Mãe, cantautora, atriz, (futura) psicóloga, comediante nas horas vagas. Parece que não há nada que Sharon Van Etten não consiga fazer ou que, pelo menos, não queira fazer. Após ter lançado uma série de CD-Rs caseiros ao longo da década passada, a norte-americana editou “Because I Was In Love”, o seu primeiro álbum “à séria”, em 2009, que desde logo encantou pela melancolia das suas canções e pelos arranjos folk, mais ou menos minimalistas, que lhes conferiu.
Dez anos depois, eis que Sharon chega ao seu quinto trabalho de estúdio, “Remind Me Tomorrow”. Escutamo-lo uma e outra vez e estranhamos: o minimalismo ficou para trás, a folk também, o que existe agora é uma série de sintetizadores e eletrónica e toadas épicas (como em 'Comeback Kid', um dos singles daqui retirados). Que aconteceu a Sharon Van Etten? Ter-se-á aburguesado? Será que estamos perante um novo Bob Dylan, homem que nos anos 60 deixou cair a guitarra acústica e abraçou definitivamente o rock n' roll (por entre diversas acusações de “Judas!”)?
Nada disso. Sharon Van Etten é uma artista; os artistas precisam de crescer, sair da sua zona de conforto, evoluir para que não estagnem. Largar a folk – “e já não toco folk há algum tempo”, explica-nos ela nos bastidores do NOS Alive – foi apenas e só um passo natural na grande ordem das coisas. Se há quem não goste ou rasgue definitivamente Sharon da grande lista dos seus gostos, bem... Nunca irão compreender que ela, na verdade, manteve-se a mesma: doce, triste, à procura de um significado para esta coisa absurda a que chamamos vida.
Faço discos para mim própria. Não quero perder fãs, mas acho que a maioria me encorajaria a crescer e a mudar
Ainda assim, a própria admite ter ficado algo “nervosa” com o que os fãs pudessem pensar acerca desta sua nova sonoridade. Mas só um bocadinho. “Faço discos para mim própria. Não quero perder fãs, mas acho que a maioria me encorajaria a crescer e a mudar. As pessoas que gostaram do meu primeiro disco ainda o terão”, diz.
Terão esse disco (“Because I Was In Love”) e terão as dúvidas de 'I Wish I Knew', canção que o abre e que é um tratado em forma musical sobre a vida e o amor, sobre o que sucede antes e durante o nosso crescimento pessoal, sobre as respostas que não existem ou não parecem existir. Dez anos após ter sido editada, o percurso de Sharon Van Etten mudou exponencialmente – à cabeça, o facto de se ter tornado mãe há dois escassos anos.
“A maioria das canções que escrevi no passado eram sobre corações partidos”, esclarece. “Sobre curarmo-nos, seguirmos em frente. Muitas das canções que escrevo hoje em dia são sobre querer um futuro melhor, olhá-lo, tentar ser positiva. Estou num estado de espírito bastante melhor, pessoalmente falando”, continua. Uma espécie de felicidade com reservas, já que Sharon não se aliena daquilo que a rodeia. “Tenho de ter consciência de que o estado do mundo é, atualmente, bastante negro. Mas tenho de tentar ser uma pessoa positiva; pela minha família, pelas pessoas que me rodeiam. Só assim iremos ultrapassar isto”.
A isso mesmo parece aludir na sua conta oficial no Instagram, onde apresenta uma citação da escritora Anaïs Nin: “Não se pode salvar as pessoas, apenas amá-las”. Contra-atacamos com uma outra frase de Anaïs: “Acredito que escrevemos porque temos de criar um mundo onde possamos viver”. Será esse o modus operandi de Sharon Van Etten? “Tento escrever com a verdade e a esperança. Acho que cada um de nós vive na sua própria realidade. Tento ser positiva para que o tempo corra mais depressa”, explica.
Olhamos para tudo o que se passa no mundo, tentamos perceber o que leva certas pessoas a dizer certas coisas ou a fazer certas escolhas. Talvez devêssemos todos tornarmo-nos psicólogos, à semelhança de Sharon Van Etten, que voltou à faculdade para seguir precisamente essa carreira (paralela à música, claro). Percorre-nos uma dúvida: será que entender como funciona a psique humana ajuda-a a escrever canções?
“Ainda não cheguei a esse ponto”, comenta, entre sorrisos. “Ainda vou muito no início dos meus estudos, porque só posso ir [à faculdade] em regime de part-time... Espero lá voltar para o ano”. O que não quer dizer que Sharon não tenha aprendido já algumas coisas. “Acho que o mais interessante, daquilo que estou a aprender, é a importância que o teu passado tem. Porque há exercícios em que pensas apenas no teu passado; tens de lidar com o teu passado de modo a seguir em frente”, conta.
Sinto que se olhar demasiadas vezes para trás, fico triste. Mas se olhar demasiadas vezes em frente, fico ansiosa
Um passado que, no caso da cantautora, não é famoso: aos 17 anos, já depois de ter saído de casa dos pais, viu-se envolvida numa relação abusiva que durou cinco anos. Há uma canção sobre esse período da sua vida, intitulada precisamente 'Seventeen', no novo disco. O passado volta sempre para a atormentar? “Sinto que se olhar demasiadas vezes para trás, fico triste. Mas se olhar demasiadas vezes em frente, fico ansiosa... É no presente que me encontro mais feliz”. Carpe diem, portanto. “Exatamente”. Muitos têm questionado o que a Sharon Van Etten de hoje diria à Sharon Van Etten de 17 anos, mas optámos pela via oposta: o que não lhe diria? “Que iria ser fácil”. Evidentemente, pois nunca é.
A única coisa que parece fácil – no caso de uma artista como Sharon Van Etten – é a forma como se multiplica entre projetos. Depois de se ter tornado conhecida pela sua música, a norte-americana descobriu uma outra vocação: a de atriz. Participou em episódios da série “The OA”, da Netflix, teve uma participação especial no regresso de “Twin Peaks” ao pequeno ecrã e prepara-se agora para entrar em “Never, Rarely, Sometimes, Always”, o próximo filme da realizadora Eliza Hittman.
Vou andar a trabalhar em bandas-sonoras de filmes. E quero trabalhar com outros jovens músicos, ajudá-los a encontrar a sua voz
“Sinto-me muito sortuda por ter feito parte desses projetos”, garante. Só não garante um futuro neste meio. “Não faço ideia daquilo que me reserva o futuro. Se aparecer algum papel com o qual eu sinta uma ligação, tentarei cumpri-lo. Mas [ser atriz] não é o meu plano principal”. Mesmo que a nova casa de Sharon, do companheiro e do filho vá ser em Los Angeles, bem pertinho de Hollywood... “Vou andar a trabalhar em bandas-sonoras de filmes. E quero trabalhar com outros jovens músicos, ajudá-los a encontrar a sua voz, dar-lhes confiança para continuar, ajudá-los a encontrarem-se”.
Entre estas atividades extra-musicais poderá estar, até, a comédia; entre o último álbum (“Are We There”, de 2014) e este, Sharon fez, inclusive, algumas sessões de stand-up. Neste campo em particular, há uma série da qual a cantautora é fã (como, convenhamos, uma pessoa normal): “Seinfeld”, que cumpriu há bem pouco tempo o seu 30º aniversário. “Tenho muitos episódios [de “Seinfeld”] preferidos, mas o episódio com a recarga de Pez, onde a Elaine não consegue parar de se rir... [começa Sharon a rir desmesuradamente] É tão simples! Nunca me irei esquecer daquele riso”...
Uma outra efeméride deu-se em março, quando “Hospice”, disco dos norte-americanos Antlers, cumpriu 10 anos de existência. Importa referi-lo, já que, à altura, Sharon Van Etten “emprestou” a sua voz a algumas das canções ali presentes. “O Peter [Silberman, vocalista e guitarrista], o Darby [Cicci, ex-teclista] e eu somos muito próximos. Nem acredito que passou tanto tempo...”, desabafa. “Limitei-me a visitar os estúdios deles, foram muito simpáticos e humildes. Não há nada que eu cante que o Peter não consiga. O alcance dele é, provavelmente, melhor que o meu...”. Dizemos-lhe: “não sejas tão auto-depreciativa”. A resposta, humilde e sorridente: “A sério! Nem consigo cantar em falsete, teve ele de cantar por mim”.
Nesse ano de 2009, Sharon estava prestes a dar início a uma carreira musical que já resultou em cinco álbuns de estúdio, uns quantos EPs e até uma banda-sonora para filme (para “Strange Weather”, de Katherine Dieckmann, de 2016). Mas, antes disso, já havia gravado alguns CDs caseiros, os quais distribuía nos seus primeiros concertos, como “Right Beside Me” ou “I Miss Tennessee”. Discos que poderão, ou não, voltar a ser distribuídos. “Talvez um dia os reedite, mas esses discos foram todos edições caseiras”, explica.
Tenho centenas de maquetas que costumava dar nos meus concertos (...) Há muitas canções que se calhar voltarão a ver a luz
Terá Sharon perdido qualquer ligação emocional com esses temas? “Não”, afirma timidamente e com algumas dúvidas, antes de passar a esclarecer: “Tenho centenas de maquetas que costumava dar nos meus concertos. Em cada um deles, tocava cinco ou seis canções novas, gravava dez CDs e pintava uma capa, oferecia-os... Há muitas canções que se calhar voltarão a ver a luz do dia, mas eu, na altura, estava num outro estado de espírito”. Ainda assim, “sei o quão importantes essas canções são”.
Música, cinema, psicologia, comédia. E vinho, que antes de ser artista Sharon Van Etten trabalhou em dois bares, no Tennessee e em Nova Jérsia. Claro que não poderíamos terminar a conversa sem a questionar acerca do vinho português. “O vinho verde é um clássico”, atira. “Gosto da salmoura, do sal, da frescura. E gosto de alguns tintos, porque tendem a ser mais limpos e não muito pesados. Mas, quando penso em Portugal, penso no vinho verde”. Vamos brindar, então.
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