Até aos nove ou dez anos de idade vivi em estado de alerta permanente, sempre a fugir aos chamamentos da minha mãe, a contar os minutos que faltavam para acabar a aula, a tentar encontrar a melhor maneira de atrair sobre mim o desinteresse e o esquecimento.
Minha mãe, a pessoa mais sociável que já conheci e a mais cega no que dizia respeito aos méritos das filhas, sofria tormentos quando eu me recusava a ir à sala cumprimentar as visitas, sem que valessem de nada exortações, ameaças ou tentativas de suborno, e em vez disso me punha a dissertar sobre os motivos por que deveria forçar a minha natureza e o gosto que REALMENTE teriam em ver-me.
Enfim um dia, num momento de fraqueza, reuni-me com elas à hora do chá, de volta da mesa de camila, depois de as ter obsequiado com um momento musical, provavelmente «Le Petit Montagnard» ou a «Marcha Turca». Aconteceu o impensável: fui simpática, disse-lhes o que queriam ouvir e agradei em cheio. Pelo meu lado a única pena que me ficou foi a de não ter começado mais cedo a usufruir das vantagens de conhecer o mundo e as suas bizarrias através do exemplo e do reconto oral antes de me expor a confrontos directos. Cada uma daquelas mulheres era um livro, ou melhor, agulha, pois o marido comprometera todos os bens do casal em negociatas sem futuro. Fui uma vez lanchar a casa de Odete e partilhei do seu bule de chá e da manteiga rançosa enquanto vigiávamos os netos que defecavam nos seus penicos. Não voltei a visitá-la e ela logrou finalmente o seu suicídio alguns anos depois.
A história de Violante, talvez menos dramática mas muito mais fértil em lances de pacotilha, foi-me contada como exemplo do que uma educação errada pode fazer. Violante ficara órfã de mãe antes de completar um ano de idade, tal como sucedera a sua mãe na mesma idade e pelas mesmas razões; mãe e filha derrubadas pelos seus cavalos favoritos, lançados numa correria louca sem que fosse possível detectar a origem do susto. O viúvo, revoltado contra o destino, resolveu pôr a criancinha ao abrigo de todos os riscos (outra versão diz que ficava com pele de galinha só de ver a infanta), e até aos dezoito anos teve-a encerrada numa parte da sua casa senhorial a que nem faltava o torreão e o janelo ogival para parecer o clássico castelo. A menina aprendeu os rudimentos da escrita e do cálculo mas enjeitou a agulha e os pincéis e em música nunca foi capaz de ir além da posição correcta de pegar no violino. Dormia muito, por necessidade orgânica e para passar o tempo, e isso, juntamente com a alimentação de jovem ogre, fez com que se tornasse um mulherão de cara de lua cheia sombreada de penugem escura, olhos como bugalhos e cabeleira riçada e áspera onde se partiam os pentes. A estatura e o arcaboiço ultrapassavam os do pai que era mais para mais do que um manual profusamente ilustrado dos destinos que aguardam uma desgraçada na curva do caminho. Ao lado das delas as minhas experiências culminantes não passavam de amostras sem valor. E pensar que me recusava simplesmente a ouvi-la de cada vez que a minha mãe me vinha com discursos sobre a sabedoria dos mais velhos! Sabedoria que na maior parte dos casos não lhes servia para nada e de qualquer forma chegava quase sempre demasiado tarde mas que eu devia poder aproveitar se fosse uma aluna inteligente e atenta. Por exemplo, não será uma extraordinária lição da vida sabermos que uma boa senhora que nunca recusa um convite para petiscar e dar à língua é uma suicida falhada que só não está há muito a fazer tijolo devido a sucessivas lavagens ao estômago? Se a estivessem vendo como eu estou, roliça e empoada, com as banhas apertadas num vestido às flores, chamando-me jóiinha e aprisionando-me sob o braço gordo com efusivas manifestações de afecto, talvez a ideia lhes causasse o mesmo espanto e inquietação que a mim. Então pode-se ser suicidómano e viver nos intervalos como se a vida fosse uma festa, uma feira, um Luna Park? Contaram-me que tinham sido os desgostos derivados de um mau casamento que a faziam voltar ao suicídio como a meta inevitável da sua carreira. O marido, bruto e misantropo, absolutamente intratável, dera-lhe duas filhas cabrinhas que andavam a pastar pela capital e já lhe tinham remetido dois netos, frutos do desleixo e da falta de cash. Ela, doente da coluna, via-se em talas para os sustentar com o produto dos seus trabalhos de para menos. Dizem que o senhor foi a primeira pessoa que usou a expressão: mas deitam-lhe adubo na comida ou quê?, sinceramente apreensivo com o fenómeno e sem nenhuma intenção pícara.
Finalmente quando chegou aos dezoito anos abriram-se-lhe as portas da prisão para que pudesse satisfazer um desejo que não a largava e todos os anos em Setembro era a causa de graves crises: montar e caçar, conforme pendor atávico da família. Era isso que lhe convinha e soube expô-lo ao pai de modo tão convincente que ele consentiu na condição de aceitar a vigilância permanente de um mestre de equitação, o qual teria de impedir a todo o custo que a jovem levasse o descaminho das suas antepassadas directas. Aqui a nossa anfitriã explicou que o cognominado mestre de equitação era um antigo toureiro retirado das lides que em compleição física e agudeza mental não ficava nada a dever à menina. Entre os dois foi breve festa mas eis que surge inesperadamente um noivo na pessoa de um vago primo enriquecido nas roças do cacau. Adorava-a, dizia, desde que a vira num churrasco de feira comer um frango inteiro despedaçado só com os dentes. Em dois tempos estavam casados. Uma semana depois rebentou o escândalo, ainda a garotada do asilo esburgava ossos de cabrito das sobras da mesa dos recém-casados. Tudo vem a saber-se, a verdade, tal como o azeite, vem sempre ao de cima, acentuou Rafaela, que nunca esquecia o propósito de me moralizar. Na sétima noite Violante teve um menino (vivo? morto? pouco importa, o certo é que foi a enterrar), sem que conseguisse esconder o facto do marido, que nessa altura já não a largava porque o pudor da esposa o trazia inquieto e desgostoso ou talvez já suspeitasse da tramóia. E todos sabem que ela, em último recurso, fora ter o filho na lareira da cozinha, convencida de que o marido não se lembraria de a procurar ali. Repudiada e tratada como pestífera, vingou-se indo instalar-se na melhor das suas casas com as suas fiéis criadas, para aí levar às claras uma vida de ociosidade e libertinagem. Fuma desalmadamente, fala alto nas ruas, entra nas repartições públicas como um tornado, bebe aguardente encostada ao balcão dos cafés a olhar por cima do ombro para quem passa. As suas amigas vêm de Lisboa num automóvel com cortinas e só andam de carro, como meninas de colégio. Pode dizer-se que, se era isso o que queria, triunfou plenamente, pois conseguiu atingir um estatuto de imunidade quase total. Mas para chegar a este resultado, advertiu Rafaela, foi preciso quase uma mudança de sexo. Minha mãe acenava com a cabeça e franzia os lábios num trejeito de repugnância. Para ela a homossexualidade feminina era a pior das aberrações e uma puta de Argel valia bem dez lésbicas.
Durante cerca de um ano acompanhei assiduamente uma gorda quarentona, minha prima em segundo grau, que conseguiu cativar-me pela forma bem-humorada como enfrentava uma existência feita de fiascos e decepções. Vivia com o irmão mais velho, um brutamontes que para gozar da herança dos pais indivisa se encarregava de espantar os possíveis pretendentes da irmã com ameaças e cavalidades. Eu costumava passar temporadas em casa deles, sobretudo de Inverno, quando as agruras do tempo a tornavam duplamente prisioneira no seu cárcere dourado. Às oito horas estávamos na cama e como nos esperava um repouso forçado até às oito do dia seguinte aproveitávamos para ler, responder às cartas dos parentes distantes e passar a pente fino os acontecimentos do dia e as idiossincrasias das pessoas das nossas relações. Foi também durante esses fecundos serões que começámos a estudar inglês num livrinho que falava de uma família encantadora, o Sr. Priestley, e Sra. Priestley, e os dois filhos, Peter e Susan. O marido, professor universitário, recebia à noite discípulos com quem ficava a conversar diante da lareira. Ela levantava-se às sete, arrumava a casa com a ajuda da criada Lizzie até às onze e depois arranjava-se e passava a tarde nas compras e a visitar amigas. A filha Susan frequentava um college e usava a melena comprida estilo Juliette Greco mas cortou-a para agradar aos pais e mandou-lhes três fotografias de ângulos diferentes tosquiada como um cordeirinho. Minha prima tinha uma atracção secreta pelo senhor Priestley, que era um homem muito bem parecido, forte sob a sua plácida aparência, sempre vestido de castanho-escuro, azul-escuro ou cinzento-escuro. Também gostava muito do estilo de decoração do seu confortável salão-biblioteca, sobretudo do pormenor do candeeiro com um grande quebra-luz descaído a deixar ver a armação, informalmente pousado à beira do fire. Aliás toda a maneira de estar na vida dos Priestley, a começar na lareira sempre acesa, a cozinha bem equipada, o almoço suculento de domingo, as conversas equilibradas e espirituosas sobre assuntos de jardinagem, as partidas da gata Daisy ou a futura carreira de Peter, até às frequentes idas ao teatro e ao ballet e os passeios a pé nos fins-de-semana, ia ao encontro das suas íntimas aspirações e fazia aumentar o sentimento de raiva impotente perante os prazeres que lhe eram negados. Infelizmente não chegámos a explorar em profundidade o saudável convívio com a família Priestley, ficando apenas a meio do primeiro volume, pois uma visita fortuita da minha prima à biblioteca municipal arrastou-nos para paragens mais turvas e pecaminosas. O título já de si era sugestivo, O Amante de Lady Chaterlley, e o desenho da lady na capa parecia feito por um psicopata sexual. Logo que o começou a ler minha prima tornou-se insensível aos estímulos externos ou, pelo menos, deixou de responder às minhas interpelações. Reparei também que se fez cor de camarão e virava as folhas a uma velocidade pouco habitual. Naturalmente não descansei enquanto não o li, o que fiz de uma assentada, depois de vencer a oposição tenaz da minha prima, que pela primeira vez se agarrava ao argumento da diferença de idades para me dar um tratamento discriminatório. Foi como uma tempestade africana associada a um terramoto de grau dez na escala de Richter. Comparado com aquilo até os artigos das Selecções pareciam histórias da Carochinha. As actividades sexuais a que usávamos entregar-nos, praticadas com recato e moderação no conforto das duas caminhas gémeas, fariam sorrir paternalmente o Lawrence que nos atiraria de passagem a sua bênção. Até ficámos com vergonha dos próprios hábitos vocabulares, à base de expressões infantis e amaricadas que em toda a parte eram conhecidas pelos seus nomes específicos. Note-se que a minha prima se sentia um pouco vexada por fazer a sua aprendizagem sexual ao mesmo tempo que eu mas consolava-se com a ideia de que assim poderíamos trocar pontos de vista, esclarecer dúvidas e até discutir temas eróticos apoiadas em exemplos extraídos de livros dignos de figurar numa biblioteca municipal, portanto de alto padrão de qualidade e moralmente acima de toda a suspeita. Entretanto o Inverno foi passando, as baratas começaram a sair dos seus refúgios entre as ervas, cruzavam-se de noite, pelas janelas entreabertas, as cançonetas das estrelas da rádio. Minha prima, examinando-se longamente ao espelho, viu que tinha apanhado a ruga do leão durante o tempo que passara na cama a ler e a cultivar-se e pela primeira vez na vida decidiu que era tempo de sacudir o jugo do irmão. Os resultados foram catastróficos. Ele confiscou-lhe os livros, convenceu os meus pais de que eu estava em perigo moral, e jurou-lhe que se se deixasse engatar na rua lhe pegava pelas pernas e a atirava pela janela fora. Separámo-nos chorando, com a promessa de que um dia, quando eu atingisse a maioridade, havíamos de passar incógnitas uma semana em Paris.
Maria dos Mártires veio preencher o vácuo deixado pela minha prima, embora a sua forte personalidade me reduzisse a um papel bastante subalterno. Antes disso nunca tinha ousado infiltrar-me na sua intimidade mas rodeava-a e cheirava-a como um rato
o armário do queijo. À primeira vista, quem estivesse habituado a raciocinar em termos de dois e dois são quatro, havia de pensar que estava ali uma arrivista sem escrúpulos, quando afinal era a mais espiritual de todas as amigas da minha mãe e de uma nobreza de sentimentos a toda a prova. Ia no terceiro marido depois de ter enviuvado duas vezes e o seu currículo estava cheio de interessantes surpresas. Aos quinze anos, vítima de estupro, depõe em tribunal ilibando de culpas o seu sedutor. Aos dezassete recebe um legado, compra uma Oliva e fecha-se em casa a pedalar, dizendo adeus definitivamente às mondas e às ceifas. A clausura branqueia-lhe a pele, ela própria se acha formosa e vai a Beja tirar uma fotografia de corpo inteiro, a mão esquerda apoiada na anca e o braço bem arqueado para pôr em destaque o relógio de pulso. Diz: do joio nasceu o trigo. Está dado o primeiro passo na sua promoção social. Aos vinte anos, depois de ter feito um retiro dirigido por um santo velhinho que venera como o papa, resolve entrar para um convento. Sai ao fim de seis meses, desiludida consigo mas confortada com as palavras sábias da madre superiora de quem ficará amiga até à morte. Resigna-se a viver no mundo e é então que começam as suas experiências matrimoniais. Ainda marcada pela austeridade do convento aceita um funcionário público, pobre em proventos mas rico em dignidade, com quem coabita exemplarmente durante dois anos. Ele morre de um derrame cerebral e ela, ainda mal refeita do choque, vê-se obrigada a percorrer a habitual via sacra para conseguir que lhe paguem a reforma e os subsídios antes que os credores lhe levem as mobílias adquiridas a crédito. Felizmente que este período astral negativo é de curta dura. O segundo marido já vinha a caminho sem ninguém saber e tudo se conjuga para que as suas trajectórias se interseccionem na altura certa. É um velho africanista sem descendência nem parentela viva, não propriamente riquíssimo mas sobretudo bondoso e muito afeiçoado a ela que por sua vez lhe paga na mesma moeda. Vivem vinte anos numa alegria sem fim. Quanto ao terceiro marido ela reconhecia que era o menos perfeito dos três mas o que é que se podia esperar de um rapaz de vinte e sete anos? Já não era pouco que dirigisse a herdade sem esbanjar dinheiro à toa e respeitasse o preceito de dormir no lar conjugal. Quanto ao mais, abrutado, tiranete, insolente, mas com aquele brilho da juventude que é meia vida, sendo o sol a outra metade.
A minha amizade com Maria sofreu um leve resfriamento no dia em que me encontrou no monte a almoçar com o marido sopa de peixe e uma travessa de feijão amanteigado que as suas mãos tinham cozinhado amorosamente nessa madrugada. Não disse nada mas sujeitou-me a um longo olhar contemplativo durante o qual a mandei à merda mais de cinquenta vezes. Depois desta exibição de forças entrou em casa e foi dar ordens ao pessoal para que não ficassem dúvidas acerca de quem mandava e do ascendente que exercia sobre o rapazola. Foi a maneira como prometi a mim própria nunca mais aceitar convites para almoçar de um homem casado com a minha melhor amiga. Este pequeno episódio não se revelou todavia inútil pois permitiu-me aquilatar melhor da influência desestabilizadora do amor em qualquer idade nas relações humanas. Maria pareceu-me de súbito muito nova para mim. O terceiro casamento roubara-lhe qualidades, fizera dela uma mulherzinha egoísta e vulgar, com o horizonte limitado ao seu deus doméstico. Teria de esperar que ele se envolvesse de uma forma grosseira e descarada com uma moça da herdade para que me perdoasse a minha presumível traição e se libertasse de uma série de servidões estranhas à sua verdadeira natureza.
Foi nesse intermédio que estreitei relações de amizade com Sara, a «mãe dos mortos», nome que lhe davam por passar a maior parte do tempo no cemitério a cuidar de todas as campas ao abandono como se lhe dissessem respeito pessoalmente. Enquanto a minha mãe varria o jazigo de família, substituía as flores fanadas e limpava as decorações, eu ajudava Sara a fazer o mesmo no jazigo do filho ou visitava-a na sua pequena casa caiada, apenas com uma porta e um postigo, pela qual trocara outra bem melhor onde morara no tempo em que o filho era vivo. Sara tivera aquele filho muito tarde, perdera-o dez anos atrás, e desde então nunca mais abandonara o perímetro do cemitério, até porque em casa não havia nada com que se ocupar, reduzido o mobiliário a uma cama estreita, um tapete encanastrado, uma bilha de água, uma caneca de estanho e um cesto para o gato. Vestia sempre de preto e não cheirava rigorosamente a nada tal como uma pedra, mas o seu corpo, embora ressequido, tinha os contornos de um corpo de mulher. Eu podia ter sido sua neta se o filho não se tivesse apaixonado por Aline numa altura em que já davam por assente o casamento dele com a minha mãe. Aline, a cobiçada proprietária da Quinta da Bela Fria, retribuíra-lhe o interesse com parcimónia e por fim recusara-o. Então ele foi para Lisboa, arranjou trabalho num barco e veio a ser capitão da marinha mercante. Nunca mais voltou a Vila Formosa senão por curtas temporadas mas quase todos os dias mandava à mãe páginas de um diário que tentavam torná-lo mais presente do que se vivessem juntos. Morreu em consequência do naufrágio por abalroamento do navio que capitaneava, tendo sido encontrado numa lancha à deriva com outros fantasmas conservados em salmoura, todos vencidos pela fome e a desidratação.
Seria compreensível que Sara nunca tivesse perdoado completamente a Aline o repúdio que estivera na origem do afastamento definitivo do filho e também que a minha mãe não alimentasse sentimentos ternos pela antiga rival, mas a verdade é que as três mantinham boas relações embora se vissem cada vez mais raramente por motivos que apenas tinham a ver com o desinteresse crescente de Sara e Aline por qualquer tipo de vida social, num caso devido à idade e ao luto, no outro devido a um declínio rápido da saúde que se acompanhava de depressão, tristeza e ensimesmamento. Eu ouvia falar da Bela Fria desde a infância como a melhor propriedade da região e algumas vezes acompanhara a minha mãe a visitar Aline quando ela ainda fazia convites em ocasiões especiais para meia-dúzia de privilegiadas que saíam dali a comentar os faustos da casa, a excelência da cozinheira e como a anfitriã, apesar da doença, continuava insuperável na arte de bem receber. Aline parecia-me então uma menina, com o seu ar frágil e abonecado, mas quando aproximava o rosto do seu para lhe dar um beijo descobria com surpresa que afinal era uma velha e entre esses dois extremos nunca consegui estabelecer nenhum equilíbrio ao contrário do que se passava com as outras amigas da minha mãe, solidamente ancoradas numa idade indefinível que ameaçava prolongar-se até à eternidade. Mais tarde, depois de ter sido admitida no círculo, estranhei que elas, tão prontas a instruir-me sobre desgraças e escândalos, deixassem de lado Aline e as vicissitudes da sua vida, quando o pouco que eu sabia dela era o suficiente para a inscrever no rol das grandes vítimas do destino: muito nova, com dezasseis ou dezassete anos, ficara sozinha no mundo; o pai, a madrasta e um amigo da família tinham morrido num trágico acidente de caça. Ao certo ninguém sabia mais nada e sempre que tentei obter esclarecimentos deparei com uma incompreensão total ou então eram vagos, hipotéticos, confusos e contraditórios.
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