O título original em inglês, “A History of Water”, não faz muito sentido. O título da tradução diz mais sobre o conteúdo do livro.
O título em inglês é um enigma poético. Há muitas coisas no livro ligadas à água, como a obsessão de Damião com as sereias e a sua visão da História como um rio. Mas a verdadeira ideia é que a História da Água é um paradoxo. Não se pode escrever uma história da água, porque é igual em toda a parte, mas chama a atenção para as divisões arbitrárias da geografia e dos recursos que utilizamos para escrever História.
Agora, a pergunta óbvia: o que leva um inglês a interessar-se por histórias do Renascimento português?
Bom, embora eu seja inglês, cresci no Quénia e na Suíça e estudei o Renascimento num contexto global. E, obviamente, os portugueses foram pioneiros no encontro com um mundo mais alargado. Se queremos saber como é que o Renascimento se relacionou com o mundo, temos de considerar Portugal.
É muito interessante que tenha escolhido duas pessoas tão diferentes. Por outro lado, Camões, que é considerado o maior poeta português — embora hoje haja quem considere que foi Fernando Pessoa —, não tem uma biografia publicada. Talvez tenha, mas não consegui encontrar um livro exclusivamente dedicado à sua vida. Quando estudei, durante o Estado Novo, Camões era louvado como um grande herói, e contava-se aquela peripécia romântica do salvamento do manuscrito d'"Os Lusíadas" durante um naufrágio, mas pouco se falava da sua vida.
É uma boa história, essa do naufrágio. E verdadeira, quase com certeza.
Outro aspecto interessante é que mostra os portugueses dessa época duma maneira muito mais realista do que nós aprendemos na escola. Ensinaram-nos que os Descobrimentos foram uma gesta de heróis, muito corajosos, às vezes um pouco cruéis, mas não muito, e que a nossa intenção era a expansão do cristianismo — um mito que encobria outras razões mais prosaicas, digamos. O principal interesse era encontrar rotas comerciais. Foi a época da expansão europeia à procura de mercados. Os ingleses, por exemplo, tentaram encontrar uma rota para a China através do Ártico — não conseguiram, mas deram com os russos e começaram logo a comerciar com eles. Nós tentamos a rota pelo sul, contornando a África e fomos mais bem sucedidos. Isso está muito bem explicado no romance do João Paulo Oliveira e Costa, “O Império dos Pardais”.
Realmente, os portugueses nunca ocuparam muito território, a não ser no Brasil. Construíam feitorias na costa, o que era uma estratégia inteligente, uma vez que não tinham uma população muito grande.
Pois, éramos cerca de dois milhões. Voltando ao seu livro, você mostra Camões de uma maneira menos heróica. Era um arruaceiro...
Sim, era uma pessoa complicada. E não teve sucesso durante a vida.
Já o Damião de Góis era um verdadeiro homem do Renascimento.
Sim é um polímata [uma pessoa enciclopédica] e uma figura cosmopolita. Foi o que me atraiu nele.
Sempre quis escrever sobre Camões, porque, tendo nascido no Quénia e estudado o Renascimento, Camões é uma ligação entre a África e esse período. Contudo, como diz, é muito difícil escrever sobre ele, porque se sabe muito pouco, e também porque era uma pessoa contraditória. Por outro lado, Damião de Góis é uma personalidade fascinante, diversificada, culta, do qual muito se sabe.
Uma das coisas que eu pretendia, ao escrever o livro, era consultar a Torre do Tombo, que é um arquivo global, com informações sobre o mundo que ia sendo descoberto. Muitos documentos perderam-se no terramoto, mas ainda há muita coisa nas instalações modernas, na Cidade Universitária. Os documentos da Casa da Índia perderam-se.
Então o Damião de Góis chegou a ir à Rússia?
Sim, na década de 1520, quando trabalhava na feitoria portuguesa em Antuérpia. A sua função era basicamente encontrar novos negócios e a Rússia, a Lituânia e os países escandinavos não tinham açúcar, podiam comprar aos portugueses.
A Lituânia era muito maior do que a Rússia, nessa época.
Pois era. Então, havia esses mercados potenciais para os portugueses, o que incluía o açúcar e as especiarias. O único adoçante que eles tinham era o mel. O Damião procurava compradores, mas ao mesmo tempo recolhia informações sobre essas partes do mundo. Quando, mais tarde, escreveu a sua famosa “Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel”, inclui todos os seus conhecimentos sobre os sítios por onde tinha passado. É uma história comparativa muito abrangente.
E o Camões, onde é que ele aprendeu a cultura clássica que viria a usar n'"Os Lusíadas”?
Crê-se que um dos seus tios era altamente instruído e tê-lo-á ensinado, e que passou algum tempo em Coimbra.
Não é estranho que a Inquisição não o tenha importunado? “Os Lusíadas” não é um texto muito cristão.
Houve dúvidas, com certeza, e o próprio Camões disse que todas aquelas descrições de deuses e ninfas eram alegorias das grandes explorações dos portugueses. Isto num período de transição, no sentido em que a cultura clássica europeia não era vista como uma ameaça pagã, mas mais como parte de uma identidade original. Portanto, o classicismo era aceite e Camões teve um papel importante a mostrar como a cultura cristã e a clássica podiam funcionar em conjunto.
O Damião é completamente diferente, porque compreendeu Lutero e todas as “ideias erradas” que realmente preocupavam a Igreja.
Uma coisa particularmente incómoda que menciona são as complicadas regras de jejuo e de abstinência. Só se podia comer carne em cento e tal dias por ano.
Sim, as regras eram muito complicadas, porque além dos dias da semana, ainda havia os dias de festas religiosas. Era um preceito essencial da percepção que as pessoas tinham do mundo e do seu lugar na sociedade. Era preciso ser obediente a certas regras.
A parte em que descreve os procedimentos da Inquisição é realmente assustadora. É difícil de aceitar a minúcia das inquirições.
Foi uma tragédia na vida de Damião. Durante a primeira parte viveu num ambiente cosmopolita, aberto, humanista, e na segunda parte, a Europa entrou num período mais pesado. Para o biógrafo, é uma vantagem que ele tenha sido obrigado a repetir o relato dos acontecimentos da sua vida muitas vezes.
Teve acesso à documentação da Inquisição?
Tive. Foram publicados pela primeira vez no século XIX e há muitas edições. Agora até se pode ver os originais online.
São em português ou em latim?
São em português. A Inquisição conseguiu tantos pormenores sobre a vida e as viagens de Damião porque não lhe diziam do que ele era acusado, o que o obrigou a contar tudo o que se lembrava e a explicar todos os pormenores. “Quando eu fiz isto assim assim daquela vez, foi por tais e tais razões.” Uma situação trágica e horrível para ele, mas muito útil para um biógrafo.
Quando a Inquisição prendia uma pessoa, a primeira coisa que lhe dizia era que se viesse a sofrer nos interrogatórios, a culpa era dela, porque se tinha colocado na situação de suspeito!
Nas actas podemos ver Damião, durante os meses e anos em que foi interrogado, a dizer que se estava a repetir e não percebia o que eles não tinham compreendido nas sessões anteriores.
É o princípio de que o acusado, repetindo a mesma história, pode revelar alguma coisa em pequenas mudanças da narrativa.
No caso de Damião, estamos a falar dum homem quase com 70 anos a ter de se lembrar de acontecimentos ocorridos 50 anos antes.
E o denunciante também aparece na vida de Camões, não é?
Sim, o Simão Rodrigues, que foi o fundador dos jesuítas em Portugal, e que em 1540 estava em Coimbra na mesma altura que Camões, a recrutar acólitos para a Índia.
Há pessoas que acham que os jesuítas são a ordem mais intelectual e mais inteligente das ordens cristãs, (aliás, o Papa Francisco é o primeiro papa jesuíta). Por outro lado, os jesuítas foram sempre perseguidos por serem demasiado avançados em certas coisas, ao mesmo tempo que constituíam a “tropa da choque” da contra-Reforma. Como é que os vê?
No livro estamos a lidar com os primeiros tempos da história da Companhia de Jesus, uma época em que eles seguem vários caminhos. Há uma grande devoção religiosa, e só mais tarde é que se tornam mais frios, intelectuais e instruídos. A partir de 1560, quando começam a espalhar-se pelo mundo, a política de adaptação significa que eles precisam de conhecer todas as culturas que encontravam. Tornam-se então uma grande força intelectual e um caminho para conhecer outras culturas, como a japonesa e a chinesa.
Na América do Sul fizeram uma comunidade independente com os índios, uma espécie de república no sul do Brasil, onde é agora o Paraguai, e que era contra a escravização dos índios. Isto ia contra os interesses da Coroa e o Marquês de Pombal expulsou-os de lá. Muitos foram presos e torturados. E Pombal tinha estudado num colégio jesuíta!
Ele sabia com quem estava a lidar.
Costumamos dizer que a maior probabilidade de ser anti-católico é ter estudado num colégio católico.
Os ressentimentos são para a vida...
Acabou por ser uma espécie de expiação para os jesuítas. Ao princípio eram um movimento radical, mas, à medida que se tornaram mais institucionais, também ficaram menos radicais. Mas continuaram a acreditar que precisavam de ser extremistas. Sempre tiveram um relacionamento complicado com o Vaticano.
Então, no Reino Unido, o que faz é ensinar História Medieval e o Renascimento?
O meu curso é sobre a literatura desse período, mais sob a perspectiva da literatura europeia num contexto global. Por isso é que Camões tem um papel tão importante.
Os russos também tiveram uma época de Descobrimentos no mesmo período, quando avançaram para Oriente até chegar ao extremo do continente, e chegaram mesmo a atravessar o mar até ao Alasca. Portanto foi um “descobrimento” terrestre, uma vez que não tinham acesso aos oceanos.
Quem protagonizou os Descobrimentos foram os portugueses e os espanhóis, e depois os holandeses. Posteriormente, os ingleses aproveitaram essa expansão. Eram mais bem organizados e mais eficientes.
Eles seguiram os métodos dos portugueses, criando feitorias para negociar as rotas. Os espanhóis estavam mais interessados em ocupar território. No caso das feitorias, precisavam de forças militares para as proteger, e muitas vezes essas forças ocupavam territórios em volta.
A Índia é um bom exemplo das diferentes colonizações. Os portugueses não conseguiram passar de pequenas áreas costeiras, porque não tinham capacidade para mais. Quando Catarina de Bragança casou com Carlos II, os territórios indianos fizeram parte do dote, e os ingleses rapidamente desenvolveram a colonização, aliando-se com os marajás até conseguirem controlar todo o sub-continente indiano.
Os portugueses também tinham feito isso, negociar com os poderes locais até os dominar, mas numa escala menor.
Há uma polémica sobre a palavra “Descobertas” porque é uma representação eurocêntrica.
Sim, “Explorações” faz mais sentido, porque o que eles fizeram foi explorar o que não conheciam. Senão também podemos dizer que os tupinambás descobriram Portugal quando veio uma embaixada do Brasil a Lisboa! É como se essas terras não existissem antes de ser descobertas.
Acredita naquela história de que uma armada chinesa no princípio do século XIV navegou por todos os oceanos, chegando inclusive ao Atlântico?
Não sei se há provas históricas, mas certamente que os chineses foram uns grandes navegadores no Oceano Índico e até poderão ter chegado à Austrália. Mas as provas de que tenham dado a volta ao mundo são muito fracas.
O que eu li é que quando essa armada voltou para a China, havia um novo imperador que decidiu queimar todos os navios e instaurar uma política de isolamento em relação ao resto do mundo. Política essa que durou até ao século XIX, quando os europeus obrigaram os chineses a abrir os portos.
Sabe-se ao certo que os chineses navegaram durante muito tempo no oceano Índico e chegaram à África Oriental. Depois é que veio esse período de isolamento deliberado, porque acharam que as influências estrangeiras eram negativas. Estes ciclos entre a abertura ao mundo e o isolamento aconteceram na Europa, na China e no Japão, em épocas diferentes. Havia uma dúvida se o contacto com o mundo era uma coisa boa.
Realmente é uma faca de dois gumes.
Bom, o contacto com outras culturas é inevitável e apenas precisa de ser regulamentado de modo a beneficiar todas as partes e não levar a uma homogeneidade, com todos a ficarem iguais.
As mesmas lojas Gucci no mundo todo...
Exactamente!. Uma das coisas que eu gosto em Lisboa é que por um lado é muito cosmopolita, mas por outro ainda mantém uma personalidade própria. Está a mudar, evidentemente, mas precisamos de agir para preservar essa originalidade. O movimento de pessoas e bens é positivo mas não pode levar a uma homogeneidade.
Como é que vê a redução de influência da Europa e o avanço imperial da Rússia na actualidade. É uma novidade, ou uma repetição da História?
A História tem sempre períodos que parecem uma repetição do passado. O que eu acho é que não podemos ter medo dos outros porque são diferentes, portanto qualquer objecção ao avanço da China deve ser equilibrada com uma apreciação do que têm para nos dar. A possibilidade de ter uma comunidade global a funcionar vem da compreensão das outras culturas.
Então vê a globalização como uma coisa positiva?
Como digo no livro, uma parte do problema é que a globalização ser sobretudo económica. Vivemos numa situação em que tudo o que consumimos vem do mundo inteiro. Mas do ponto de vista cultural, não há uma grande globalização. Acho que seria melhor ao contrário. Uma globalização cultural, no sentido da aceitação das outras culturas, para nos dar a possibilidade de compreendê-las melhor.
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