Prólogo
A velha fitou Leah e depois sorriu, o rosto vincado de mil rugas. Leah pensou que ela devia ter, pelo menos, cento e cinquenta anos. Todas as crianças do primeiro ciclo diziam que era bruxa e uivavam como espíritos malévolos ao passarem pela cabana praticamente em ruínas, a caminho de casa através da aldeia, depois da escola. Entre os adultos, era conhecida por Megan, que recolhia pássaros feridos e usava preparados de ervas para lhes sarar as asas feridas. Havia quem dissesse que era louca, outros que tinha o dom de curar e estranhos poderes psíquicos.
A mãe de Leah tinha pena dela.
— Pobre velhota — dizia ela —, sozinha naquela casinha suja e húmida. — Depois dizia à filha para ir buscar uns ovos à capoeira e levá‑los a Megan.
O coração de Leah martelava de medo sempre que batia à porta em ruínas. Normalmente, Megan abria-a devagar, espreitava e tirava os ovos das mãos dela com um aceno de cabeça. A porta fechava‑se e Leah corria o mais depressa que podia de volta a casa.
Naquele dia, porém, depois de bater, a porta abrira‑se muito mais e a menina pôde ver por trás de Megan o fundo escuro da casita.
Megan continuava a fitá-la.
— Eu... eu... a mãe pensou que talvez gostasse de uns ovos. — Leah estendeu-lhe a caixa e ficou a ver os dedos compridos e ossudos a agarrarem‑na.
— Obrigada.
Leah ficou surpreendida com o tom suave. Megan não falava nada como uma bruxa.
— Porque é que não entras?
— Bem, eu...
Já um braço lhe envolvia os ombros e a puxava para dentro.
— Não posso ficar muito tempo. A mãe vai ficar a pensar para onde fui.
— Podes dizer-lhe que ficaste a tomar chá com a Megan, a bruxa — disse ela com uma gargalhada grave. — Senta‑te ali. Estou a fazer o chá. — Megan apontou para uma das poltronas surradas de cada lado de uma pequena lareira apagada.
Leah sentou‑se, nervosa, as mãos enfiadas por baixo das pernas. Olhou em volta da cozinha atulhada. Em todas as paredes viam-‑se prateleiras repletas de velhos frascos de café cheios de poções com cores estranhas. Megan tirou um frasco, abriu-o e pôs duas colheres de chá de um pó amarelo num velho bule de aço inoxidável. Juntou‑lhe água da chaleira, colocou-o num tabuleiro com mais duas chávenas e pousou-o numa mesa em frente de Leah. Baixou-se lentamente e sentou-se na outra poltrona.
— Importas‑te de servir, querida?
Leah assentiu, inclinou-se para a frente e verteu o líquido fumegante nas duas chávenas de porcelana lascada. Fungou. O líquido tinha um cheiro estranho e pungente.
— Está tudo bem, não estou a tentar envenenar‑te. Olha, vou dar um golinho no meu primeiro e podes ver se eu morro. É só chá de dente‑de‑leão. Vai fazer‑te bem. — Pegou na chávena com ambas as mãos e bebeu. — Experimenta.
Hesitante, Leah levou a chávena aos lábios, tentando respirar pela boca, o aroma pungente demasiado forte para ela. Provou e engoliu sem saborear.
— Ora bem, não foi assim tão mau, pois não?
Leah abanou a cabeça e pousou a chávena na mesa. Remexeu-se na poltrona, enquanto Megan esvaziava a chávena.
— Obrigada pelo chá, foi muito agradável. Tenho mesmo de ir andando. A mãe vai começar a...
— Tenho-te visto passar aqui todos os dias. Vais ser extraordinariamente bonita quando cresceres. Já se nota.
Leah corou, enquanto os penetrantes olhos verdes de Megan a observavam da cabeça aos pés.
— Talvez não seja a bênção que o mundo pensa que é. Toma cuidado. — Megan franziu o sobrolho e estendeu a mão por cima da mesa. Leah estremeceu quando os dedos ossudos se fecharam como garras em volta da mão e sentiu‑se inundada de pânico.
— Sim, mas... tenho de ir para casa.
Os olhos de Megan olhavam para lá de Leah e o corpo parecia rígido.
— Há maldade, sinto‑a. Tens de estar atenta. — A voz de Megan subia de tom e Leah ficou paralisada de terror. O aperto em volta da sua mão intensificou-se.
— Coisas antinaturais... coisas más... nunca te metas com a natureza, perturbas o padrão. Pobre alma... ele está perdido... condenado... Vai voltar à tua procura na charneca... e tu regressarás de tua livre vontade. Não podes alterar o destino... tens de ter cuidado com ele.
De súbito, o aperto em volta da sua mão afrouxou e Megan deixou‑se cair para trás na poltrona de olhos fechados. Leah pôs‑se de pé num salto e correu para a porta da frente, saindo para a rua. Não parou de correr até chegar à capoeira, ao fundo da pequena casa em banda onde vivia com os pais. Abriu o trinco e deixou‑se cair no chão, fazendo com que as galinhas debandassem.
Encostou a cabeça à parede de madeira e deixou que a respiração acalmasse.
As pessoas da aldeia tinham razão. Megan era louca. Que dissera ela sobre Leah ter cuidado? Era assustador. Tinha onze anos e não compreendia. Queria a mãe, mas não lhe podia contar o que tinha acontecido. A mãe ia pensar que inventara aquilo tudo e dizer que não era bonito espalhar boatos maldosos sobre uma pobre velhota indefesa.
Levantou-se e dirigiu‑se devagar para a porta das traseiras. O cheiro seguro do lar acalmou-a, e entrou na cozinha aquecida.
— Olá, Leah, mesmo a tempo do chá. Senta-‑te. — Doreen Thompson virou-se e sorriu, mas logo uma ruga de preocupação se lhe formou na testa. — Bem, Leah, o que se passa? Estás branca como a cal.
— Nada, mãe. Estou bem. Só tenho uma dor de barriga, mais nada.
— Dores de crescimento, é o mais provável. Tenta comer alguma coisa e tenho a certeza de que te vais sentir melhor.
Leah foi ter com a mãe e abraçou‑a com força.
— Bem, a que se deve isto tudo?
— Eu... eu adoro‑a, mãe. — Aconchegou-se nos braços reconfortantes e sentiu-se muito melhor.
Contudo, na semana seguinte, quando a mãe lhe pediu que levasse os ovos a casa de Megan, como era habitual, recusou terminantemente.
Megan morreu passados seis meses e Leah ficou contente.
Parte um
Junho de 1976 a outubro de 1977
1
Yorkshire, junho de 1976
Rose Delancey enfiou o pincel de pelo de marta de boa qualidade no frasco de terebentina. Pousou a paleta na bancada de trabalho cheia de manchas de tinta e afundou‑se na poltrona puída, afastando da cara o pesado cabelo arruivado. Pegou na fotografia a partir da qual estivera a trabalhar e comparou-‑a com a pintura acabada que descansava no cavalete na sua frente.
A parecença era excelente, embora achasse difícil distinguir entre uma égua lustrosa e outra qualquer. Contudo, enquanto tentava organizar uma mostra do seu trabalho para expor na galeria de Londres, pinturas como aquela -pagavam as contas.
O trabalho fora encomendado por um lavrador da terra rico que possuía três cavalos de corrida. Ondine, a égua castanha que a olhava sentimentalmente do quadro, era a número dois. O lavrador ia pagar‑lhe quinhentas libras por cada quadro. Isso permitir‑lhe‑ia substituir o telhado da casa de pedra labiríntica onde vivia com os filhos numa quinta. Não chegava para solucionar o problema da humidade, cada vez pior, ou avançar para tratar o caruncho, mas era um começo.
Rose estava a contar com a exposição. Se conseguisse vender pelo menos algumas das telas, isso faria toda a diferença nas suas dívidas crescentes. As promessas constantes ao gerente do banco já tinham pouco efeito, e sabia que estava à beira do precipício.
Passara muito tempo desde que exibira o seu trabalho, quase vinte anos. As pessoas podiam tê-la esquecido desde aqueles dias inebriantes, quando era adorada tanto pela crítica como pelo público. Era jovem, bonita e com imenso talento... mas depois tudo correra mal e deixara as luzes brilhantes de Londres para viver ali, isolada, em Sawood, nas charnecas ondulantes do Yorkshire.
Sim, a exposição em abril do ano seguinte era certamente um risco, mas tinha de compensar.
Rose levantou-se e manobrou habilmente o corpo volumoso por entre a desordem do pequeno estúdio. Olhou pela grande janela para a serenidade que se estendia além. A vista nunca deixava de a encher de paz, e fora a razão principal porque comprara a casa. Estava empoleirada no topo de uma colina e tinha uma vista ininterrupta do vale lá em baixo. Ao longe, a lasca de água cor de prata conhecida como Reservatório Leeming contrastava com a verdura intensa da paisagem em redor. Iria odiar perder aquela vista, mas sabia que, se a exposição fosse um fracasso, teria de vender a casa e a quinta.
— Bolas! Bolas! Bolas! — Rose bateu com o punho na pedra cinzenta maciça do peitoril da janela.
É claro que havia outra opção. Sempre existira, mas que ela resistia a escolher havia quase vinte anos.
Rose pensou no irmão, David, com a sua penthouse em Nova Iorque, a casa de campo no Gloucestershire, a casa de veraneio numa ilha elitista nas Caraíbas e o iate de alto-mar atracado algures ao longo da costa de Amalfi. Houvera muitas noites em que, escutando o ping-ping da água no tacho de metal colocado à direita da cama, pensara pedir-lhe ajuda. Mas preferia de longe enfrentar um despejo a pedir-lhe dinheiro. As coisas tinham corrido demasiado mal, havia demasiado tempo.
Havia muitos anos que não via o irmão, limitando-se a seguir a sua ascensão meteórica nos corredores do poder pelos artigos de jornal. Recentemente, lera que a mulher falecera oito meses antes, o que o deixara viúvo com um filho de dezasseis anos.
Então, uma semana antes, recebera um telegrama.
Querida Rose stop tenho sete compromissos de negócios nos próximos dois meses stop o meu filho Brett deixou o colégio interno a vinte de junho stop não quero deixá-lo sozinho stop ainda chora a morte da mãe stop pode ir ter contigo stop o ar do campo fazia-lhe bem stop ia buscá-lo no fim de agosto stop David.
A chegada do telegrama fizera com que Rose não conseguisse entrar no estúdio durante cinco dias. Dera longos passeios na charneca, tentando pensar por que motivo David estava a fazer aquilo.
Bem, não havia muito que pudesse fazer. O irmão apresentara-lhe um fait accompli. O rapaz vinha, provavelmente um miúdo mimado cheio de peneiras, que não iria gostar de ficar numa casa de quinta a cair sem nada que fazer a não ser ver a erva a crescer.
Perguntou a si própria o que achariam os filhos sobre a chegada de um primo até então desconhecido. Rose tinha de arranjar uma forma de explicar o aparecimento súbito não apenas de Brett, mas também de um tio que era provavelmente um dos homens mais ricos do mundo.
Miles, o filho de vinte anos, alto e bonito, assentiria com um gesto de cabeça e aceitá-lo-ia sem fazer perguntas, ao passo que Miranda, de quinze anos... Rose sentiu a habitual pontada de culpa ao pensar na filha adotiva, uma rapariga difícil.
Preocupava‑a que fosse por culpa sua que Miranda se mostrava uma carga de trabalhos. Era mimada, mal-educada e lutava com Rose sobre tudo. O seu objetivo sempre fora mostrar-lhe que a amava tanto como a Miles, mas parecia que Miranda sentia que nunca podia competir com o elo entre mãe e filho, carne da sua carne.
Rose esforçara‑se tanto por amar Miranda, dera o seu melhor. Todavia, em vez de ela trazer à casa uma atmosfera familiar, Rose constatou que só criava tensão. O misto de culpa e falta de comunicação entre mãe e filha significava que, no máximo, se toleravam uma à outra.
Sabia como Miranda ficaria impressionada com a chegada de Brett e a incrível fortuna do pai. Sem dúvida que iria namoriscá‑lo. Era uma rapariga muito bonita, já com uma longa lista de corações partidos atrás de si. Rose gostaria que ela não fosse tão... óbvia. Tinha o corpo já bem desenvolvido e não fazia qualquer tentativa de o esconder. Aproveitava ao máximo o seu espantoso cabelo louro. Rose desistira de lhe proibir o batom vermelho‑vivo e as saias curtas, uma vez que Miranda iria amuar durante dias, e o mau ambiente prolongar‑se-ia.
Viu as horas. Miranda ia chegar da escola em breve e Miles vinha a caminho de Leeds, pois o semestre na universidade acabara. Pedira à senhora Thompson que preparasse um lanche especial.
Rose iria juntar‑se‑lhes e anunciar a chegada iminente do sobrinho, como se fosse a coisa mais natural do mundo o filho do irmão ficar com eles durante as férias.
Preparou-‑se. Tinha um papel a desempenhar. É que nenhum deles podia jamais ficar a saber...
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