Não é ainda possível saber ao certo o impacto do novo coronavírus na economia global. No entanto, uma coisa é sabida: a mobilidade das pessoas é igual à mobilidade do dinheiro. E com metade da população mundial confinada aos quatro cantos da sua casa, a economia sofre. Muito. Tanto que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) já alertou que o impacto financeiro resultante da pandemia é maior do que as piores previsões. É o terceiro choque económico do séc. XXI após 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, e da crise financeira global de 2008. Estas previsões vão no sentido das estimativas do FMI, que diz mesmo que “é muito provável que este ano a economia mundial vá viver a sua pior recessão desde a Grande Depressão [de 1929]".
Neste contexto, a esmagadora maioria das indústrias ressente-se das restrições impostas um pouco por todo o mundo. A do entretenimento, por exemplo, está a sofrer em larga escala com o facto de a população estar em casa. Foram fechados bares e clubes noturnos. Concertos e festivais — de todo o tipo — foram cancelados ou adiados. Os cinemas fecharam. Pelo contrário, o streaming cresce, mas a pandemia deixou as séries e o cinema a meio gás. Ou, melhor, parou a sua produção e/ou gravações. Desde o início de março que a rotina de quem visita diariamente sites especializados em cinema é a de se deparar com notícias de cancelamentos ou adiamentos. E nem as grandes produções escapam.
"The Batman", "Jurassic World 3", "The Matrix 4", bem como os trabalhos nas sequelas da saga de "Avatar", de James Cameron, pararam devido ao novo coronavírus. A Disney também se viu forçada a adiar as estreias de filmes como "Mulan" ou "Black Widow". A Warner Bros. fez o mesmo para a sequela de "Wonder Woman". Nas produções para televisão e streaming, o mesmo fado. A HBO adiou séries que dão bastante tração à máquina da casa como "Succession" ou "Barry" — e vai apenas transmitir parte de outras como "Billions" e "Black Monday", uma vez que não foi possível terminar as rodagens antes do mundo parar. A Netflix, apesar de gigante, também foi obrigada suspender as produções de "Stranger Things", "The Witcher" e "Grace and Frankie".
Mas e na caixa mágica, o que mudou?
À vista desarmada e para muitos de nós, em isolamento domiciliário a cumprir com o distanciamento social recomendado pelas autoridades da saúde, nota-se uma alteração na grelha de programação, mas é provável que não façamos ideia do que se passa nos bastidores. O facto é que a criação daquilo que nos chega pela tela ao conforto do nosso sofá, através da televisão, envolve muitas pessoas num set de gravações ou em pós-produção.
A Digiday sugere mesmo que a indústria de TV, streaming e vídeo digital está a enfrentar uma mudança sistémica e que pandemia só veio acelerar alguns aspectos e redesenhar outros. São tempos incertos, mas em que é preciso responder às exigências. Nos Estados Unidos, a adaptação à nova realidade começou a ganhar forma mesmo antes de se verificarem os números alarmantes que agora se conhecem (mais de 600 mil contágios e mais de 25 mil mortes).
Stephen Colbert abriu monólogos do seu "The Late Show" na banheira, Jimmy Fallon está a conduzir o "The Tonight Show" a partir de uma cave — com a importante ajuda das suas filhas no "grafismo manual" do programa. Mas há mais exemplos.
Trevor Noah está a fazer o "The Daily Show" a partir da sua sala em Nova Iorque e parece que o isolamento o afecta tanto como a qualquer outro concidadão. Não há maquilhagem ou um fato de corte moderno a pedir uma câmara. Não, aquilo que vemos é um apresentador com barba por fazer e com camisolas iguais — que só vão mudando de cor — a tentar fazer o seu trabalho em modo remoto. John Oliver é outro e apresenta o "Last Week Tonight" num estilo caseiro — se bem que é de referir que este conseguiu colocar um hamster famoso pelo Tik Tok a ver-se a ele próprio no programa em que foi notícia.
Um artigo do New York Times (NYT) explora a criatividade destas personalidades (ou celebridades, se quiserem) do pequeno ecrã que se tiveram de adaptar aos tempos de confinamento. Isto porque, como explica bem explica o jornal, "nem todos podem simplesmente abrir os seus computadores portáteis e trabalhar a partir da mesa da cozinha".
Para isso, dá exemplo de uma pivot de televisão que fala ao público a partir de casa. Como é que tal aconteceu? Savannah Guthrie recebeu uma chamada dos produtores do programa "Today", da NBC, a avisar que no início de março uma equipa ia a sua casa montar um estúdio… na sua cave. O estúdio não é bem um estúdio, mas algo que se assemelha a um: tem um teleponto, luzes e uma câmara. Contudo, há uma grande diferença: por razões óbvias não há pessoal para preparar a filmagem. Ora, não há, mas tem de haver. Alguém tem de carregar nuns quantos botões para que a gravação comece e não pode ser a pessoa que vai apresentar o programa. Assim, é o marido que mete o despertador para cantar o galo mais cedo do que o habitual e dá uma ajuda. De resto, diga-se, também é Savannah que imprime o seu próprio guião, trata do cabelo e maquilhagem — e escreve o NYT tal acontece na esperança de que a experiência adquirida nos seus primeiros anos de jornalismo de radiodifusão local a ajudem.
Mas então e por cá?
Em Portugal, como está a nossa televisão a adaptar-se a esta realidade? Segundo um relatório do Observatório da Comunicação (OberCom) sobre o "Impacto do Coronavirus e da crise pandémica no sistema mediático português e global", o Covid-19 afetou "significativamente os meios de comunicação que têm a sorte de poder chegar até nós nas nossas casas: as audiências históricas de televisão concentram-se na informação, enquanto que o entretenimento, género-âncora fundamental para as marcas portuguesas, ficou pura e simplesmente parado, em termos de produção". Ou seja, o que não é informação parece que está estagnado, mas as pessoas passam muitas horas à frente da televisão e as audiências são históricas.
Mas de quantas horas se trata, afinal? Ora, a fazer jus pelo relatório, mesmo muitas. Tantas que, de acordo com dados da GFK / CAEM, no dia 15 de março, em média, "cerca de um terço dos portugueses (31,6%)" estiveram sentados à frente da televisão. Resultado? Melhor dia para a televisão desde março de 2012 — e nos dias seguintes a audiência nos canais por cabo cresceu cerca de 30%.
Contundo, continua o mesmo documento: "À semelhança do que ocorre nos E.U.A. e noutros países, diversos programas foram suprimidos ou reprogramados para satisfazer a sede de informação focada na crise pandémica". Como consequência, a programação atual demonstra "uma tendência para a saturação do assunto coronavírus".
Para responder a esta saturação, vários canais televisivos no estrangeiro estão a ajustar a sua programação às necessidades das famílias confinadas aos metros quadrados das suas casas — porque a atenção das pessoas vai dispersar além Covid-19. Foi por isso que a BBC, por exemplo, apostou na programação relacionada com educação, fitness, religião e culinária. Por cá, a tendência parece ser seguir estes mesmos passos no futuro.
Na SIC, por exemplo, "adaptação" parece ser a palavra de ordem. E escusado será dizer que o termo ganhou toda uma nova importância nas últimas semanas. O canal foi obrigado a colocar vários projetos em pausa e a concluir com rapidez outros tantos que já se encontravam na reta final, além de estar a lidar com equipas reduzidas que trabalham em regime de rotatividade e em teletrabalho.
Em comunicado, o canal de Paço de Arcos esclarece que as gravações dos programas "Amigos Improváveis Famosos" e "Quem quer Namorar com o Agricultor?" foram concluídas antecipadamente, ao passo que as de "24 Horas de Vida", com Bárbara Guimarães, foram suspensas até existirem "condições para voltar a gravar". A pandemia obrigou também a suspensão das produções das telenovelas "Terra Brava" e "Golpe de Sorte" até pelo menos ao fim do período de Estado de Emergência. As gravações do programa "Terra Nossa", com César Mourão, foram também adiadas.
No entanto, há projetos que continuam no ar (sem público ao vivo). "O Programa da Cristina", "Júlia" e "Olhó Baião" são exemplos disso. Mas, tal como acontece em muitas empresas, as "equipas de produção e redação estão a funcionar na sua esmagadora maioria em regime de teletrabalho". Os programas "Alta Definição", "Fama Show" e "E-Especial" estão a ser editados pelos seus profissionais desta forma. O programa "Não há Crise", apresentado pelo humorista Fernando Rocha, também continua com luz verde pois a temporada já foi gravada e a edição pode ser feita em teletrabalho.
Mas a pandemia também trouxe um regresso à SIC. A Alexandra Lencastre conduz o programa "Estamos Aqui" — que estreou no dia 11 de abril —, em que se dá a conhecer "os heróis sem bata que não baixaram os braços, que de forma voluntária ajudam a comunidade, que procuram contribuir para minimizar o isolamento e o sofrimento dos mais desprotegidos e expostos."
Por seu turno, "Isto é Gozar com Quem Trabalha", de Ricardo Araújo Pereira, sofreu alterações nas suas rotinas de produção. Normalmente gravado em Lisboa, no Teatro Villaret, com audiência ao vivo, as gravações do programa são agora realizadas nos nossos estúdios da SIC em Carnaxide.
Segundo o Expresso, Daniel Oliveira explicou numa publicação no Facebook que estas decisões foram necessárias de modo a atuar "de forma preventiva e responsável na salvaguarda da saúde, segurança e estabilidade dos profissionais, criando condições para que o isolamento profilático aconselhado pelas autoridades nacionais de saúde seja tido em conta pelo maior número de pessoas possível".
Na RTP e na TVI também foi necessário adaptar a grelha.
No caso da estação de Queluz, o reality show "Big Brother 2020", uma das grandes apostas para este ano antes do Covid-19, teve de ser adiado e já não estreou na data prevista. Ao jornal Público, o diretor de programas da TVI, Nuno Santos, explicou que apesar disso "é e será o programa do ano" e "nós vamos fazê-lo, mas em segurança". Não se sabe quando é que vai haver BB, mas já se sabe quando é que vai haver "Anti-Stress": é já no próximo sábado. O programa pretende "divertir, emocionar e surpreender" e vai contar com a apresentação da atriz Ana Guiomar e os comentários do radialista Diogo Beja, da Rádio Comercial.
Já no caso da estação pública, houve necessidade de reprogramação e de carregar no botão de pausa nas gravações de "Vai-se a Ver e Nada", o "Faz Faísca" e o "Voz do Cidadão". Já a "A Nossa tarde", com Tânia Ribas de Oliveira, está com horário reduzido. Fado diferente teve, porém, teve "5 para a Meia-Noite" e "Cá Por Casa", de Herman José. Nestes casos, as alterações foram mais ao estilo daquilo que tem vindo a acontecer nos Estados Unidos ao nível dos talk shows. Primeiro foram suspensos temporariamente e de forma preventiva, mas só para a continuarem no ar mais tarde — com versões "caseiras".
No caso do programa apresentado por Filomena Cautela e Inês Lopes Gonçalves, no regresso em modelo YouTube, já deu para que Manuel Luís Goucha mostrasse a sua casa de Sintra, Fernando Rocha falasse do que passou ao descobrir que tinha testado positivo para o novo coronavírus ou até para estar à conversa com o ator que dá vida a "Helsínquia" na série "A Casa de Papel" da Netflix. Por seu turno, Herman José já conduziu os dois primeiros episódios de "Diário de uma Quarentona" — com a RTP a alertar no início da emissão que "este programa foi realizado sem qualquer contacto físico entre os seus intervenientes, autores, atores ou técnicos" —, uma versão também ela filmada ao jeito domiciliário.
Em suma, alguns programas desapareceram da grelha, outros tiveram que se adaptar aos cenários familiares das paredes de casa e outros como "The Voice Kids" ou "Quem Quer Ser Milionário" foram adiados. Porque a prioridade é a informação. Tal como explica José Frogoso, diretor de programas da RTP 1 e RTP Internacional, ao Público: "O nosso objectivo foi suspender todos os programas com público e equipas maiores em todos os canais e concentrar os recursos na informação".
Terminar com notícias boas
É impossível falar de criatividade, notícias e falta de recursos destes tempos esquisitos e não falar sobre o programa (noticiário?) de John Krasinski (o Jim de "The Office").
Se vivemos numa era em que os dias são acossados por balanços diários sobre os números de mortos e infetados provocados pandemia, convém alertar de que há notícias para todos os gostos. Porque nem tudo é mau e "o bem" também acontece e anda por aí. E é isso que o ator que virou realizador ("Um Lugar Silencioso") fornece: notícias felizes. Ou não fosse o título do seu canal de YouTube, "Some Good News with John Krasinski" ["Algumas Boas Notícias com John Krasinski ", em tradução livre].
Dizer que se trata de um "estúdio improvisado" é um eufemismo. O ator — que parece que não, mas que já sopra 40 velas no bolo de aniversário — está numa divisão da sua casa, sentado à secretária e com duas câmaras apontadas à cara. E, sim. O programa é exatamente aquilo que o nome sugere: Krasinski debruça sobre algumas histórias prósperas e emocionantes que as pessoas podem estar à procura neste momento. É bem humorado, feliz e algo que faz imensa falta em tempo de isolamento domiciliário. Precisamos de boas notícias. Krasinski sabe-o e o resto das pessoas que estão fechadas em casa também.
Logo no primeiro episódio (que tem a duração de 15 minutos) o ator apresenta-se: "Sou o John Krasinski e, caso ainda não seja claro, não faço a mínima ideia do que estou a fazer". Até pode pensar que não, mas a realidade é que o seu canal já tem, à hora de publicação deste artigo, 1,8 milhões de subscritores e conta com milhões de visualizações. O primeiro vídeo, o tal que contém o desabafo de que "não sabe o que está aqui a fazer", já conta com mais de 15 milhões. E tem apenas 2 semanas.
Mas de acordo com a The Verge, o canal não é apenas um mero vlog porque até há uma entrevista a Steve Carell — ator que deu vida a Michael Scott, o seu patrão em "The Office". Foi no aniversário do 15º aniversário da série e os dois falaram sobre a mesma: o seu sucesso, as suas cenas favoritas e como foi trabalhar em conjunto.
Porém, no final do primeiro episódio, Krasinski mostra mais uma vez o lado humano do programa e fala com uma adolescente que se tinha "tornado viral" durante o fim de semana que antecedeu a estreia do seu canal. A história é a da jovem Courtney Johnson, de 15 anos, que no regresso a casa, depois da última sessão de quimioterapia, foi surpreendida por um grupo de amigos em casa — a uma distância de segurança.
"Escrevi à tua mãe e disse-lhe que chorei durante muito tempo depois de ver aquilo [o vídeo], só felicidade pura. Estiveram excelentes em partilhar aquilo com o resto do mundo", conta o ator.
Tal como acontece com os programas "caseiros" de Jimmy Fallon, Jimmy Kimmel, Stephen Colbert ou Trevor Noah, onde não há grande componente visual, aqui também não há gráficos pomposos ou grandes reportagens. Os desenhos que aparecem são das filhas, não parece que exista um microfone profissional e a qualidade das câmaras não é aquela que se podia imaginar. O que, tal como explica a The Verge, só acrescenta ainda mais valor ao conteúdo dos vídeos e ao trabalho do ator.
Como se tal não fosse suficiente, no final de cada um deles, Krasinski não pede para fazer "um gosto" ou "esmagar o botão da subscrição" como é hábito no YouTube — quem anda por estas bandas sabe bem aquilo a que me refiro. Não, o maior trunfo dos finais destes vídeos parece residir na incógnita em torno daquilo que tem vestido. Sim, porque o fato e gravata é só na parte de cima. Ou não tivesse o espetador direito ao vislumbre de um coloquial boxer dos Red Sox (equipa norte-americana de basebol da cidade de Boston) ou aquilo que aparenta ser uma saia de ballet.
O tempo para abraçar a família ou sair para jantaradas com os amigos não estará para breve. Tanto que Marcelo Rebelo de Sousa já avisou na quarta-feira que a renovação do Estado de Emergência vai acontecer para o confinamento de abril seja para ganhar o mês de maio. No entanto, sabe-se que mesmo depois disso as coisas não voltarão à normalidade e as restrições irão continuar. Assim, o programa Krasinski ganha toda uma nota de importância para que o mais importante não seja esquecido: de que isto vai passar e que vai tudo correr bem.
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