É justo dizer que Malcolm Gladwell é um dos mais importantes escritores de não-ficção deste milénio. Os seus livros, que venderam milhões de cópias por todo o mundo, têm muitas vezes como objeto a desconstrução de determinadas ideias feitas, recorrendo para isso a estudos académicos na área das ciências sociais (sociologia, psicologia, etc.).
Recentemente, Gladwell lançou um podcast (Revisionist History) em que se propõe “voltar ao passado” e reinterpretar algo (um evento, uma personalidade, uma ideia) que tenha passado despercebido ou tenha sido mal interpretado.
Ora, num dos episódios do referido podcast, Gladwell aborda a “viagem” que uma das músicas mais conhecidas e reproduzidas de sempre fez até atingir esse mesmo patamar.
Leonard Cohen lançou Hallelujah em 1984 através da Passport Records (uma editora independente, uma vez que a sua editora na altura – a “gigante” CBS – se recusara a lançar a música), e não teve qualquer sucesso. Estima-se que Cohen tenha escrito cerca de 80 versos antes de chegar aos finais, que acabaram por integrar a canção. Foram anos a trabalhar para um tema que, aquando do seu lançamento, não teve qualquer sucesso ou reconhecimento. Na verdade, mesmo depois do seu lançamento, Leonard Cohen ainda continuou a trabalhar na canção, alterando os primeiros três versos da música e tocando-a ao vivo com um ritmo mais lento, tornando-a mais negra.
Reza a história que o primeiro artista a reparar na potencialidade de "Hallelujah" foi Bob Dylan que, numa conversa com Cohen, revela a sua admiração pela canção, questionando-o acerca do tempo que demorou a trabalhar na mesma. “2 anos”, responde Cohen, questionando-o sobre o tempo que Dylan terá demorado a compor "I & I": “15 minutos” foi a resposta.
Contudo, foi John Cale (lendário músico galês que integrou os não menos lendários Velvet Underground) o primeiro a pedir a Cohen se poderia fazer uma versão de "Hallelujah". Cohen acedeu, enviando-lhe as 15 páginas de versos que tinha composto para a música, das quais Cale aproveitou dois da versão original e três da versão que Cohen começara, entretanto, a tocar e cantar ao vivo.
A versão de Cale, ao piano, é provavelmente aquela que deu ao tema o impulso final para se tornar memorável. Integrou um álbum de tributo a Cohen – intitulado "I’m Your Fan" – e editado pela revista de música francesa Les Inrockuptibles em 1991. Mas ainda não era “desta”. "I’m Your Fan" não teve sucesso comercial e acabou por cair no esquecimento, até ser encontrado por um jovem californiano de nome Jeff Buckley.
Buckley descobriu o disco em casa de uma amiga em Nova Iorque e, após ouvir a versão de John Cale, decidiu ele próprio fazer uma versão desse tema – um cover do cover, portanto. A música acabou por ser editada no primeiro álbum do cantor (entretanto descoberto por um produtor americano num bar nova-iorquino).
Grace, editado em 1994 e considerado um dos melhores álbuns de sempre por muitas das principais publicações de música internacionais, não teve particular sucesso comercial aquando do seu lançamento. Na verdade, e não obstante as boas críticas, o álbum acabou por ser esquecido até a inesperada morte de Jeff Buckley o transformar num ícone (e, consequentemente, o seu primeiro e único álbum num objeto de culto).
Jeff Buckley, com a sua figura celestial e voz prodigiosa, desapareceu tragicamente em 1997, elevando "Hallelujah" ao patamar que todos hoje (re)conhecemos. O tema acabou por ser objecto de centenas de versões – de Alexandra Burke a Bon Jovi, de Rufus Wainwright a KD Lang, de Justin Timberlake a, claro, Bob Dylan) –, atingindo o sucesso mundial quase 15 anos depois de Leonard Cohen o ter editado.
"Hallelujah" é um dos mais fortes exemplos de como o processo criativo pode ser interativo e evolutivo e de como o acaso pode ser parte integrante (e até muito importante!) no seu desenvolvimento, juntando-se também ao grupo de obras que só se tornaram memoráveis com o passar do tempo.
(Publicado originalmente a 16 de agosto de 2016)
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