Porque escreve quem escreve? Por gozo, dirão alguns, por vício, dirão outros. Para colocar uma pegada no mundo, assinalar a sua própria existência. Por delírio, talvez: a caneta ou as teclas a ressoar num infinito que mal se compreende, e estes símbolos, que formam palavras que formam pensamentos, jorrando febrilmente sobre a base.
Anthony Bourdain, que depois de ser cozinheiro foi escritor, e que depois de ser escritor foi amar o mundo, considerava que escrever era uma espécie de traição; há muitas verdades numa escrita, e não apenas a que é imposta. Para Herberto Hélder, escrever deveria ser um acto de cruel religiosidade, e João, o Apóstolo, tinha como princípio a Palavra – e a Palavra era Deus. Numa crónica recente para a revista “Esquire”, a autora Rainesford Stauffer debruçou-se sobre esta mesma questão, numa toada mais mercantilista: escrever é um passatempo ou uma carreira?
Chico Buarque, que teve que esperar quatro anos para receber em mãos o Prémio Camões, espera essa precipitada pelo ódio fascista (primeiro) e pela pandemia (depois), dizia em 2004: “escrevo para me entender melhor”. E, nessa sua busca por si próprio, acabou por ensinar, também, quem o lê e continua a ler e quem o ouviu e continua a ouvir. Sobre a música, sobre a vida, sobre a poesia, sobre o Brasil, sobre velhos acamados num hospital cujas memórias são como que alucinações, sobre ghost writers a saltitar entre casamentos e affairs, sobre as Ritas que lhe levaram o sorriso, sobre quem morre em contramão e atrapalha o trânsito, sobre a desgraçada Geni. Sobre este povo que teima em ser nosso: “faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim”, disse, no seu discurso de agradecimento pelo supracitado Prémio.
Claro que quem se deslocou até ao Campo Pequeno, para a primeira de três datas de Chico Buarque em Lisboa, não foi exclusivamente pelas suas palavras. Foi também pelas melodias, pelo violão, pela voz. Portugal não é a Noruega, onde, certa vez, uma jornalista lhe perguntou se era verdade que Chico Buarque também era compositor; é o país dos seus antepassados e o país que continua a acolhê-lo com pompa e circunstância, atestando a isso o facto de os bilhetes terem rapidamente esgotado. É o país onde uma forte comunidade de conterrâneos encontrou um poiso, para tentar ganhar a vida que lhes era negada no país de origem. Um deles, sentado ao nosso lado, não hesitou em bater com as palmas das mãos nas suas pernas durante o samba de 'Bom Tempo', uma das 32 (!) canções que o músico e escritor ali cantou.
“Músico e escritor” porque Chico Buarque é ambos e porque soa extremamente redutor escrever apenas uma delas. “Autor” talvez seja uma expressão melhor, mas ainda falta aí qualquer coisa. Como apelidar um homem que toca tantas gerações e tantos indivíduos distintos, apenas e só pelo uso da palavra? Pior ainda, como escrever sobre ele?
Em 2018, tudo nos pareceu mais fácil: a pátria de Buarque é a língua portuguesa, tome ela a forma que tomar, fale ela com os gerúndios que falar. Incisivo. Mas, aí, Chico Buarque não era o vencedor do Prémio Camões; era um músico que tínhamos descoberto, por ingerência dos pais ou não. Tudo é agora diferente e tudo agora nos soa mais distante, tudo agora nos obriga ao panegírico, à semelhança de Bob Dylan, que deixou de ser a voz de uma determinada era (e o autor de excelsas canções) para passar a ser o Prémio Nobel da Literatura.
Um crítico musical tem, por definição, que incidir sobre a música. Na resenha de um espetáculo ao vivo, vê-se obrigado a inserir as mais variadas interpretações e dissertações sobre o que escutou. O problema desta noite é este: houve muita gente que não conseguiu ouvir Chico Buarque, porque o som estava péssimo, porque a sua voz mal ecoou pelo PA, porque os instrumentos iam chocando uns contra os outros. Outros tantos houve que consideraram o alinhamento fraco para os padrões exigidos, entre eles quem assina estas linhas: não dava para elevar 'Deus Lhe Pague' a outra categoria que não a de um simples verso acrescentado a 'As Caravanas', não dava para incluir aquele ritmo de faca a um espetáculo que tem como nome “Que Tal Um Samba?”, o mesmo de uma canção lançada o ano passado, “contra o Brasil da derrota”?
(Talvez não: o sarcasmo de 'Deus Lhe Pague' é à partida derrotado)
Musicalmente, não se pode dizer que este tenha sido um bom concerto, até por todos esses problemas. Mas é isso que importa? Foi isso que interessou, de facto, aos milhares que saíram do Campo Pequeno com um sorriso no rosto? Ou será que se contentaram com poder, simplesmente, ver o poeta, o romancista, o autor, o músico, a presença que roça o teológico a escassos metros de distância, beijando palavras como quem beija um rosto amado?
Três toques sonoros anunciaram a chegada ao palco, a apresentação de todos os membros envolvidos sucedeu-se ao apagar das luzes, Mônica Salmaso, numa toada a modos que infantil, teve as honras de abertura com 'Todos Juntos', teclas e xilofone e alterações de tom nas últimas sílabas. A palavra usada como instrumento. E os vários shhh..., dirigidos a quem ainda estava, naquele início, em converseta, como uma ordem: quem declama precisa do silêncio.
Foi preciso aguardar durante seis canções para que Chico Buarque aparecesse em palco, para se juntar a Mônica Salmaso em 'Paratodos', perante ovação da plateia, que não se coibiu de se erguer das suas cadeiras. Tomado o seu lugar, veio o tom sombrio de 'Sinhá', a pequena falha em ' Sem Fantasia' (Mónica puxou-o para cantar; Chico esquivou-se, ou esqueceu, tanto uma como a outra são compreensíveis), o teatrinho de 'Biscate', aquele verso no início de 'Choro Bandido' que tudo parecia definir: Mesmo que os cantores sejam falsos como eu... Pouco parece importar que a qualidade do espetáculo em si tivesse estado abaixo das expetativas: esta era uma noite de ode à palavra, à sua palavra, e a palavra terá sempre valor, independentemente da forma como é dita. O valor está ali, nos seus versos. Pessoa-tornado-Caeiro disse-o sobre si e dizemo-lo nós sobre Buarque, traindo todo o conceito de uma crítica.
Porque escrever, então? Porque o mesmo Chico Buarque também disse que o trabalho de escritor, assim como o de compositor, é bastante egoísta. Do alto do nosso egoísmo, procuramos definir uma experiência por palavras, e inevitavelmente esta experiência é pessoal. Não existe objetividade numa crítica a um espetáculo, quem a escreve parte de um viés do qual muitos discordarão. E é isso que alimenta a crítica, quer se goste, quer não; e ainda bem, porque se todos encarassem a arte da mesma forma, a arte deixaria de existir; e queremos nós viver num mundo sem crítica ou sem arte? Seria muito fácil escrever, mesmo mentindo, que Chico Buarque no Campo Pequeno foi soberbo. Mas também seria muito fácil escrever que foi uma banhada.
A verdade não existe e está algures no meio termo: foi bom ser novamente confrontado com os seus escritos. Foi bom rir quando, em 'Bancarrota Blues', Buarque manda um “tenho que caprichar bem no meu violãozinho...”, ao elogiar os músicos que o acompanharam, que no gozo o compararam a Carlos Paredes e a Jimi Hendrix.
Foi bom ouvi-lo dizer que pensou em instalar um teleponto, para não mais se esquecer das suas próprias letras.
Foi bom ouvi-lo garantir que já não se importa com o rótulo de esquerda caviar, conquanto ninguém lhe diga que não é o autor das suas próprias canções.
Foi boa a catarse de 'Todo O Sentimento', apenas ele, apenas um piano.
Foi boa a dedicatória à já falecida Miúcha antes de 'Maninha'.
E foi bom vê-lo silenciar-se durante breves instantes, para deixar o público declamar alguns versos de 'João e Maria', porque ele – como todo o bom artista – tem a perfeita noção de que Pessoa/Caeiro tinha razão. O espetáculo não foi bom. O que Chico Buarque continua a significar é absolutamente extraordinário.
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