No início deste ano, as jovens atrizes Beatriz Teodósio, de 25 anos, e Patrícia Fonseca, com 23, decidiram iniciar o sonho de produzir um espetáculo infantil que, além de promover a participação dos mais novos, estimula a consciência ambiental, com o nome "Ritmo da Semente". Neste momento, e depois de vários meses de sucesso um pouco por todo o país em escolas e espaços familiares, exportam o conceito para Moçambique para atuar no Festival Internacional de Teatro de Inverno (FITI), em Maputo.
Em entrevista ao SAPO24, Beatriz Teodósio, uma das responsáveis da dupla, conta como está a ser esta experiência de levar cultura dedicada aos mais novos a outro país e quais as principais diferenças entre os públicos.
O festival de teatro moçambicano teve início no passado dia 26 de maio e terminou este domingo, dia 4 de junho, em Maputo. Esta é 19.ª edição do festival e contou com a participação de 25 grupos de teatro de diversos países, como Moçambique, Angola, Brasil, França ou Portugal.
Neste espetáculo, o objetivo é levar as crianças a "aceitar o ciclo natural da vida, dar tempo às coisas, lidar com o outro, cuidar do ambiente e a preservar" porque, de acordo com as duas protagonistas, é algo que consideram um "problema mundial".
De Moçambique destacam a atenção das crianças superior à das portuguesas, as pessoas que conheceram e os projetos que já marcaram para outros países, nomeadamente em Angola. Aconselham ainda outros jovens que queiram seguir a mesma carreira a não esperarem por ser contratados e a serem eles próprios a contratar-se.
Como é levar cultura para fora de Portugal, em especial dedicada aos mais novos?
Nestes países, em especial PALOP [Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa] e CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa], é sobretudo focado numa questão de partilha, ou seja, no que as crianças nos têm a oferecer e no que nós temos para lhes oferecer. Quando fazemos um espetáculo aqui pensamos não só como o espetáculo vai interferir na vida das crianças mas também de que forma é que eu adapto o espetáculo para crianças de diversos sítios, neste caso um continente diferente.
Fizemos o nosso primeiro espetáculo no dia 1 de junho, Dia da Criança, num bairro muito antigo e muito conhecido aqui em Maputo, o Mafalala. Tem muita tradição, por terem nascido aqui poetas, jogadores de futebol, etc… Ou seja, é um bairro muito conhecido por muita gente nascer e desenvolver-se aqui, e fizemos o espetáculo na Casa Museu Mafalala, com 150 crianças à nossa frente, e tivemos que nos readaptar para elas. Não é só um espetáculo estanque, é adaptá-lo às crianças e à realidade existente.
Por exemplo, fizemos questão de utilizar cestaria daqui, porque em Moçambique e Maputo existe muito essa tradição, e introduzir no espetáculo em termos cénicos. Mas, por exemplo, no vocabulário falamos português, mas tivemos o cuidado de introduzir algumas palavras mais ligadas ao mundo infantil.
E o público reage de forma diferente comparando com Portugal?
Curiosamente, em Portugal senti que nos sítios onde estivemos, que foram também escolas e espaços de famílias, como por exemplo Monsanto, as crianças ficaram sempre muito concentradas e com a mensagem a passar muito bem. Já aqui em Maputo tinha 150 crianças à minha frente a ouvir do início ao fim. Estiveram sempre a participar, muito ativas, como nunca tinha visto, mas sobretudo com uma concentração extrema.
Eu também dou aulas de teatro a crianças e sei que elas têm uma concentração mínima, devido a uma era mais digital e de os miúdos serem muito mais rápidos. Por esse motivo, temos de lhes dar coisas muito mais aliciantes. Como aqui isso não existe, havia uma vontade muito maior por parte das crianças em entender o que estávamos a fazer e a nível participativo foi instantâneo. Assim que eu proponho um elemento cénico, eles entram todos muito concentrados e prontos a interagir.
A principal mensagem que tentam passar é sempre de ambientalismo, entre outros temas relacionados com a sustentabilidade. Isso mudou em Moçambique?
Não, a mensagem é a mesma. Aceitar o ciclo natural da vida, dar tempo às coisas, lidar com o outro, cuidar do ambiente e preservar. Isso é igual a Portugal porque acho que é um problema mundial.
Aqui, o que acontece é que a realidade no que toca ao tratamento do lixo é um pouco diferente, e talvez por não haver uma preocupação maior no município. O que se pretende é que as crianças aprendam que é importante reciclar por elas próprias. Infelizmente, não o podemos fazer por todos, não dá, teria de ser uma organização maior a fazê-lo. Mas dá para fazê-las perceber que ao fazer determinada ação podem estar a prejudicar outras coisas e por isso é importante cuidar do planeta, é preciso cuidar dos seres e é preciso cuidar do outro.
No final de cada espetáculo plantamos com eles uma semente, num vaso com terra e água, e com isto o que queremos passar é a importância de cuidar de um ser vivo e que precisamos de estar atentos. Com isto damos atenção ao resto, ao planeta.
Vão fazer quantos espetáculos? Quantos é que já fizeram? Quais são os planos para esta viagem?
Fizemos um espetáculo dia 1, para o Dia da Criança, e vamos ainda fazer dentro do Festival Internacional de Teatro de Inverno mais um espetáculo num outro espaço, que é a Casa Velha, um teatro romano bastante antigo. E depois temos uma parceria com a Fundação Fernando Leite Couto, em que vamos fazer mais uma apresentação, e com um centro educativo, uma escola de cá. Portanto, ao todo, já fizemos um e ainda vamos fazer mais três espetáculos. São três parcerias diferentes.
O que é que significa para vocês estarem no estrangeiro, sendo duas jovens artistas? Foi difícil chegarem a esta decisão de ir para o estrangeiro?
Ainda agora estava a falar com mais dois colegas portugueses e outro moçambicano sobre essa questão de fazermos espetáculos no estrangeiro e estávamos a dizer exatamente isso. É um investimento, porque não temos grandes estruturas que nos apoiem nesse sentido, sendo que nós fomos apoiadas pela DGArtes para fazer esta internacionalização em Moçambique. É um investimento porque, primeiro, interessa-nos bastante esta coisa de fazer o que nos propomos, neste caso teatro, e poder partilhá-lo com outros lugares, com outros países e continentes, também para fazer esse intercâmbio de receber esse lado cultural do outro lado, e nós também podermos partilhar o nosso. Mas sobretudo é um investimento porque, por exemplo, por termos vindo aqui a Moçambique, em princípio no final do ano vamos com este mesmo espetáculo para Angola, para Luanda. Então é muito importante para nós, porque se calhar não nos interessa ficar só no foco nacional, uma coisa às vezes também mais gasta e mais estabelecida, mas também poder fazer este intercâmbio. Isto interessa-nos bastante.
Conseguiram isso devido ao networking que fizeram aí em Moçambique, às pessoas que conheceram?
Sim, porque isto é um festival nacional, então vêm pessoas do Brasil, vieram de Angola, de Cabo Verde, outras de Portugal, da África do Sul… Então também estamos todos juntos e partilhamos muito, vemos os espetáculos uns dos outros. Vamos conversando e as coisas acabam por acontecer naturalmente.
Os planos para o futuro passam por Angola. E em Portugal ou outros países?
Agora o nosso objetivo mais confirmado é Angola, mas claro que gostávamos de ir para outros países dentro desta ideia dos falantes de língua portuguesa. E depois, em Portugal, temos o objetivo de continuar a levar isto para escolas de várias partes do país e até mesmo lugares não tão convencionais, em que se calhar o teatro não chegue tão facilmente. Porque este é um espetáculo que cabe numa mala de porão.
Disseram que tiveram apoios da DGArtes, não foi?
Para esta internacionalização, sim.
E antes tiveram algum tipo de apoio? Foi difícil montar todo o vosso espetáculo?
Montámos este espetáculo sem nenhum apoio, foi mesmo por nós. Fomos nós que fizemos essa produção e esse investimento. Agora está a ter o seu retorno, mas inicialmente fomos nós que queríamos muito fazer, queríamos criá-lo e investimos nesse sentido. Mas não, não tivemos nenhum apoio. Depois, ao candidatarmo-nos, acabámos por ter agora um apoio da Associação Cultural Prado, para nacionalizar o projeto, fazer várias partes pelo país, e tudo o mais… estamos a projetar isso, mas ainda não recebemos esse valor.
É difícil ser jovem em Portugal, e as artes talvez tenham uma dificuldade acrescida. Que conselhos é que podem dar a outros jovens que queiram seguir o mesmo caminho?
Às vezes parece que as portas se fecham. Mas uma das coisas que eu penso, e que se calhar foi o maior conselho que me deram, é não esperar para ser contratada e ser eu a autocontratar-me. É o maior conselho que eu posso dar.
Interessante. Às vezes também é preciso termos a possibilidade de o fazer.
Sem dúvida, mas lá está, é preciso abraçar a resiliência e fazer o investimento.
O que levam de Moçambique?
A nossa vinda cá é mesmo pela partilha de tudo. Ou seja, poder conhecer o trabalho de outras pessoas e artistas que nós se calhar não conhecemos em Portugal por variadas razões. Fazem-se muito boas coisas em todo o lado. Então, quanto mais nos conseguirmos unir nesse sentido, melhor. É isso. É sobre a partilha, e neste caso sobre quem nos uniu.
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