas depois regressou a Kiev e esteve lá durante todo o tempo, debaixo de bombardeamentos. A vida mudou completamente, está de pernas para o ar. Não consigo escrever ficção, não consigo continuar romances nos quais estava a trabalhar. É como um daqueles filmes de estrada, às vezes muito triste. O nosso carro está neste momento em Berlim — nos últimos dois meses, viajámos perto de oito mil quilómetros pela Europa. Vamos voltar para a Ucrânia, mas eu vou continuar a viajar, porque tenho mais eventos.

Algumas das notas que escreveu para o "Diary of an Invasion" e alguns artigos de opinião que publicou dias antes da invasão demonstram que não queria acreditar que a guerra iria acontecer. Para quem nunca experienciou isso — ou sequer imaginou tal cenário —, pode descrever como foi esse processo mental?

Eu estava a pensar que a escalada era possível e que aconteceria de certeza, mas apenas no Donbas. Mas na Ucrânia, tradicionalmente não confiamos em políticos e não gostamos dos líderes políticos, por isso, cada vez que Zelensky repetia, todos os dias, "não vai haver guerra, preparem os vossos piqueniques", eu ficava cada vez mais certo de que a guerra chegaria. E depois, claro, chegou e quando fomos acordados por explosões em Kiev às cinco da manhã foi o fim da nossa vida anterior. Fiquei paralisado durante uma hora, estava em frente à janela a olhar para a rua e não estava lá ninguém, nem carros a passar. Passados 40 minutos, a senhora da casa à nossa frente começou a passear dois cães. Foi como se a vida retomasse lentamente, mas já aconteceu com um sentimento completamente diferente, de total ausência de estabilidade. Fui então com a minha mulher e com um amigo que estava connosco procurar por abrigos anti-bomba perto de nossa casa.

Essa nova perspetiva a olhar para a cidade, foi um sentimento quase alienígena?

Sim, e é interessante porque durante vários anos tivemos setas vermelhas pintadas nos edifícios a mostrar as direções para o abrigo anti-bomba mais próximo e eu habituei-me a elas. Nunca procurei por nenhum abrigo, nem a morada nem em que estado se encontrava. Tornou-se parte da paisagem. O perigo estava lá à vista, mas apenas programado.

"Claro que senti desconforto psicológico, especialmente quando a maioria dos intelectuais ucranianos posiciona-se contra a língua russa de forma muito agressiva. Eu compreendo-os, mas a minha língua não pertence a Putin ou ao Kremlin, é uma versão ucraniana da língua russa"

Tem defendido a ideia de que a língua ucraniana é uma arma de resistência contra a invasão russa. Pode elaborar quanto a isso?

Bem, a relação entre a Rússia e a Ucrânia inclui também 400 anos de tentativas russas de eliminar a língua ucraniana. Depois da Batalha de Poltava, em 1711, na qual os ucranianos foram derrotados por Pedro, o Grande, ele emitiu um decreto a banir livros religiosos em língua ucraniana. Tem sido sempre uma guerra dos russos contra a identidade ucraniana, porque esta faz-se de língua, história e cultura. Para quebrá-la, uma das formas mais fáceis é forçar as pessoas a esquecerem-se da sua língua nativa — neste caso, obrigar ucranianos a falar russo. Aliás, a língua russa foi usada como um instrumento de assimilação, porque passou a ser entendido em países como o Uzbequistão, a Ucrânia ou a Bielorrússia, que se uma pessoa souber falar russo, vai ter uma carreira, ganhar dinheiro, ter uma vida melhor. Se falar ucraniano, vai ser um agricultor, um camponês, uma pessoa pobre. E os camponeses na Ucrânia e na União Soviética, até aos anos 60, não tinham sequer passaportes, não tinham o direito de sair da sua aldeia para uma vila ou uma cidade.

Abelhas Cinzentas
Abelhas Cinzentas créditos: Porto Editora

Livro: Abelhas Cinzentas

Autor: Andrei Kurkov

Editora: Porto Editora

Preço: 16,92€

Estavam, portanto, num estado de quase servidão?

Sim, era servidão, praticamente. Se falasses ucraniano, manter-te-ias um servo; se mudasses para russo, terias — especialmente se te tornasses num membro do Partido Comunista — um futuro melhor. Esta é uma das razões da guerra, porque para muitos ucranianos, o russo é a língua do inimigo, porque foi usada para destruir a identidade ucraniana. E agora o ucraniano está lentamente a regressar, os mais jovens gostam de falar esta língua — mesmo que a maioria seja bilingue — porque está na moda, é uma língua de resistência cultural. E a literatura de língua ucraniana na Ucrânia é muito mais dinâmica que a russa. Eu prevejo que haja menos russo a ser falado no futuro, porque hoje 40% das pessoas falam russo, mas mais de metade deles são russos étnicos, é a sua língua nativa, é confortável e não precisam de aprender outra. Se viveres numa cidade como Kharkiv ou Odessa, onde 95% das pessoas fala russo, não há incentivos a falar ucraniano.

E quando diz que a língua foi um pretexto para a guerra, também tem a ver com o argumento de que Kiev estava a perseguir as comunidades russófonas?

Só que Kiev também é uma cidade onde se fala russo. Eu cresci lá, na minha escola tínhamos à volta de 1200 estudantes, talvez menos, mas eu só conheci um rapaz proveniente de uma família que falava ucraniano.

O Andrei é também um ucraniano de coração, mas é etnicamente russo

Sim, e escrevo ficção em russo. Tenho 61 anos, acho que a geração mais nova de escritores é sobretudo falante de ucraniano. Ainda temos escritores russófonos, mas são uma minoria.

Alguma vez sentiu algum tipo de sentimento contraditório quanto a essa dualidade, pelo menos desde 2014?

Já tive discussões com nacionalistas sobre o facto de escrever em russo — algo que fiz durante quase 32 anos, desde a independência da Ucrânia. Julgo que toda a gente tem o direito de usar a sua língua nativa. Se fosse ucraniano étnico, provavelmente teria começado a escrever em ucraniano a partir de 1991, mas a minha língua é russa. Claro que senti desconforto psicológico, especialmente quando a maioria dos intelectuais ucranianos posiciona-se contra a língua russa de forma muito agressiva. Eu compreendo-os, mas a minha língua não pertence a Putin ou ao Kremlin, é uma versão ucraniana da língua russa, que já existe há vários séculos na Ucrânia. Para mim, o Gogol é um escritor ucraniano. Mesmo escrevendo em russo, ele usou tantas palavras e frases ucranianas que as trouxe para a língua russa.

"Quero que a literatura volte ao seu estado normal, em que há ficção sobre a guerra, romances históricos, histórias de amor, ficção científica, etc. Não quero a dominação da guerra enquanto tópico sobre a arte e a cultura na Ucrânia depois do conflito acabar"

E os seus temas também? Há a disputa se "Almas Mortas" é um romance ucraniano ou russo.

Se o compararem com os escritores russos clássicos, nem um deles escreveu com o humor, com a magia, com este tipo de ironia em conto de fadas. Isso vem da Ucrânia, porque temos uma imaginação mais louca, há mais tradições de narrativa oral. Durante séculos, tivemos poetas vagabundos errantes com instrumentos musicais muito complexos, como a Kobza ou a Bandura, que escreviam baladas sobre temas da história ucraniana. Os russos não tinham essa tradição.

Fala de humor, sátira, contos de fadas, que também podem ser características atribuídas à sua escrita. Mas tem dito que neste momento não há espaço para humor na ficção, pelo menos na Ucrânia.

Na ficção, não, mas na vida quotidiana tem surgido uma nova vaga de humor que também é uma forma de resistência, sobre a guerra ou as declarações de Putin. Os ucranianos não são fatalistas como os russos, eles não protestam, dizem que não podem mudar nada. Os ucranianos, quando estão infelizes, vão para as ruas e organizam eventos como os de 2004 [Revolução Laranja] ou os de 2013 [Euromaidan]. Há uma diferença enorme entre estas duas nações. Se estivermos preparados para protestar e lutar pelo que acreditamos, estaremos muito mais abertos ao futuro, porque saberemos que podemos mudar as coisas. Os russos não: o Czar é concedido por Deus, deves amá-lo ou matá-lo, e amar o seguinte. É esta a tradição russa.

Andrey Kurkov
Andrey Kurkov créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Escreveu também que "guerra" e "livros" são dois conceitos incompatíveis, e que tem sido difícil para os escritores ucranianos focarem-se em ficção. Mas qual pensa que será o legado cultural desta guerra para o futuro?

Desde 2014, com a anexação da Crimeia, temos tido muito mais livros sobre a guerra do que sobre histórias de amor ou policiais. Isto é um pouco preocupante, porque lembro-me dos anos 60 e 70, quando o principal tópico dos livros na União Soviética era a II Guerra Mundial, sobre os nazis e os heróis soviéticos. Estamos a viver uma repetição, de parte da literatura ser substituída por propaganda — não comissionada pelo estado, mas porque muitos escritores sentem que tem escrever sobre isto.

Repetir as mesmas linhas narrativas uma e outra vez?

Sim, e eu não quero isso. Quero que a literatura volte ao seu estado normal, em que há ficção sobre a guerra, romances históricos, histórias de amor, ficção científica, etc. Não quero a dominação da guerra enquanto tópico sobre a arte e a cultura na Ucrânia depois do conflito acabar.

Mas a arte é muitas vezes o reflexo do estado mental do povo. Crê que os ucranianos vão adotar uma postura mais militante?

Radicalizada. Mas a sociedade já está assim. Alguns intelectuais estão à procura de inimigos dentro dos seus círculos. Este é outro perigo. Há cada vez mais discurso de ódio na Ucrânia. Direcionado à Rússia, sim, mas também aos membros da própria sociedade, muitos deles pró-ucranianos. Está a criar-se um clima de paranoia.

"[A União Soviética] Era o país do controlo total. O meu irmão mais velho, que agora tem 68 anos, era um dissidente que foi preso uma vez sob acusações de invadir um quiosque de gelados, quando na verdade foi detido porque estava a partilhar literatura proibida"

De uma perspetiva ocidental, e apesar de todas as diferenças entre si, sempre pareceu haver uma afinidade cultural entre a Rússia e a Ucrânia. Ela existia? E se sim, poderá alguma vez ser recuperada?

Havia, no que toca ao mundo do espetáculo. A Ucrânia era um mercado para o entretenimento russo praticamente até ao ano passado. No YouTube, era possível verificar que os ucranianos consumiam vídeos russos — de música pop, stand-up comedy, etc... —, mais até que vídeos ucranianos. Hoje, é o contrário, os ucranianos não querem saber da cultura ou do entretenimento russo e penso que continuará a ser assim. Os russos não perderam apenas a sua reputação, perderam a sua fé nesta guerra. O facto de estarem a bater em retirada e a fugir, a roubar carros a civis para abandonar a linha da frente. Foi aí que os ucranianos subitamente se aperceberam que são mais poderosos, são capazes de criar o seu mercado de entretenimento, de prestar atenção à própria cultura.

Viveu enquanto cidadão soviético durante um período significativo da sua vida. Como é que caracteriza este sentimento de perda que Putin parece nutrir quanto à União Soviética?

Era o país do controlo total. O meu irmão mais velho, que agora tem 68 anos, era um dissidente que foi preso uma vez sob acusações de invadir um quiosque de gelados, quando na verdade foi detido porque estava a partilhar literatura proibida. Eu lembro-me como o sistema lutava contra toda a gente que não concordava com o regime. Nessa altura, Putin era um oficial do KGB. Mas ele nunca deixou o KGB, nunca saiu deste estado sob o qual quer controlar tudo — e que toda a gente que discorde de si deve ser morta, exilada ou presa. Ele usou muitas narrativas nostálgicas direcionadas sobretudo à geração soviética: começou a elogiar Estaline — creio até que tentou introduzir uma pena criminal para quem comparar Estaline a Hitler. A sua frase mais repetida dos últimos 22 anos foi que o colapso da União Soviética foi a sua principal tragédia pessoal. É óbvio que ele quer restaurar isto, quer fazer 'da Rússia grande outra vez'.

Mas a atuação de Putin nas últimas duas décadas — na Geórgia, por exemplo — não parece mais até que está a tentar criar um novo Império Russo, ao invés de uma União Soviética?

Concordo, e acho que isso é até mais perigoso. Porque quando ele fala sobre o império, refere-se também à sua geografia, e a Finlândia e a Polónia fizeram parte desse império russo. É por isso que os polacos se sentem tão ameaçados e tão frágeis, tão dispostos a ajudar a Ucrânia. E ambos tornaram-se independentes. Foi uma coincidência feliz, a Revolução de 1917, pois enquanto o Exército Vermelho andava ocupado com a Ucrânia — havia quatro ou cinco exércitos a lutar no território desde 1917 até 1921 —, não havia bolcheviques suficientes para controlar a Polónia ou a Finlândia. Mas o governo soviético foi, por exemplo, capaz de controlar os livros escolares da Finlândia até um período tardio da União Soviética. Não deixavam os finlandeses escrever sobre a guerra Russo-Finlandesa de 1939. Que eles, ainda por cima, ganharam.

"Podemos dizer que, sim, esta é uma guerra entre os EUA e a Rússia através dos ucranianos, mas não nos podemos esquecer de que foi a Rússia que a começou contra a Ucrânia, não contra os EUA"

Pode alegar-se que a viagem de Sergeyich pelo país para manter as suas abelhas a salvo não é assim tão diferente dos refugiados ucranianos que tiveram de abandonar o país devido à invasão russa. Quais pensa que serão as consequências deste êxodo?

A longo prazo, a Ucrânia terá menos população do que antes, porque penso que até 30% dos refugiados não vão regressar. Em particular as populações do Donbas, cujas casas foram destruídas — em Mariupol, por exemplo. Não têm nada a que regressar e não querem voltar. Eu tenho conhecido muitos refugiados na Europa durante estas minhas viagens. Mantenho contacto com uma família de Druzhkivka, perto de Donetsk, que eu penso que não vai regressar.

Este criar de uma diáspora ucraniana pode criar mais consciencialização quanto à Ucrânia?

De uma forma, sim, mas há países onde a diáspora ucraniana já estava presente há muitos anos e era muito grande. O Canadá, por exemplo, onde há dois milhões de pessoas de origem ucraniana. A ministra dos Negócios Estrangeiros, Chrystia Freeland, tem origem ucraniana, por exemplo.

Temos visto numerosas formas de apoio do ocidente à causa ucraniana, mas estamos perante o inverno e a crise energética que o conflito tem causado na Europa. Como pensa que a solidariedade europeia se vai aguentar nos próximos meses?

O principal problema prende-se com a Alemanha e a França. Eu julgo que ambos têm reservas suficientes de gás até à primavera. Os preços subiram muito, por isso vai ser doloroso, e vai fazer com que o apoio da população esmoreça em relação ao passado. Mas a nível político, julgo que o apoio vai manter-se. Quero dizer, vai manter-se enquanto os americanos apoiarem também. Os EUA são os líderes do apoio à Ucrânia e os outros seguem-nos, por isso acho que vão manter a ajuda até a guerra terminar e os ucranianos recuperarem o seu território.

E como avalia as afirmações que a Ucrânia não passa de um joguete dos interesses americanos e da NATO contra a Rússia, de que é uma espécie de guerra tampão?

Temos uma guerra a vários níveis. No topo, a nível geopolítico, temos uma guerra entre a Rússia e os EUA; no nível mais subterrâneo, temos uma guerra da Rússia contra a Ucrânia e a identidade russa e para expandir o Império Russo. Podemos dizer que, sim, esta é uma guerra entre os EUA e a Rússia através dos ucranianos, mas não nos podemos esquecer de que foi a Rússia que a começou contra a Ucrânia, não contra os EUA.

Todos os prognósticos quanto ao fim da guerra têm falhado, e agora temos a mobilização parcial russa, os avanços do exército ucraniano no leste e os referendos feitos para justificar a anexação dos territórios ocupados pela Rússia. Talvez seja algo injusto perguntar-lhe isto, mas o que pensa que virá a seguir?

Considero que neste mês haverá, provavelmente, um grande escalar do conflito. Os russos estão a ficar sem munições. Eles usaram quase todo o seu stock soviético, estão a comprar mais munições no Irão e querem comprar a outros países, mas vão tentar manter os territórios que controlam. Vão enviar centenas de milhares de russos para a guerra sem preparação para lutar, e muitos vão ser mortos, mas Rússia já não têm tantos tanques como tinha, nem sistemas de artilharia. Ainda têm uma grande quantidade de aviões militares e bombardeiros, mas o exército ucraniano profissionalizou-se muito. Por isso, posso apenas dizer que é provável que, se a guerra não tiver terminado no próximo verão, vai ficar congelada, a nova frente de batalha vai ter mais de dois mil quilómetros. Com isso, vai ser criada uma nova “zona cinzenta”, mas esta não vai ter praticamente habitantes, porque tudo estará destruído.