Existe um lugar em Lisboa onde a memória do 25 de Abril, mas sobretudo do tempo a que não se quer voltar, vive em cada um dos residentes. Hoje, 76 pessoas moram na Casa do Artista, espaço que cuida e acolhe profissionais do mundo do espectáculo na terceira idade. Em vésperas dos 50 anos do 25 de Abril, o SAPO24 fez uma visita à instituição que celebra este ano 25 anos e falou com quatro residentes - Teresa Sanches, Luísa Afonso, Maria Clementina e Natália Guimarães - sobre o teatro no antigo regime e os primeiros anos de liberdade. A esta conversa juntou-se um pouco mais tarde o ator José Raposo, presidente da instituição, que refletiu também sobre o antes e o depois de Abril em cima dos palcos portugueses.
"Nós fazíamos aquilo que nos deixavam fazer", conta Luísa Afonso, antiga bailarina do teatro de Revista, que começou a trabalhar em 1962, no Maria Vitória. "Às vezes ensaiava-se durante meses, e eles chegavam lá e diziam ‘Não, aquilo não vai’, e cortavam. E tinha que se arranjar outra coisa para pôr naquele lugar, porque o espetáculo tem que ir completo. E depois eles iam censurar outra vez. Isso era um condicionalismo horrível", recorda.
No teatro de Revista "tinham que escolher coisas com a piada, mas deixar à imaginação das pessoas. No pós-25 de abril já não se deixava nada à imaginação das pessoas. E perdeu a graça", reflete.
Os teatros, garante, andavam sempre cheios: "havia muito público, porque a televisão ainda não apanhava tudo e as pessoas nem tinham televisão. As pessoas saíam para ir para o teatro. Entretinham-se e cultivavam-se. Ia a família toda". E, lamenta, "nem volta a haver teatro assim. Agora com os vídeos, com os meios que as pessoas têm, já não saem para ir ao teatro. As famílias também já não se reúnem assim para ver uma peça, nem em casa".
Depois do 25 de Abril diz também com pena que se caiu para "outro lado": "Estava-se tão preso, tão preso, tão preso, que depois caiu-se para o lado contrário. Houve pessoas que depois descambaram. Exageraram, fizeram-se muitas asneiras… Que eu acho também que o espetáculo não é asneira. Cultura não mete asneira. E depois voltou ao normal. É como a onda: vai e regressa".
Teresa Sanches conta uma história diferente. No 25 de Abril de 1974 era funcionaria pública, num centro de saúde e começou a trabalhar no teatro logo depois da Revolução, em finais de 1975. Tinha 25 anos.
"Vivi o 25 de Abril. Tudo aquilo que vemos nas fotografias eu passei por isso. Quando começaram os problemas dos trabalhadores, dos comités… Eu passei por tudo. Tentaram prender-me numa manifestação de trabalhadores… Tudo isso passou por mim, portanto quando vejo as fotografias digo ‘Mas eu estava lá, eu estive lá, eu passei por lá logo a seguir’", recorda.
Foi convidada para ingressar no Teatro Experimental de Cascais por Carlos Avillez, onde começou como ponto. Os dias na função pública rapidamente foram trocados pelos palcos - "não gostava do que fazia", diz.
"Depois como técnica fiz tudo. E cheguei a estar em palco, claro. Fui assistente de encenação, ponto, assistente de ensaio, técnica de teatro, fiz luzes, fiz tudo". A acrescentar a este currículo, trabalhou na televisão, com passagens pela RTP e pela TVI. Mas a maior parte da vida profissional foi no Teatro Experimental de Cascais, no Teatro Municipal Mirita Casimiro, e outros. Nos 29 anos de carreira na arte ainda passaria pelo estrangeiro.
Sobre o teatro no antigo regime, prefere agarrar-se "ao sentimento do 'agora é que podemos fazer tudo'" que veio com aquela madrugada de Abril.
"Estávamos sempre a pensar que podíamos ser presos"Maria Clementina
Maria Clementina também tinha um passado de função pública antes de chegar ao teatro. Nasceu em 1935, diz com orgulho, e recorda o tempo de serviço no Ministério da Corporações e Previdência Social, hoje em dia do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Porém, ao contrário de Teresa, ainda antes da revolução e a convite de um antigo colega de escola começou a colaborar com um grupo de teatro amador em Setúbal, de onde era natural.
"A companhia era do meu amigo Fernando de Jesus e do Salgado Soares. Já faleceram, mas foram eles que me lançaram nas artes", conta com saudade. Trabalharia com o ator e encenador Rui de Matos e fez a sua carreira no teatro. "Eu sempre gostei muito de teatro e de imitar e fazer personagens, tanto que quando era mais pequena a minha mãe dava comigo sozinha em casa sem ninguém me ver, em cima de uma cadeira, e começava a falar e ela ouvia noutra divisão e achava que eu era maluca. Gostava de falar e tinha que falar", recorda.
Da ditadura recorda sobretudo o medo e os encontros com a PIDE: "Estávamos sempre a pensar que podíamos ser presos. Em Setúbal era muita gente presa, mas nós lá nos íamos escapando e saíamos sempre sem problemas. Como grupo de esquerda tínhamos muita atenção em cima de nós. Além disso, tínhamos o Zeca Afonso connosco e isso era muito aproveitado pelos agentes. Mas fomos vivendo até chegarmos ao 25 de Abril".
O medo desvaneceria com a chegada da Liberdade. "Depois todo este medo desapareceu, mas abraçámos a liberdade com receio. Nessa altura, havia muitas pessoas que tinham receio que voltasse tudo para trás", lembra.
O teatro continuaria e o número de espetáculos até aumentou. "Estávamos muito felizes pelo avanço".
Com 95 anos, Natália Guimarães nem sempre esteve diretamente envolvida no teatro. Era irmã de Cecília Guimarães e foi para a Casa do Artista para acompanhar a mesma, que acabou por falecer em 2021 vítima da pandemia Covid-19.
Cecília estreou-se no Teatro da Rua da Fé em 1951, com o encenador Pedro Bom, e fez uma carreira invejável no teatro, no cinema e na televisão, sempre acompanhada pela irmã Natália, que não falhava uma peça e chegou a ser ponto num grupo de teatro experimental.
"O Raul Solnado, quando abriu o Teatro Villaret, na Fontes Pereira de Melo, ainda me pediu para ir para lá como ponto, mas eu não fazia vida do teatro, e por isso e não conseguia trabalhar de manhã numa empresa e de noite fazer teatro até às tantas, e deixei-me disso", recorda.
Profissionalmente, foi secretária de Marketing e lembra-se de ter feito muitas viagens com o laboratório farmacêutico onde trabalhou mais de 20 anos. Porém, não tanto como a irmã, que esteve na Madeira e nas antigas colónias de África, para onde ainda foi de barco.
Sempre dentro do círculo social da irmã, recorda que esta esteve vários anos no D. Maria II com Amélia Rey Colaço. "Deixa-me com muito orgulho", assegura.
Sobre o passado antes da Revolução, não guarda mágoas. "Todas as épocas têm coisas boas e coisas más, e pessoas que são sérias, honestas e trabalhadoras. E eu digo isto porque tenho 95 anos e já passei muita coisa, e acho que essas pessoas nunca terão grandes dificuldades".
"Eu sou do tempo em que havia senhas de racionamento. Nós sempre estivemos bem porque o meu pai tinha um bom emprego e a minha mãe era dona de casa e era muito organizada, mas havia muitas pessoas a passar dificuldades. Nós cedíamos as senhas de racionamento a uma tia minha que tinha muitas dificuldades", relembra.
"Em todas as épocas existiu bom e mau e hoje também temos. Veja-se a quantidade de pessoas por dia que morrem e nós vemos nas notícias. O que conta é o caráter das pessoas", deixa a opinião.
Com a experiência de uma vida a assistir ao teatro, discorda da colega Luísa, com quem partilha quarto, e diz que o teatro não tinha mais gente antes do 25 de Abril.
"Acho que depende da companhia e do tema da peça. O La Féria tem sempre a casa cheia de gente que vem das terras de autocarro porque sabem da propaganda que ele faz, e no Parque Mayer ainda existe o Maria Vitória e as peças vão estando cheias. Acho que não tem a ver com a época, mas sim com o elenco e, claro, existem atores bem melhores do que outros".
Depois do 25 de Abril, a irmã teve sempre trabalho e foi quando ganhou mais prémios:" Nunca teve pausas na carreira. Era muito boa atriz, acarinhada pelo público e pelo meio artístico, apesar das invejas. Ela venceu sempre".
O teatro depois de Abril
O presidente da Casa do Artista, o ator José Raposo, hoje em dia com 61 anos, começou a carreira em 1981 no teatro Ádòque, no Martim Moniz, em Lisboa. Uma invenção recente nessa altura no contexto das artes cénicas, este espaço era uma cooperativa que fazia teatro de Revista à Portuguesa de esquerda, algo apenas possível com o apogeu da Revolução. "Foi uma inovação na Revista à Portuguesa na escrita e na parte plástica e isso teve a ver com a possibilidade de podermos pensar de forma mais progressista".
"A arte é o oposto da censura, é a pessoa poder expressar-se."José Raposo
"Eu mais tarde fiz revista também no Parque Mayer, e era uma revista mais ligada à direita, e no Ádòque era mais de esquerda. Naquela altura era tudo muito efervescente e as reações manifestavam-se no teatro de uma forma muito expressiva. Algumas peças eram políticas, claro, mas isso faz parte da revolução. Depois de um regime opressivo, as pessoas têm necessidade de se expressar assim", confessa.
"Todos estes sentimentos são normais, os textos eram muito revolucionários, felizmente, porque antes do 25 de Abril em todas as artes, no teatro, no bailado, no canto havia uma censura muito grande. Perceba-se que a censura é precisamente contrária à arte. A arte é o oposto da censura, é a pessoa poder expressar-se". afirma.
Numa nota mais pessoal, conta que teve muita sorte em entrar no Ádòque, onde se fazia crítica política e social, e era essa a função da Revista à Portuguesa que tinha ainda muita importância na altura. "Nos anos 80 era muito popular. As pessoas aderiam em massa tanto no Ádòque como no Parque Mayer".
"O Ádòque era especial porque era uma cooperativa e nós fazíamos tudo: colávamos cartazes, fazíamos o guarda-roupa, estávamos na bilheteira e isso foi muito bom para mim logo no início, aos 18 anos", diz.
José Raposo conta que quando se deu o 25 de Abril estava em Angola. "Nas colónias as coisas aconteceram um bocadinho mais devagar e, quando se deu a Revolução, claro que lá se soube, mas os festejos demoram mais do que aqui. Depois tivemos o problema dos retornados, eu fui retornado", relembra.
Um processo que não foi fácil. "No fundo éramos refugiados, como se diz hoje em dia. As pessoas tinham a sua vida lá e, depois da independência dos países colonizados, que já devia ter acontecido há muito tempo, as pessoas tiveram de regressar. Quem vinha de lá não era bem-vindo cá e havia sempre uma associação das pessoas que estavam lá ao antigo regime".
"Foi uma adaptação muito difícil para os meus pais, para mim não tanto. Eu vim logo a seguir ao 25 de Abril, passado um ano. Eu vim com 12, fiquei dois anos com os meus avós maternos em Lisboa e tive sorte porque tinha cá família, mas havia quem não tivesse. Havia pessoas a chegar com uma mão à frente e outra atrás, que foi o caso dos meus pais, que tiveram de começar a vida toda do zero, e havia outros que tinham os seus bens cá e recomeçaram com algum conforto. Havia de tudo um pouco", acrescenta.
Mas apesar das dificuldades, guarda aquele Abril de 1974 como uma memória feliz. "O meu pai era um homem de esquerda, era um homem anti-regime e anti-salazarista e viveu a revolução com grande alegria. Tenho os princípios que ele me passou, de liberdade, solidariedade e democracia desde sempre. Tive o privilégio de viver a adolescência com esta consciência", sublinha.
Sobre o público naqueles primeiros anos de liberdade, diz que passou a haver uma adesão maior com pessoas mais cultivadas. "Foi uma consequência natural da liberdade de expressão".
Num paralelismo com a atualidade, comenta, todavia, que "esta época das redes sociais não é uma coisa maravilhosa no sentido da adesão à arte. Se por um lado dá informação às pessoas, também as ocupa muito no tempo livre e vemos muita gente agarrada aos telemóveis em sítios públicos e até no teatro. É frequente olharmos e vermos pessoas agarradas, o que é horrível para qualquer artista e para quem está ao lado".
Pela positiva, destaca o papel destas ferramentas na promoção do trabalho artístico. "Eu uso muito as redes sociais para divulgar as peças de teatro, porque existe muito pouco apoio em termos políticos. É uma contradição da democracia a cultura não ser apoiada em Portugal. Comparativamente a outros países da Europa, Portugal é muito pobre no apoio à cultura. É uma grande contradição dos ideais de Abril. Aliás, vimos agora nas eleições. Se se falou da palavra cultura uma vez foi muito".
A PIDE, as perseguições e a censura
A presença da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) era uma realidade que pairava sempre no ar.
"Quando lá chegámos, disseram-nos para estarmos no dia seguinte de manhã em Lisboa na sede de da PIDE. Olhámos uns para os outros, todos muito novos, e sem saber o que nos esperava lá dissemos que iríamos."Maria Clementina
"A primeira peça que nós fizemos numa coletividade, 'Alguém Terá de Morrer' de Luiz Francisco Rebello, era uma peça que tinha o seu quê de querer voar. Pensámos logo que a PIDE não ia deixar aquilo acontecer, mas o diretor do nosso grupo, Salgado Soares, estava confiante e disse-nos para avançar. A coletividade tinha um pequeno palco muito rudimentar, mas foi aí que estreou a peça", lembra Maria Clementina.
"Nas cadeiras do fundo, a certa altura, um colega meu avisou-me que estavam uns homens de chapéu que eram da PIDE. Mas aos vinte e poucos anos nós tínhamos porque nos diziam que se devia ter medo. Eram conhecidos como 'os gajos do lápis azul'. Apesar disso, fez-se a peça com a parte que a PIDE tinha mandado cortar", continua.
"No final do espetáculo mandaram-nos para a sala da direção e aí foi o meu primeiro contacto com a PIDE. Quando lá chegámos, disseram-nos para estarmos no dia seguinte de manhã em Lisboa na sede da polícia política. Olhámos uns para os outros, todos muito novos, sem saber o que nos esperava", prossegue.
"Passado pouco tempo, os elementos da coletividade vieram ter connosco e disseram para não nos preocuparmos e irmos para casa descansados. Tinham tratado de tudo. Não sei como se arranjaram, mas no dia seguinte ninguém foi ver a PIDE a Lisboa", termina.
"O recital continuou e dissemos todos os poemas com os polícias a passar no corredor. Quando acabou tivemos que fugir e os meus colegas começaram a correr porta fora. Eu e o meu namorado ficámos para o fim."Maria Clementina
Num outro episódio, recorda que mais perto do 25 de Abril chegou mesmo a ser perseguida.
"Tínhamos um recital de poesia num liceu em que um dos participantes era o Zeca Afonso e estava tudo confirmado. Entretanto, no dia em que fomos fazer o recital, um dos nossos colegas disse-nos para não contar com o Zeca. A PIDE já sabia do espetáculo com o nome dele, mas ele tratou de tudo e se ele não vem a PIDE não virá", recorda.
"Avançámos a medo com os poemas e a cantar canções do Zeca e outros poetas mal vistos pela censura. Aliás, a nossa linha era sempre de esquerda. Entretanto, quando acabou o recital, tínhamos de passar por um corredor onde estavam vários polícias da PIDE. Eles eram sempre homens vulgares, mas que usavam um chapéu civil. Não havia nada que os distinguisse de outras pessoas", prossegue.
"Quando acabou tivemos que fugir e os meus colegas começaram a correr porta fora. Eu e o meu namorado ficámos para o fim e um agente apanhou-o. Eu aproveitei e continuei a andar até ao portão do liceu. Quando olhei para trás percebi que ele tinha ficado preso. Mais tarde vim a saber que falaram com ele e lhe perguntaram quem eu era. Ele disse somente que era a sua namorada e que o esperava. Os tipos da PIDE ainda perguntaram 'mas os outros fugiram?'. Ele disse só que não tinha nada a ver com isso e não nos aconteceu nada", conta entre risos.
Experiente em atuações no estrangeiro antes e depois do 25 de Abril, Luísa Afonso recorda uma ida à Dinamarca em 1966.
"Tivemos uma pateada", relembra. "Fomos pateados… tivemos que conversar com as pessoas, e explicar que nós não temos culpa, é o regime onde nós vivemos", sublinhou. "Eles eram realmente democratas, não há dúvida, e nós nem sabíamos o que isso era", continua.
"A pessoa que nos acompanhava, que era um senhor representante do Governo, foi quem foi explicar aos espetadores que nós não tínhamos culpa nenhuma do regime. Mas depois disso não voltou connosco para Portugal. Teve medo de ser preso. Quando acabou a digressão, casou com uma dinamarquesa e ficou lá", lembra.
Apesar disso, as pessoas aceitavam os artistas portugueses, ressalva. "O artista não tem regime. Cada um faz aquilo que pode. O nosso folclore era lindo e continua a ser muito lindo, e eles adoravam. Depois fomos aceites e ficámos lá 35 dias".
"Eu falava muito, era mãe solteira e vivia sozinha com a minha filha pequena. E então avisaram-me: ‘Ou te calas ou podes chegar a casa e não tens a tua filha'."Luísa Afonso
Sobre a diversidade de histórias que carrega, diz ter "muito orgulho por ter, não só assistido, mas também participado no 25 de Abril. E verificar que durou 50 anos, e não sei quanto mais vai durar…"
Lamenta, todavia, "a tendência agora que é de virar mais para a direita. Qualquer dia estamos numa ditadura. Porque os jovens não sabem aquilo pelo que nós passámos".
Enquanto recorda os colegas mais velhos, assegura que não há quem se "acostume" a ditadura: "Ninguém se habitua. As pessoas calavam-se porque sabiam que se falassem eram presas. Mas isso não quer dizer que estivessem a aceitar".
Quando chegou a liberdade estavam todos prontos, diz. "Não conheço nenhum colega da altura do 25 de Abril que dissesse assim: ‘Olha, agora estragaram-nos a vida’. Da parte artística, nunca tal ouvi".
Num episódio mais traumático, lembra também quando a ameaçaram ser presa e retirarem-lhe a filha pequena. "Eu falava muito, era mãe solteira e vivia sozinha com a minha filha pequena. E então avisaram-me: ‘Ou te calas ou podes chegar a casa e não tens a tua filha e nunca mais a vês’. E com isto eles conseguiam calar-nos, e a gente calava-se mesmo, porque filho é filho". "Imaginem que eu chegava a casa e a minha filha não estava lá? Deus me livre. Isso é uma coisa que a gente não quer nem pensar. Eles ameaçavam e faziam", recorda.
Teresa Sanches corrobora: "Quando o 25 de Abril aconteceu, as pessoas já estavam preparadas, o teatro estava preparado". Uma das maiores mudanças, recorda, foi nos guiões que passaram a ser possíveis. "Eles só não [antes] faziam porque não os deixavam".
"Eu nunca mais senti medo", diz Maria Clementina, apesar tudo o que ainda ficou por fazer, porque "há sempre coisas por fazer e nada é perfeito". No Teatro e na Democracia.
As promessas da democracia
Passaram 50 anos, e José Raposo destaca a contínua falta de apoio para a cultura, mesmo existindo o Ministério da Cultura, algo de que alguns governos democráticos chegaram a abdicar no passado.
"Eles não podem fazer muita coisa, porque nem 1% do Orçamento do Estado a cultura tem. Deve ser o único país da Europa em que temos menos de 1%, ao lado da Grécia. Como é que é possível? Estamos muito atrasados ainda nesse aspeto e portanto ainda há muito que fazer", critica.
A vida de artista não é fácil — e não é de agora.
"Eu depois do 25 de Abril vivi nos Estados Unidos da América 16 anos, e a complicação é a mesma. As pessoas, se não tiverem trabalho contínuo, morrem na miséria como qualquer outra pessoa. A estabilidade não há. Não é uma profissão com estabilidade em lado nenhum", diz Luísa Afonso.
"Infelizmente, depende da iniciativa de cada escola levar alunos ao teatro, mas devia fazer parte do programa de forma obrigatória"José Raposo
Quando questionamos José Raposo sobre o que a democracia trouxe à vida dos artistas, este lamenta que "nunca tenha sido dada à cultura a importância que esta devia ter".
"A disciplina de teatro devia existir nas escolas e ser obrigatória. O teatro abre perspetivas às pessoas. É brincar à vida real, é a forma de crianças de adolescentes aprenderem, por exemplo, o que é isto da sociedade, de forma lúdica. É um entretenimento que ensina, e o ideal era estar na escola desde pequenos. Além disso, era mais um mercado para os profissionais do teatro, existem muitos atores desempregados", sublinha. "Infelizmente, depende da iniciativa de cada escola levar alunos ao teatro, mas devia fazer parte do programa de forma obrigatória, não só idas ao teatro, como a disciplina de teatro", destaca.
"Antes do 25 de Abril, e isto é uma contradição, havia programas de televisão só sobre teatro e outros só sobre poesia e outros só sobre atividades culturais e agora não. Temos os reality shows a substituir isso tudo."José Raposo
"Vejo atores a terem de se virar e arranjar outras profissões, independentemente do talento. São valências que se desperdiçam. Além disso, hoje em dia no audiovisual dá-se muito mais importância à imagem e não tanto ao talento. Claro que a imagem e o talento andam muitas vezes em conjunto. Existe muita gente com boa imagem e com muito talento e formação académica, mas existe muita gente que não é por aí", lamenta o ator.
Abordando também a questão do ator influencer, uma realidade atual, comenta que "agora escolhem-se as pessoas pelo número de seguidores, o que subverte o mérito de trabalhar nesta profissão. Isto está tudo relacionado com quem manda na cultura e devia estar mais atento a isto e ensinar as pessoas que não pode ser assim", reforça.
Dá ainda o exemplo da falta de cultura nos média: "Antes do 25 de Abril, e isto é uma contradição, havia programas de televisão só sobre teatro e outros só sobre poesia e outros só sobre atividades culturais e agora não. Temos os reality shows a substituir isso tudo. Isto devia ser exatamente ao contrário. Devia tratar-se disto. A televisão pública devia tratar disto. Eu nunca abdicaria da democracia, mas isto está mal", comenta.
Ainda na mesma linha, reforça a falta de força que os atores sempre tiveram para conseguirem impor a sua vontade. "Basta ver-se que em Espanha os sindicatos deles têm muito mais força nesta área. Foi um lado fraco desde o 25 de Abril, já devíamos ter mais força. Espero que não passem mais 50 anos sem resolvermos estes problemas, mas sempre em democracia, isso nunca pode ser uma questão".
A Casa do Artista e o país que não é para velhos
A Casa do Artista, o centro da APOIARTE – Associação de Apoio aos Artistas, começou a sua atividade em 1999, na Estrada da Pontinha n.º 7, em Carnide, onde permanece até hoje. A principal função desde a sua criação é ser um refugio para os profissionais do mundo do espectáculo na terceira idade.
Para José Raposo, ter a oportunidade de conviver com estas lendas da arte do passado é uma "experiência única". "São pessoas que toda a vida ofereceram o seu talento ao povo e é nosso dever não os esquecermos. Assim, damos a visibilidade possível a estas pessoas".
Numa reflexão mais pessoal e citando o clássico do cinema dos irmãos Coen, admite: "Este país não é para velhos". "Neste país existe idadismo e nós não damos o verdadeiro valor a quem tem o conhecimento. Nas sociedades africanas e asiáticas dá-se mais valor aos velhos. É uma das grandes contradições da história da humanidade, porque a Europa é o centro da civilização numas coisas e depois há coisas em que é o contrário.
O mais velho é quem tem de se ter mais respeito, é o mestre, é quem tem de se ouvir", sublinha. "São eles que deviam estar a ensinar-nos, em escolas e a dar palestras e a transmitir a nossa identidade, porque são quem a conhecem melhor. O que se passa é que não se pergunta nada aos mais velhos. Em Portugal temos muito mais vontade de ver o que se passa lá fora do que perguntar aos nossos mais velhos como se fazia aqui. No teatro, por exemplo, estamos sempre a ver o que se passa em Inglaterra, em França, nos Estados Unidos, e não ligamos à nossa cultura", lança a reflexão.
"Neste país é criminoso não se dar trabalho aos mais velhos e até não os colocar a ensinar".
"Nós temos uma cultura super valiosa e interessante a nível da escrita. Por exemplo, no caso da Revista à Portuguesa é muito interessante porque é um teatro ligeiro e popular, mas tem origens muito profundas, apesar de ter começado a ter uma decadência desde o 25 de Abril. Esta decadência tem muito a ver com este facto de nos apagarmos. No tempo do fascismo a Revista era importantíssima, porque era ali que se mandavam algumas bocas nas entrelinhas, os autores eram muito criativos para ultrapassar a censura. Agora, podemos dizer tudo, mas mesmo assim é muito importante do ponto de vista de contrapoder".
Sobre o que falta na instituição a que preside, admite: dinheiro. "Não existe grande apoio para as instituições. Somos um país pobre e estas instituições precisavam de mais apoio".
"A nossa casa em particular é uma instituição muito pesada, porque não é só um lar de terceira idade. Temos o teatro, o Armando Cortez, uma galeria de arte, 10 salas para dar conferências e workshops, e é uma casa especial", explica. "Essas valências que temos servem também para termos algum retorno económico, mas para manter este edifício maravilhoso edificado nos anos 80 é bastante complicado", lamenta.
A primeira direção desta casa foi composta por Otávio Clérigo, como presidente, Carmen Dolores, Armando Cortez, Manuela Maria e Pedro Solnado, sobrinho de Raul Solnado. O atual presidente admite que foi um processo complicado para conseguir as autorizações necessárias à exploração do terreno e estes artistas foram autênticos "guerreiros". Anos passaram e a Casa do Artista é considerada hoje um dos melhores locais da Europa para acolher artistas idosos. Ao todo, conta com 76 residentes e 60 funcionários.
"É um parque muito difícil de gerir. Por mês gastamos cerca de 1.600 euros por cada residente, e o que se exige dos residentes são 75% ou 90% do que ganham da reforma, dependendo da sua condição de dependência, e isto nunca chega ao valor que gastamos por cada um", informa José Raposo.
"Estamos sempre a tentar encontrar apoios, não só nas instituições oficiais, mas também com particulares e mecenas. Uma percentagem das vendas da bilheteira do Teatro Armando Cortez reverte sempre para nós, mas não é suficiente. Além disso, o teatro precisa de obras, vai fazer 25 anos e vai ser outro investimento que vamos ter. Tudo isso é dinheiro. A Casa do Artista é uma missão e somos um grupo de pessoas que estão ali para aquela causa", termina.
Como é costume, e para continuarem com a sua missão, a Casa do Artista pede todos os anos para se contribuir de forma gratuita com 0,5% do IRS para a APOIARTE - Casa do Artista. Isto é simples e sem custos, bastando preencher o Quadro 11 do Modelo 3 com o NIF 501 705 163.
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