“Chuva é cantoria na aldeia dos mortos”, que se estreia na quinta-feira em Portugal, em abril no Brasil e em maio em França, é o resultado de mais de um ano de vivência e filmagens do realizador português João Salaviza e da realizadora brasileira Renée Nader Messora numa aldeia da Kraholândia, território indígena dos Krahô, no interior do Brasil.
O filme foi feito entre 2016 e 2017 com habitantes de uma das aldeias Krahô, estreou-se em 2018 no festival de Cannes, em França, onde foi premiado, e nos meses seguintes foi ganhando uma densidade política e social por causa da eleição do político de extrema-direita Jair Bolsonaro como presidente do Brasil.
Nestes últimos meses, João Salaviza e Renée Nader Messora têm vivido entre viagens, a mostrar o filme em vários festivais internacionais, em sessões que invariavelmente ficam marcadas pelo atual contexto político do Brasil e pelo pensamento de Bolsonaro contra os povos indígenas.
“Todo o mundo está achando que o homem é burro, fica todo o mundo rindo, mas ele está muito rapidamente conseguindo fazer coisas” que vão prejudicar as populações indígenas, afirmou Renée Nader Messora em entrevista à agência Lusa, juntamente com João Salaviza.
A realizadora refere-se especificamente à decisão do atual presidente de retirar à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) a responsabilidade pela demarcação de terras indígenas no Brasil, transferindo essa competência para o Ministério da Agricultura, “os maiores interessados em explorar essas terras”.
Esta semana, enquanto era criticado por ter divulgado no Twitter um vídeo com imagens de cariz sexual, por causa do Carnaval, Jair Bolsonaro aprovou a exploração de minério em terras indígenas.
“Os povos indígenas vão ser escutados, mas não podem opinar” sobre o que será feito nas terras onde vivem, disse Renée Nader Messora.
“Chuva é cantoria na aldeia dos mortos” não tem pretensões etnográficas sobre a cultura e a história do Brasil, até porque a longa-metragem foi construída entre a ficção e o documentário, com um fio narrativo ficcional – de um rapaz que precisa de terminar o luto da morte do pai – contaminado pela realidade dos Krahô.
“A força do ‘Chuva’ andava muito no facto de tentarmos filmar uma intimidade indígena, mas do que o índio que está enfrentando os males do mundo branco; essa oposição histórica que a gente conhece”, explicou a realizadora, sublinhando: “As pessoas têm uma vida que começou muito antes da chegada dos portugueses nesse continente e vai continuar para sempre”.
Renée Nader Messora já conhecia os Krahô há mais de uma década depois de ter feito, numa das aldeias da Kraholândia, um documentário sobre uma festa de fim de luto pela morte de um dos líderes da comunidade.
Nascida em São Paulo em 1979, Renée Nader Messora estreia-se na realização, depois de ter trabalhado em vários filmes de João Salaviza. Decidiu voltar à aldeia dos Krahô com Salaviza, depois de terem feito a longa “Montanha” (2015), em Portugal.
“Eu queria afastar-me um tempo para limpar a cabeça, estar um bocado longe de tudo e fui uma primeira vez e uma segunda vez [à aldeia], inicialmente não com uma ideia de fazer um filme, mas fui ficando muito encantado, interessado naquele outro modo de vida, naquela outra forma de organização social”, explicou Salaviza.
Nesse período, João Salaviza recorda o relacionamento com Renée Nader Messora, com quem tem uma filha, e de ter sentido uma espécie de chamamento para fazer cinema num outro contexto.
“Uma rodagem é uma espécie de interrupção na vida de toda a gente que faz um filme, 15 horas em ‘plateau’, não vês amigos e filhos, é sempre uma grande tragédia, aquilo parecia-me um bocado absurdo, esse modelo de filmar tão separado da vida. (…) Na aldeia percebemos que o nosso interesse era passar o tempo com os Krahô, viver, perceber como é que funcionavam e o cinema era um ofício”, contou o realizador português.
Nos meses que lá passaram, Salaviza diz que conseguiu “estabelecer ligações verdadeiramente profundas, de amizade e familiaridade”. Chegou a ser chamado, por graça, de “netinho de [Pedro Álvares] Cabral”, mas acabou por ser batizado com um nome índio dos Krahô.
Com a estreia em Portugal, os dois realizadores querem que “Chuva é cantoria na aldeia dos mortos” tenha uma existência para lá do circuito comercial, “que deixe um rasto qualquer para além de uma exibição durante duas semanas em duas ou três salas e que desapareça para sempre”.
“Que o filme tenha essa amplitude de conseguir dialogar com algumas coisas que, lentamente, começam a ser discutidas no espaço público em Portugal. (…) Há um desconhecimento profundo em Portugal do que se passa no Brasil, mostrámos o filme a professores do secundário para poderem ter material e ter bases para discutir o filme nas salas. Estes povos são os que resistiram e sobreviveram à invasão que os nossos trisavós fizeram no Brasil em 1500″, recordou João Salaviza.
A este propósito do debate sobre cultura indígena, e num contexto paralelo ao filme, João Salaviza e Renée Nader Messora têm patente em Guimarães, no Centro Internacional de Artes José de Guimarães, uma exposição que assenta na ideia de morte e sobre a comunidade dos Krahô.
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