A Funai Electric anunciou que vai deixar de fabricar a 30 de Julho os seus leitores de videocassetes de Video Home System (VHS), um formato que foi lançado há precisamente 40 anos. Mas a morte do VHS já tinha sido anunciada há vários anos e por variadas razões.
A empresa, citada pelo jornal Nikkei, afirma ter chegado a vendas de 15 milhões de unidades por ano, mas os números relativos ao ano passado não passaram das 750 mil unidades comercializadas - isto quando a competição com os formatos DVD e Blu-Ray começam igualmente a esmorecer.
Era a última empresa no Japão - e, segundo várias fontes, no mundo - a comercializar estes equipamentos (conhecidos em inglês por VCR, de "videocassette recorders "), sob a sua marca ou para empresas de electrónica de consumo como a Sanyo (da Panasonic), Sharp, Toshiba ou Denon.
Combinados ainda dão lucro
A Funai alegou a falta de componentes para interromper a produção destes equipamentos, que era feita na China. Porém, não se sabe se estes fabricantes chineses vão continuar a produzir os leitores de VHS, se resolverem a escassez de componentes. No entanto, a Funai pode não estar a abandonar o negócio dos VCR. No seu relatório anual, dos resultados financeiros até 31 de Março passado, a empresa alega que a venda de equipamentos audiovisuais "cresceu devido às boas vendas dos modelos Combo DVD/VCR".
Entre o ano fiscal de 2014 e de 2015, um outro documento interno mostra que a venda de leitores de DVD aumentou igualmente devido a esses "combos", modelos combinados de leitores de DVD e VCR, enquanto todos os outros decresceram - nomeadamente gravadores de DVD ou na gama Blu-Ray.
Da luta de formatos...
A Funai "recebeu um grande número de chamadas de proprietários japoneses de cassetes VHS desesperados, porque ainda não tinham transferido as suas recordações preciosas de casamentos e outro tipo de eventos especiais para outros formatos", disse um porta-voz de empresa.
A empresa fabricava estes equipamentos desde 1983, após ter perdido a guerra de formatos que então ocorreu, com a sua Compact Video Cassette (CVC) - uma proposta portátil, por ter uma fita magnética mais pequena - a não se impor perante o Betamax e o VHS, numa luta pela liderança que o último acabou por ganhar.
Um outro formato, o LaserDisc, nunca se conseguiu sequer apresentar como concorrente, apesar das suas melhores capacidades em termos de vídeo e som. Mas não permitia a gravação, ao contrário dos descendentes CD, DVD ou Blu-Ray.
Os leitores de Betamax no mercado doméstico foram descontinuados em 2002 (o formato diferente Betacam continuou a ser usado em usos profissionais nas produtoras de vídeo e televisões), até que em Novembro do ano passado a Sony parou com a sua produção destas cassetes no Japão.
A 27 de Outubro de 2008, foi a fabricante JVC (que tinha liderado o lançamento do VHS) a interromper o fabrico de leitores neste formato, quando o DVD se instalava como alternativa.
...à evolução tecnosocial
Os contributos para o fim da indústria analógica das cassetes de vídeo surgiram de várias frentes, das operadoras de televisão por cabo (com ofertas de canais de filmes) ou propostas como o Tivo e até a TV interactiva, em Portugal (pela então TV Cabo) e ainda pela pirataria de conteúdos proporcionada pela Internet.
Houve outras razões, mais desconfortáveis e mesmo egoístas, como a necessidade de o interessado num filme se deslocar a um videoclube para o alugar em cassete e, depois, efectuar uma nova deslocação para a devolver. A Netflix resolveu esse problema, mas evoluiu depois para o sistema de vídeo online.
As cassetes VHS continuam a circular, nomeadamente entre coleccionadores, com alguns a pagarem até 2.000 dólares por edições raras, tornando-as no vinil da gravação de vídeo analógico, como comparava a Mental Floss relativamente ao mercado paralelo e bem sucedido dos coleccionadores de discos de vinil.
Mas Tania Loeffler, analista da IHS Technology, considera que os VCR "não vão regressar como o vinil", devido à sua má qualidade de imagem.
"Diferente do vinil, onde realmente se tem uma melhoria da fidelidade sonora, o VHS tem uma mais baixa resolução do que o DVD, e o som nem sequer é comparável", nota igualmente Caetlin Benson-Allott, professora de estudos cinematográficos e de media na norte-americana Georgetown University, em entrevista à Slate.
Sinais precoces
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Sendo pragmáticos, a morte do VHS já estava anunciada há anos. A Funai apenas pode estar a colocar o último prego no caixão.
Em meados da década de 90, eram vendidos mais de 200 milhões de VCR por ano, apesar dos receios da pirataria pela indústria cinematográfica. O sucesso decorria igualmente por a JVC ter licenciado a tecnologia VHS a qualquer fabricante que pagasse pelos direitos de uso.
Em 2010, a Associação do Comércio Audiovisual de Portugal (ACAPOR) dizia que a cadeia de videoclubes Blockbuster "cai aos pés da pirataria provocando um dano incomensurável em todo o mercado videográfico", ao anunciar o fecho de lojas em território nacional, mas também porque, no início de 2009, a Blockbuster fechou centenas de lojas e outros videoclubes não aguentaram igualmente a evolução para uma nova geração de visualização de filmes.
Dessa época pode-se recuar até Agosto de 2005. "A ideia de que os videoclubes vão magicamente desaparecer por alguma razão é estranha", dizia Tom Adams, presidente da consultora Adams Media Research, ao New York Times. "É ainda a forma mais popular de ver filmes".
Mas a visão já estava errada, porque esse era o ano da erosão do VHS nos EUA, quando cadeias como a Circuit City e a Best Buy deixaram de vender VCR nos EUA, até porque 88% dos lares americanos já tinha um (percentagem que baixou para 58% em 2013), contabilizava a The Atlantic.
Os dados para os EUA eram inabaláveis: entre 2000 e 2004, a Consumer Electronics Association estimava que a venda de VCR tinha passado de 1,8 mil milhões de dólares para apenas 144 milhões, enquanto projectava a venda de apenas 2,8 milhões de unidades para 2015, perante os 23 milhões vendidos em 2000.
Na sua recente entrevista, Caetlin Benson-Allott mostrava-se mesmo surpreendida por ainda se fabricarem VCR, quando a JVC os parou de produzir em 2008 e, anos antes, quando as pessoas começaram a ver mais DVD do que cassetes VHS.
O impacto das consolas de jogos
Em 2002, pela primeira vez, as vendas dos leitores de DVD ultrapassaram as dos VCR. Para isso contribuiu, em muito, a venda de consolas de jogos com leitores incorporados de DVD. O primeiro caso ocorreu em 2000, quando a Sony lançou a PlayStation 2 (PS2) no Japão e, posteriormente, noutros mercados internacionais, tornando-se um sucesso de vendas. O DVD tornou-se a tecnologia mais rapidamente adoptada de sempre.
Em Fevereiro de 2004, a Viacom queria abandonar o negócio da Blockbuster Video, após resultados financeiros decepcionantes (e não encontrar comprador para o negócio do aluguer de vídeo, onde detinha mais de 80%). Nessa altura, o negócio de aluguer de vídeos que se tinha iniciado com uma loja em Dallas, em 1985, contava com 8.500 lojas e 48 milhões de assinantes.
A movimentação para o abandono ocorreu igualmente num dos maiores mercados de electrónica na Europa. A 22 de Novembro de 2004, o jornal britânico The Telegraph noticiou a "sentença de morte" do VHS, após a cadeia de venda de produtos de electrónica de consumo Dixons ter anunciado que ia deixar de vender VCR.
"Dizemos adeus a um dos mais importantes produtos na história da tecnologia de consumo", afirmava John Mewett, director de marketing da cadeia de venda de electrónica de consumo da Grã-Bretanha. "Estamos a entrar na idade do digital e a nova tecnologia do DVD representa uma mudança na qualidade de imagem e conveniência".
Em resposta a esse abandono, a JVC respondeu à Dixons afirmando haver "cerca de dois milhões de novas vendas de VCR", pelo que isso demonstrava existir procura pelos consumidores. JVC que, recorde-se, iria abandonar o mercado dos VCR quatro anos depois.
A procura era tanta que a agência noticiosa Reuters contava como, à época, os assaltantes de casas já nem sequer levavam os leitores de VHS "porque os novos custam tão pouco que ninguém quer um modelo em segunda mão".
Interesse no software para vendas de hardware
Os fabricantes de equipamentos electrónicos tendem a lançar novos produtos que possam captar a economia dos utilizadores - nem sempre pelas melhores razões para o consumidor. Um formato triunfador terá um espaço de tempo para se impor à concorrência, mesmo não sendo o melhor em termos técnicos. A luta entre o VHS e o Betamax é desde então um interessante "case study".
O lançamento há uma dúzia de anos de uma outra guerra de formatos, desta vez no mundo dos DVD - onde competiam cinco alternativas, nem sempre compatíveis entre si: DVD-R, DVD-RW, DVD+R, DVD+RW e DVD-RAM - mostraram como o consumidor estava a ser levado para formatos proprietários (software) que nada lhe trariam de bom, excepto estar sempre a adquirir novos equipamentos (hardware).
O modelo nem sequer é recente. De forma simplista, pense-se na compra das lâminas de barbear para um suporte de uma dada marca. Qualquer outra não irá funcionar nesse suporte. Onde está defendido o interesse do consumidor? O mesmo se passa com as plataformas de vídeo.
Caetlin Benson-Allott salienta que a longevidade das fitas magnéticas VHS é superior à de um DVD - 25 anos, para um uso médio, e cinco a 10 anos para um DVD-R, enquanto o VHS pode durar 50 anos, "se bem acondicionado".
Mas há uma outra questão quando os fabricantes terminam a produção de formatos e de equipamentos: "perdemos a história do cinema e da televisão de cada vez que se muda de formatos", diz. E lembra como as cassetes Betamax foram concebidas pela Sony para serem similares ao tamanho de um livro. "A visão original era a de ter uma biblioteca de cinema e televisão tal como se tinha uma querida biblioteca de livros".
Com a decisão da Funai, o utilizador não terá qualquer biblioteca física de vídeos VHS ou Betamax e do DVD só se poderá falar daqui a uns anos. Entretanto, perdeu muitos vídeos do cinema, da televisão ou pessoais.
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