Nem três meses se passaram desde a última visita de Nick Cave a Portugal. Aquando do seu concerto no NOS Primavera Sound, escrevemos que «o músico parece querer expiar qualquer coisa que existe dentro da sua alma, e que só ele parece saber o que é», testemunho da energia evangélica com que o músico australiano se apresenta em palco, ladeado pela banda que o acompanha há quase quatro décadas. Essa capacidade que Cave tem de atear um fogo não é nova, evidentemente; os mais velhos lembrar-se-ão dos Birthday Party, os ligeiramente menos velhos dos primeiros álbuns dos Bad Seeds, recheados de crimes góticos. Os mais novos – e Cave conseguiu, através de discos como "Push the Sky Away" (2013), "Skeleton Tree" (2016) ou "Ghosteen" (2019) conquistar melómanos nascidos já neste século - só terão como termo de comparação aquilo que o músico tem feito desde a morte do seu filho Arthur, em 2015, tanto em palco como fora dele.

Fora, porque desde essa tragédia, após um obrigatório e compreensível período de luto, Cave decidiu expor-se ao mundo de uma forma que não é comum na esmagadora maioria dos artistas, ignorando um ou outro olhar mais íntimo proporcionado pelas redes sociais. Lançou um documentário intitulado "One More Time With Feeling" (2016), na ressaca da morte de Arthur; lançou uma sequela, "This Much I Know to Be True", já este ano; e criou um website próprio, o "Red Hand Files", onde os fãs podem enviar-lhe questões, declarações, cartas, frases simples, sabendo que a qualquer altura o músico poderá responder-lhes, ajudá-los, aconselhá-los, dizer apenas vai acabar tudo bem ou contar-lhes histórias pessoais com uma dose de bom humor (para a história fica a frase «fiquei tão espantado que quase deixei cair a seringa», sobre o fim da sua relação com PJ Harvey, nos anos 90).

Numa resposta recente à pergunta de um fã, sobre o objetivo primário de "Red Hand Files", Cave foi peremptório: «quero facilitar, de alguma forma, uma viagem mútua rumo ao propósito; diminuir a dimensão do nosso vazio e aproximarmo-nos do amor e da beleza». Nunca o rock n' roll teve personagem mais bíblica que Nick Cave, no sentido em que a sua crença no livro sagrado dos cristãos é extra-religiosa, é literária: existe tanto amor nas suas palavras quanto existe sangue, assassinato, incesto, desespero ou a eventual redenção, uma redenção que não necessita da tríade cristã para existir. Para Cave, sermos bons seres humanos basta para merecermos um lugar num qualquer céu. Não apenas "bons" no sentido moral, mas "humanos" com todas as contradições e sentimentos inerentes à espécie.

Nick Cave and the Bad Seeds | Rita Sousa Vieira / MadreMedia

Dir-se-á que é isso que o músico quer, também, fazer em palco: tornar-nos humanos. Basta que desça da sua plataforma, vezes e vezes sem conta, durante o espetáculo. Está ali uma estrela rock, um artista de gabarito, uma figura pública? Está, mas está sobretudo o Homem, que nesse simples gesto de permanecer junto da sua plateia arrasa com as noções pré-concebidas de que alguém que pisa um palco é deus e os que o veem seus fiéis. Na igreja de Cave não há lugar para uma divindade à qual se atribuiu um nome. A divindade é aquele lugar, aquele momento, aquela palavra cantada. É a reunião em si e a qualidade colossal da música. Nick Cave desce as escadas logo durante 'Get Ready For Love', o primeiro tema escutado no MEO Kalorama, e não é ele que está connosco nem nós com ele; estamos, todos. Ou, parafraseando Êxodo, 3:14: Somos o que Somos.

Num alinhamento que não divergiu muito daquele que apresentou no NOS Primavera Sound, Nick Cave passou por temas como 'There She Goes, My Beautiful World' gesticulando como pastor de um rebanho comum. Na forma como caminha, como aponta, como assina o cartaz de um fã, entrega o microfone a alguém da plateia. Tudo ali é Evangelho. No último concerto desta digressão de verão dos Bad Seeds, não faltou o clássico 'From Her To Eternity', rasgos de feedback cruzando o ar em tom de desafio. Nem um momento para mais tarde recordar: Paula, uma aniversariante sortuda, recebeu uma dedicação em 'O Children' como prenda. Em 'Bright Horses', vimos Cave a tentar erguer o mundo inteiro, qual Atlas de barro e de sangue. 'I Need You' e 'Waiting For You', ao piano, fizeram correr algumas lágrimas.

'Tupelo', que versa sobre o nascimento do Rei (Elvis Presley, naturalmente) lembra-nos que mesmo a revolução iniciada pelo rock n' roll começou com o sangue de um parto, e contou com Cave a tentar caminhar sobre as águas – o público, neste caso. 'Higgs Boson Blues', já depois das obrigatórias 'Red Right Hand' e 'The Mercy Seat', acrescentou uma bizarria pop ao imaginário gótico, com os gritos lancinantes de «Hannah Montana!» e um sorriso, no final, aliado a um abraço a Warren Ellis, quase que sinalizando a tal redenção. Ainda se ouviria o gospel puro de 'White Elephant' antes de um encore com 'Into My Arms' (dedicada a uma mãe que, via "Red Hand Files", lhe enviou «uma carta muito bonita»), o rock radiofónico de 'Vortex' e 'Ghosteen Speaks', onde por fim compreendemos: I am beside you. Aqui, junto à terra, junto dos homens. Ainda teve tempo para apresentar a banda e acrescentar 'The Weeping Song' ao alinhamento, mas duas horas depois já não havia nada mais a conquistar. E, francamente, nunca houve: ligados humanamente a Nick Cave, mesmo quem nunca o ouviu já está conquistado à partida.

Peaches | Rita Sousa Vieira / MadreMedia

Peaches pregou um Evangelho diferente. O seu deus é feminino, o seu salvador é a vagina. Há pouco mais de vinte anos, esta antiga professora lançou um álbum intitulado “The Teaches of Peaches” que, inserida na cena electroclash (fusão entre a energia do punk rock e instrumentação eletrónica), provocou ondas concêntricas atrás de ondas concêntricas não só na música como em movimentos feministas e na cultura queer. Boa parte da “culpa” está no hino ao sexo, um sexo auto-depreciativo e hedonista, que dá pelo nome de 'Fuck the Pain Away'. Essa espécie de êxito (espécie, porque só é êxito para quem a ouviu e não para o mainstream em geral) deu origem a uma carreira onde se contam já seis álbuns de estúdio e digressões por todo o mundo. Iggy Pop ouviu-a e afirmou que podia ser uma canção dos Stooges, que é muito provavelmente o maior elogio que um artista pode receber. Trey Anastasio ouviu-a e considerou “The Teaches of Peaches” «o melhor álbum de sempre», que é muito provavelmente o segundo maior elogio...

Aterrando uma vez mais em Portugal pela mão do MEO Kalorama, num concerto inserido nas celebrações do 20º aniversário de “The Teaches of Peaches”, a artista canadiana começou por troçar de si mesma e dos seus 55 anos, entrando em palco com a “ajuda” de um andarilho. Na cabeça vestia o símbolo da sua religião: uma vulva. Na MPC com que disparava os ritmos básicos e os graves que dão sonoridade ao electroclash, lia-se uma mensagem pouco simpática para com Ron DeSantis, governador do estado norte-americano da Flórida, conhecido pelas suas posições extremamente conservadoras (este ano, assinou uma lei que impede que as escolas do estado dêem aulas sobre orientação sexual e identidade de género). Mesmo o calão que usou, desde logo, continha ali um elemento de subversão e desafio: what's up, fatherfuckers?

Ignorando tais Complexos de Electra, o espetáculo de Peaches foi descomplexado, razoavelmente pornográfico e, acima de tudo, extremamente divertido. À canadiana juntam-se, a dada altura, vários outros elementos: uma guitarrista mais metálica que os Metallica (que tocou um solo de envergonhar muita gente), um baterista de mamilos tapados (outro elemento subversivo: normalmente são os mamilos femininos o que ofende e, como tal, deve ser escondido), e uma mão cheia de dançarinas, cada qual tão desnuda quanto a própria Peaches (duas delas encetaram um strip-tease incomum, na medida em que envergavam seis ou sete pares de cuecas).

Em 'Cum Undun', atreveu-se a caminhar sobre o público, a quem pediu que guardasse os telemóveis durante alguns instantes («se eu cair, o concerto acaba»), em 'Keine Melodien' entusiasmou alguns (poucos) fãs alemães, e em 'Rock Show' quase fez com que a casa, isto é, o MEO Kalorama viesse abaixo. Pelo meio, várias mensagens pró-aborto – escritas num body e numa bandeira –, o apogeu riot grrrl de 'Boys Wanna Be Her', duas canções sobre genitália feminina ('Pussy Mask' e 'Vaginoplasty') e, claro, 'Fuck the Pain Away' para fechar com estrondo, e com champanhe ejaculado, uma atuação tão burlesca quanto necessária. Enquanto no mundo houver homens a decidir aquilo que as mulheres podem ou não fazer com as suas vaginas, Peaches será sempre uma cantora de intervenção. Talvez a mais hardcore de todas.

Ornatos Violeta | Rita Sousa Vieira / MadreMedia

Os Ornatos Violeta passaram no MEO Kalorama por mais uma etapa do seu regresso. São uma espécie de LCD Soundsystem à portuguesa. Ora acabam, ora não acabam, ora fazem concertos de despedida, ora regressam pouco tempo depois para agradar a quem ainda não os viu. Não obstante esta crítica ligeiramente mais cínica, a verdade é uma só: o grupo portuense continua a encaixar-se naquele grupo de bandas essenciais, as quais é preciso acarinhar.

A culpa é de canções como 'Coisas', com a qual abriram o concerto, do ritmo eletrónico com que iniciam 'Tanque', e até dos momentos que não estavam no guião, como a falha em 'Dia Mau' («foi lentinho, f*** tudo...», disparou Manel Cruz). O vocalista acabaria por tirar a t-shirt, como é seu apanágio, e fazer crowdsurf em 'O.M.E.M.' (que terminou com uma das frases do dia: «alguém me apalpou o cu, mas agora não sei quem posso acusar de assédio»). As indispensáveis 'Ouvi Dizer' e 'Capitão Romance', uma frenética 'Chaga' e um final com 'Há-De Encarnar' e 'Pára-me Agora' coroaram de êxito mais uma voltinha dos Ornatos Violeta pelos palcos.

Chet Faker deu início ao seu concerto no Palco Colina ainda Nick Cave se fazia ouvir, ao longe. Sozinho perante uma vasta multidão, o também australiano não deixou nada por mãos alheias, entrando logo com 'Gold' e '1998', dois dos temas que compõem o ótimo “Built On Glass”, álbum de 2014 que o catapultou para a fama. Porém, nem o desfile de êxitos amenizou a verdade pura e dura do Palco Colina: ao longo de três dias de festival, raras foram as vezes em que o som não se apresentava execrável.

Melhor sorte tiveram os Disclosure, que fecharam o festival com um concerto no Palco MEO no qual, escondidos por detrás da mesa de mistura e de um intenso fumo, passaram temas como 'You've Got to Let Go If You Want to Be Free' (um verdadeiro mantra da cultura rave), 'Douha (Mali Mali)' e, depois do longo discurso o qual samplam, 'When a Fire Starts to Burn'. Toda a gente dançou. Inclusive o cameraman do festival.

O MEO Kalorama regressa em 2023 e já há datas: 31 de agosto e 1 e 2 de setembro.