Se na cena final do último episódio da série nos despedimos de Downton Abbey em 1926 com neve, o filme traz-nos um regresso soalheiro a casa dos Condes de Grantham, em Yorkshire, já no ano de 1927. Para quem não acompanhou as seis temporadas, a série britânica relata a vida da família aristocrática Crawley durante os anos 20. Para além dos condes de Grantham, Robert e Cora, e das filhas, Mary e Edith, Downton Abbey é também a casa de todos aqueles que lá servem. Criados e mordomos remam em conjunto para que tudo funcione de forma perfeita, e têm um papel tão ou mais importante do que os seus senhores.
A principal premissa do filme, anunciado em 2018, é a estadia do rei e da rainha de Inglaterra na mansão. Como era de esperar, a casa, que anteriormente já tinha ficado caótica com acontecimentos muito menos relevantes, fica agora num alvoroço fascinante. Aquilo que vemos é não só uma obsessão quase doentia pela família real, mas também uma fasquia muito elevada para impressionar aqueles que estão habituados a que tudo esteja perfeito. É hora de limpar todos os centímetros da propriedade, de deixar todas as pratas como se fossem espelhos e de vestir a melhor roupa. Na verdade, o tema do filme não é mais do que uma desculpa para deslumbrar o espectador com a luxo da época e com os cenários detalhados e repletos de ostentação a que a série já nos tinha habituado.
A vida da família Crawley continua igual, como se a série da produtora Carnival nunca tivesse acabado. A génese de Downton Abbey mantém-se, mas o filme perde pela falta de presença de algumas personagens que, à partida, são fundamentais. Se, por um lado, Robert e Cora são considerados as figuras com mais poder na propriedade em Yorkshire, por outro, é difícil encontrarmos alguma parte neste novo capítulo em que a sua ação seja fundamental. Acabam por ter um cariz meramente presencial, nunca sendo cruciais em qualquer circunstância. Fica a sensação de que estavam demasiado ocupados a receber o rei e a rainha para ter algum tipo de influência. O mesmo serve para Mary e Edith, que têm um papel muito inconsistente. As irmãs ora estão muito focadas na sua vida pessoal, que nada tem que ver com o resto da história contada, e que só se consegue perceber vendo a série, ora estão a tentar intervir, sem sucesso, na narrativa principal.
Se, numa primeira instância, (quase) todos ficam em êxtase com a visita real, rapidamente percebemos que este é também o maior motivo de perturbação do ambiente harmonioso que se vive na propriedade de Yorkshire. Entre conspirações e lutas de famílias e de egos, há ainda espaço para histórias que se desenvolvem em paralelo, romances que ajudam a selar pontas que a série tinha deixado soltas, e tabus (referentes à época) que continuam a ser quebrados.
Com o foco de luz apontado continuam os criados do piso de baixo, aqueles que mais vão perder a estabilidade com o frenesim da estadia real. O ex-mordomo Carson volta para meter ordem na casa, a cozinheira Mrs. Patmore reclama mais do que nunca quando descobre que o cozinheiro real se vai apoderar da sua cozinha, e o atual mordomo Barrow surpreende com um lado humano que não tínhamos visto antes, mas sempre muito distante daquilo que se está a passar em Downton. No fundo, Julian Fellowes toca em alguns pontos fracos do público. E, para (não) variar, damos por nós rendidos à simplicidade do piso de baixo e a pedir para que as formalidades da realeza sejam substituídas pelas peripécias dos criados, que nunca poderiam estar demasiado presentes.
Mas, se há uma verdadeira razão para ir ao cinema ver Downton Abbey, essa razão está sentada numa poltrona, na maior sala da mansão, de bengala na mão, com um ar altivo, e chama-se Lady Violet, interpretada por Maggie Smith. A presença intensa da titã não passa ao lado de ninguém. Não é nada que a série não nos tivesse dado a conhecer, mas agora, de uma forma muito mais concentrada, voltamos a ver uma anti-heroína sempre com uma resposta azeda na ponta da língua. A matriarca é o ponto central de intrigas e de intervenções cheias de escárnio. A condessa viúva de Grantham, mãe de Robert Crawley, é a representação tradicional das altas classes, e os seus deliciosos diálogos com Isobel Crawley (Penelope Wilton) e com uma nova personagem, Lady Bagshaw, interpretada por Imelda Staunton, fazem as maravilhas do espectador.
O filme que devia ter ficado a meio
Downton Abbey tem espaço para tudo, mas a verdade é que muitas das cenas que estão fora do foco central são completamente dispensáveis e não acrescentam nada, para além de tempo. Parece que Julian Fellowes estava com medo de deixar personagens de fora, arranjando situações desnecessárias para justificar a sua presença.
Para os fãs mais fervorosos, o filme traz um sabor nostálgico de quem volta a um lugar onde já foi muito feliz. Mas não é difícil percebermos o porquê de haver quem não esteja em êxtase com a longa-metragem. Downton Abbey não apaixona ninguém naquelas duas horas, nem deixa ninguém de coração apertado ou com o sangue a ferver. Ainda assim, fica um aviso para aqueles que têm as emoções mais à flor da pele: poderá ser útil um lenço para os últimos minutos, há risco de lágrimas!
Não é crucial dominar o passado das personagens para conseguir acompanhar os acontecimentos, e, nesse sentido, é um filme para todos. Mas Downton Abbey traz a ideia de que é feito para agradar quem acompanhou as 56 horas da série, e não para quem vai às salas de cinema sem qualquer conhecimento prévio da história. Foi feito para saciar as saudades dos fãs mas podia ter sido facilmente reduzido a uma hora, como se de um episódio especial se tratasse. No final, fica uma marca de indiferença, um vazio e uma falta de propósito.
Em 2017, ainda a longa-metragem não tinha sido anunciada e Maggie Smith, que tem o papel de matriarca da família Crawley, disse numa entrevista ao British Film Institute que achava que um filme baseado na série podia ser “squeezing it dry” (“espremer até ficar seco”, numa tradução livre para português). Dois anos depois, o enredo, que já estava praticamente seco, tornou-se num filme que os fãs queriam mas de que ninguém precisava.
Nada do que acontece ao longo daquelas duas horas é fundamental para trazer as respostas que a série não tinha dado. E, para sublinhar ainda mais a ideia de que a escolha certa era o filme ter sido um episódio especial, os últimos minutos não colocam um ponto final na história de Downton Abbey. Ao som de "The Suite", o tema principal da banda sonora, abandonamos a propriedade dos Crawley com a sensação de que se fechou um ciclo, mas sem qualquer certeza de que é mesmo uma despedida.
Ao fim de seis temporadas, que somam um total de 52 episódios, e de um filme, ainda ficou espaço para continuação. Claro que há mil e uma histórias que podem ser contadas, e claro que, provavelmente, os fãs vão sempre pedir mais. É difícil fartarmo-nos do formato, que, não sendo cansativo, acaba por ser repetitivo. O mérito é, em grande parte, das personagens cativantes, que nos fazem sentir como se fôssemos parte da família. Mas será que vai haver próxima vez? Falta descobrir se a fórmula Downton Abbey é mesmo um poço sem fundo.
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