Estreou-se na televisão no "Programa Juvenil" a 16 de janeiro de 1960 (tinha 15 anos) e na rádio a 1 de junho de 1968. Desde então tem sido autor, produtor, realizador, apresentador e locutor de inúmeros programas. Entre eles "Grafonola Ideal", "O Fungagá da Bicharada", "Arte & Manhas", "Febre de Sábado de Manhã", "O Passeio dos Alegres" ou o" Clube dos Amigos Disney". Hoje, na RTP Memória, que diz ser o "seu porto de abrigo", tem dois programas semanais, o "Inesquecível" e o "Traz prá frente". Na Rádio Renascença, juntamente com Paulino Coelho, dá voz ao "Hotel Califórnia". É uma vida 'no ar' que dificilmente se resume em dois ou três parágrafos. Aliás, "Tio Julião" facilmente dispensava apresentações. Apresentar O apresentador é uma tarefa complicada.
Em 2016 editou a sua autobiografia, “O Programa Segue Dentro de Momentos”, onde dizia que se retiraria aos "sessenta anos de carreira porque gosta de números redondos”. A celebrar as seis décadas de "muito trabalho", em setenta e cinco de vida cumpridos, garante-nos, por telefone, numa hora de conversa que lhe roubámos de um sábado à tarde, que a comemoração que hoje chega ao palco do Casino do Estoril, com "Júlio Isidro — 60 Anos 'ainda' ao vivo e a cores”, não é um "gesto de despedida".
Esta comemoração não corresponde ao meu gesto de despedida
Este ano teve problemas ao entrar no edifício da RTP no dia 1 de janeiro?
Não, este ano já não [risos], o contrato foi renovado antes. Informaram a informática e portanto o meu cartão estava válido. O meu cartão de colaborador.
Colaborador... Era por essa razão que lhe fazia esta pergunta. É que, depois de tantos anos e tantos programas, nunca esteve a contrato. Foi uma opção sua ou da própria estação?
Foram fases de esquecimento da RTP. Primeiro era mesmo colaborador porque não se justificava outra coisa, era um miúdo que ia lá fazer umas coisas. Não ia ser funcionário nos primeiros anos, como é normal. Depois, quando isso podia ter acontecido, já mais tarde, não se lembraram. Fui ganhando a minha vida, simultaneamente na rádio, onde também era provisório, e não fui lá bater à porta. Em determinada altura, já nos anos 80, fui um terço diretor de programas. Porque a direção de programas passou a ter um triunvirato; eu fiquei com a parte do entretenimento, o [Alberto] Seixas Santos com a parte de ficção e o António Reis com a de cultura. Quando saí desse cargo poderia eventualmente ter ficado como funcionário. Mas como não tinha ficado feliz no cargo, fui-me embora e não pedi. A partir daí fui apresentando sempre projetos de programas, que às vezes eram aceites outra vez não. Quando eram aceites ficava satisfeito, mas ficava muito mais satisfeito quando o programa tinha sucesso. O tempo foi passando e eu fui vivendo nesta instabilidade que me era estimulante, devo dizer. Tinha de fazer bem feito porque senão não tinha trabalho. Nestes últimos anos, esta é a segunda vez que renovo por dois anos, o que é extraordinário. Antes, já tinha renovado duas vezes por um ano. Já são seis anos de maior tranquilidade, e com esta idade já chega e sobra.
“Planeia retirar-se aos sessenta anos de carreira porque gosta de números redondos”, escreveu na autobiografia "O Programa segue dentro de momentos" lançada em 2016. Cumprem-se este ano os sessenta. E agora?
Eu gosto mesmo de números redondos e o 6 e o 0 são mesmo bastante redondos. Se fosse o 8 e o 0 ainda era mais redondo, mas acho que não deve acontecer. Sei que isso está lá escrito e fui analisado ao longo destes anos duas coisas: o meu comportamento ao nível físico e, sobretudo, a minha performance ao nível intelectual. Uma coisa é chegar aos 60 anos [de carreira] nesta razoável forma física e, direi, bastante boa forma intelectual, mas outra coisa era estar a arrastar-me. Nesse caso esquecia-me do número redondo e parava aos 58 ou aos 59. Mas não, felizmente. Consigo chegar aos 60 e ainda por cima em atividade. Esta comemoração não corresponde ao meu gesto de despedida.
Por falar na autobiografia, vem aí um segundo capítulo. Que período aborda? Centra-se em alguma década ou fase específica da carreira?
Não, porque [o primeiro volume] tem, apesar de tudo, alguma cronologia, mas com saltos. E, depois, são destaques de momentos da minha atividade profissional. O que estou a fazer agora é dar ainda mais relevo ao menino e ao jovem Júlio Isidro fora da televisão. Não só a minha vida, mas o tempo em que a vivi. Apercebi-me de que as pessoas ficaram encantadas com o trazer à superfície uma outra sociedade, de outra forma de viver. Queixamo-nos sempre muito — eu não! —, mas o problema é que as pessoas não sabem como viviam os portugueses. Ou não sabem ou fazem por esquecer. Não é para dar a entender que vivíamos numa miséria, é para mostrar o avanço tecnológico da sociedade, as comodidades que foram surgindo, o que era ir a um hospital e o que é hoje. É muito mais o Júlio do seu tempo.
Dou também relevo a personagens do meio artístico com as quais me cruzei e por quem tenho um carinho especial. Portanto, quero fazer pequenos capítulos, alguns até podem ser de duas páginas, dedicados a algumas pessoas. É inevitável, vou ter de escrever sobre a Simone, por quem tenho uma paixão assolapada. Como escreverei sobre um ator estrangeiro que me tocou profundamente. Vou ter de escrever sobre muitas das entrevistas que referi [no primeiro volume], mas que não reproduzi. Como a última entrevista que fiz à Elis Regina, que foi também a última que ela deu. Mas [esse livro] será seguramente o último que escreverei, não vou voltar a escrever a minha biografia. Como a escrevo todos os dias, estou sempre em atraso.
Se não tiverem ontem, não têm hoje nem amanhã. Eu não vivo no passado. Vou lá de visita, só
Agora que aborda essas entrevistas, confesso que, depois de ler o primeiro volume da autobiografia, senti curiosidade e gostava de ter acesso a algumas delas.
Algumas tenho escritas. Em determinada altura fazia as entrevistas, que oferecia à televisão, e publicava-as. Vim a descobrir agora uma data de revistas e jornais onde elas saíram. Não as vou reproduzir por inteiro, porque são grandes, mas vou fazer pequenos resumos de algumas.
Disse na resposta anterior uma frase bastante interessante, referindo-se aos portugueses. "Não sabem ou fazem por esquecer". O culto da memória não é uma coisa de agora, é algo que tem procurado fazer ao longo destes anos nos diversos programas que teve. Porque é que é um tema que lhe é tão querido?
É muito querido porque é indispensável para viver. Aliás, as pessoas que dizem 'o que passou, passou' ou 'o passado não interessa'. A rapaziada que diz que o que interessa é o presente e o futuro está enganada. Como costumo dizer, se não tiverem ontem, não têm hoje nem amanhã. Eu não vivo no passado. Vou lá de visita, só.
Aqui há tempos ouvi alguém dizer que não apreciava o meu estilo, o que acho mais interessante é ter um estilo. Mesmo que não seja apreciado
É tão fácil hoje, ou será no futuro, chegar-se até uma carreira tão longa?
Devo-lhe dizer que com a instabilidade em que as sociedades vivem, e que se reflete também aos comportamentos das pessoas, é pouco provável que nos próximos anos haja alguém a ter a paciência de andar sessenta anos a trabalhar tanto.
Disse recentemente que “ainda não há substitutos” para o Herman José. E para si, há?
No meu género, direi que não [risos]. Mas se calhar o meu género vai acabar comigo. Porque o meu género é um género geracional. Muito embora dentro da minha geração eu já fosse diferente. Diferente porque sou assim; outros têm outras diferenças. Agora, em termos geracionais, por razões óbvias, eu sou o último dinossauro. Como sou o último, é bem provável que este género acabe. Aqui há tempos ouvi alguém dizer que não apreciava o meu estilo, o que acho mais interessante é ter um estilo. Mesmo que não seja apreciado.
Quem são os Júlios Isidros de hoje?
O que posso dizer é que há gente muito competente, agora ter a pretensão de dizer que são as emanações do Júlio Isidro, ficava-me mesmo muito mal. Não, não. Posso dizer que acho que há muita gente muito competente e tudo mais. Agora, dizer que aquele há de ser o Júlio Isidro do futuro? Não. Não sou nenhum marco histórico.
Mas deixa a sua marca?
Ai, isso não tenho dúvidas. Basta ler o que têm estado a escrever aí nas redes sociais sobre o programa de ontem ["Seis Décadas", que passou sexta-feira, 10 de janeiro, na RTP1]. Aquilo é o que chamo de a minha vida vídeo liofilizada. Os desgraçados, entre aspas, dos meus companheiros de trabalho, lá da RTP Memória e da Inovação, meteram em 52 minutos 60 anos de vida. É evidente que foi muita coisa dita, foi muita coisa mostrada e na prática ficou tudo por dizer, como é normal. Mas deu uma luz. O que está ali é, digamos, no meu ponto de vista, diferente e marcante. Agora, sou um marco? O verdadeiro marco histórico é qualquer pedra algures no castelo ou num minarete que uma qualquer civilização deixou. As pirâmides é que são marcos.
Não contem comigo para criar fórmulas de estimular a curiosidade, às vezes mórbida, do espetador
Diz-se que é o senhor televisão. Quem é a senhora?
Dizem... Quando me chamam isso eu digo sempre o mesmo: eu sou o senhor que trabalha na televisão. Estas definições têm sempre um perigo desgraçado, o perigo da desilusão. No final não era um senhor ou afinal não é da televisão.
Não sei quem é a senhora televisão. Até os pódios, mesmo no desporto, são muito provisórios. O primeiro lugar no pódio deste ano pode, nos anos seguintes, estar no terceiro ou nem sequer passar das eliminatórias. Vivemos num tempo onde o mais difícil é a preservação da nossa qualidade, do nosso estilo, da nossa personalidade profissional. Subir custa, mas descer é de uma facilidade enorme, e às vezes com danos irreparáveis. Posso-lhe dizer que há aí muitas senhoras, algumas delas meninas senhoras, que são muito competentes. Mas coloco-as todas em pé de igualdade. O resto são os efeitos colaterais da competência, que passam por uma coisa que se chama marketing. São pequenos cliques que fazem com que umas pessoas sejam consideradas as coca-colas do deserto — mas o deserto absorve a água com uma força tremenda. Falo no entretenimento, mas o mesmo aplica-se à informação, à política e até na cultura.
Qual é a sua relação com as audiências?
É uma relação de confiante desconfiança. E é uma relação utilitária. Acho que é importante trabalharmos e sabermos que as pessoas nos veem ou nos ouvem. E, por outro lado, termos em conta que não podemos, ou não devemos, e eu não o faço, trabalhar para a conquista das audiências. Para mim as audiências são uma consequência, não são uma causa. Olhe que não me tenho dado nada mal com isso porque o "Inesquecível" é quase sempre o programa mais visto ao sábado e domingo na RTP Memória e o "Hotel Califórnia", que faço na Renascença com o Paulinho Coelho, é topo de audiências também. Mas a mim o que me interessa é que saia dos programas com a noção de que fiz aquilo que devia ser feito, bem feito. Se tiver a casa cheia, melhor ainda. Fazer programas para as moscas, também não. Teria de meditar sobre isso. Agora, não contem comigo para criar fórmulas de estimular a curiosidade, às vezes mórbida, do espetador.
Assim como se diz que a cantiga é uma arma, a televisão também o é. E não tenho direito de a utilizar em nome próprio
Disse nunca ter ambicionado o poder, razão pela qual renunciou ao cargo de diretor de entretenimento. Então, qual é o poder de um comunicador?
O meu sei perfeitamente qual é. É o poder de ter muita atenção com o poder da televisão, é respeitar muito o meio onde estou. Eu não sou dono da televisão. Nem da rádio. Sou uma pessoa que está lá a trabalhar e portanto tenho a noção de que aquilo não me pertence. Assim como se diz que a cantiga é uma arma, a televisão também o é. E não tenho direito de a utilizar em nome próprio. Aquilo que faço é aquilo que considero que é útil para as pessoas. Quando falo de serviço público de televisão, devo dizer que o faço na RTP como considero, passando em zapping pelos canais comerciais, que acontece pontualmente em alguns nas suas grelhas de programas. Para mim, o serviço público é uma coisa muito clara: é a ética e a estética. Quando se faz televisão com ética e com estética, faz-se serviço público.
O Fernando Alvim, outro comunicador, costuma inquirir alguns dos seus convidados com a questão: “quem é que foi o teu Júlio Isidro?". E não é o único a fazê-lo. Como recebe uma pergunta destas?
Lá está, é o homem e a sua circunstância. Não sendo dono da televisão, nem da rádio, nem de coisa nenhuma, considerei que se tinha aquele instrumento na mão e se sentia um pulsar pelo país inteiro de gente nova que queria mostrar as suas capacidades e as suas potencialidades, não tinha de fazer outra coisa se não abrir-lhes a porta. Em alguns casos, muitos casos, fui mais longe. Em vez de serem eles a fazer a oferta, fui eu a fazer a procura. Não perdi, gastei muitas noites a ir a bares, a pequenos concertos... ver que existia o grupo y, o entertainer z, por aí fora. Realmente fui lançador, e em alguns casos descobridor, de alguns talentos. Porque também não havia estes concursos de talentos. Curiosamente, estes concursos que são de talento, e aparece muita gente com talento, mas nós não sabemos o que é feito deles depois daquilo acabar. Felizmente, aqueles que levei pela mão aos meus programas, uma parte substancial, anda por aí. O que é bom, fico satisfeito.
Tenho falta de tempo de antena para o programa que gostava de fazer
Quem se arrepende de não ter “descoberto”?
Os Orquestrada. Levei-os a um programa meu, mas eles já existiam. E disse isto para o ar: 'gostava tanto de ter sido eu a lança-los'. Estou a dar só um exemplo, mas há mais. Há muitos mais. Os Delfins não fui eu, surgiram depois de ter acabado o "Passeio dos Alegres". E eu gostava muito de os ter lançado naquela altura. Há alguns grupos, particularmente grupos, que gostaria de ter ido buscar e divulgar em primeira mão. Mas continuo a fazê-lo no "Inesquecível".
Era isso que lhe ia perguntar, se continua a lançar novos talentos.
O "Inesquecível" tem aquilo a que chamo de memória futura e já lá se estrearam alguns.
Continuam a enviar-lhe propostas de novos projetos com o intuito de ser o Júlio a divulgá-los?
Estou rodeado de CD's por todos os lados. Tendo em conta como está o mercado, continuo a receber muita coisa. Não tenho razão de queixa, eles é que têm razão de queixa porque eu não tenho tempo nem espaço para os divulgar. As Moçoilas estrearam-se recentemente no meu programa. Também levei ao programa um grupo sensacional chamado Remexido. Tenho é falta de tempo de antena para o programa que gostava de fazer. Estou aqui a pegar em alguns CD's com gente cheia de qualidade que gostaria de divulgar o mais depressa possível.
Disse que não tem espaço. Esta a referir-se ao "Inesquecível" ou a um programa que eventualmente gostasse de ter?
É exatamente o que acabou de dizer, a um programa que eventualmente gostasse de ter. Neste momento estava aqui a escrever um programa onde vai o Paulo Betti, a Mila Ferreira e onde vamos fazer uma invocação da Édith Piaf. Depois já não cabe mais ninguém, não tenho espaço físico para isso. O Sérgio Castro, dos Trabalhadores do Comércio, também gravou um disco a solo e mandou-me. O mais depressa possível irá lá fazer uma viagem no tempo.
Estou na RTP para ficar e para depois sair pelo meu pé. É essa a minha intenção, não gosto muito de trocar de camisola. Por razões monetárias então muito menos
Permita-me a insistência, e porque é que não esse tem espaço?
Nem sempre os projetos que apresento são bem aceites, ou são aceites. No caso da RTP Memória, que é o meu porto de abrigo, tenho dois programas ["Inesquecível" e o "Traz prá frente"] e já tenho um outro projeto aprovado. Além de tudo mais, também tenho tempo de vida. Não posso trabalhar mais. A minha mulher ontem fazia-me uma ameaça no ar, dizia 'ele tem de abrandar', porque quer ter marido por mais uns tempos.
Alguma vez apresentou uma proposta de programa a outro canal?
Não, não apresentei.
E ao contrário?
Também não. Aqui há dias houve uma pessoa, de outro canal, que disse: 'Então renovou o contrato com a RTP por mais dois anos? Olha que pena!". Mas era uma brincadeira. Estou na RTP para ficar e para depois sair pelo meu pé. É essa a minha intenção, não gosto muito de trocar de camisola. Por razões monetárias então muito menos. Quando parar de trabalhar fica uma resma de dossiers com coisas que um dia sonhei fazer.
Como é que encara a palavra reforma?
Com alguma apreensão. Como sou de empreender não me estou a ver a acordar de manhã e não ter uma qualquer pressão para fazer alguma coisa. Não compreendo a vida sem a relação trabalho-provento. É evidente que já trabalhei o suficiente e os proventos que eventualmente venha a receber são mais do que justos — e aqueles que recebi foram mais do que justos. De qualquer forma, a palavra reforma é um bocado estranha. Porque jubilado é uma coisa, reformado é outra.
E como é que olha para a televisão hoje e em Portugal?
Gostava que a televisão fosse produzida de produtos essencialmente portugueses. Ponto final. Há gente com muitas ideias, muitos criativos, muito talento, e não falo de mim. Porque é que havemos de importar?
Não tenho tempo para estar, de uma forma gratuita, a olhar para a televisão. Tenho um sentido utilitário de ver televisão
Mas vê televisão?
Vejo pouca. Normalmente vejo naquela base do aparece uma coisa nova, vou ver para ter um juízo. Mas, neste momento, não há nenhum programa que me prenda definitivamente à televisão. Vejo por influência familiar, mas com prazer. Como o programa de talentos, o "The Voice", e que gostava que se chamasse "A Voz". Depois vejo informação. Os grandes programas de fim de semana normalmente não tenho tempo para ver porque estou a trabalhar. E depois porque são formatos que são emanações de coisas que sempre se fizeram. Muda-se de sítio, muda-se de câmara municipal, mais uns cantores, mais umas entrevistas com personalidades locais. Não tenho tempo para estar, de uma forma gratuita, a olhar para a televisão. Tenho um sentido utilitário de ver televisão. Vou é muitas vezes à Netflix.
Tinha essa pergunta aqui, é subscritor de mais plataformas de streaming?
Só Netflix, é ficção de grande qualidade.
Qual foi a última série que viu?
Tenho visto muita coisa; vi o "The Crown", vi "A Casa de Papel". Sei lá, montes delas. As minhas filhas veem mais ainda, e normalmente até acertamos o gosto. Também gosto muito de documentários. E vi o "The Irishman", três horas e vinte minutos, fiquei ali acordadinho, nem adormeci no sofá nem nada. Eu já entrevistei o Scorsese e tenho por ele uma grande consideração como cineasta.
Só no cinema são muitos, e grandes, os nomes com os quais conseguiu chegar à conversa. Hoje é mais difícil entrevistar personalidades como o Scorsese ou a Meryl Streep, outra sua entrevistada?
Não faço ideia. Aproxima-se, se calhar, a oportunidade de entrevistar mais uma personalidade ou outra, mas não posso adiantar mais. Não sei se são mais difíceis hoje porque realmente antes não eram fáceis. Mas tive a sorte de poder entrevistar muitas dessas vedetas.
[Hoje a televisão] é um ato até de divisão familiar
Voltando atrás, a televisão ainda é um ato de união familiar?
Não, já não é. Há um ou outro programa que pode juntar as famílias, mas penso que na generalidade já não é. É um ato até de divisão familiar.
Em que sentido?
Divide a sociedade quando o pai está a ver uma coisa, a mãe outra e os filhos outra. Ainda por cima cada um tem o seu recetor, seja o iPad, seja o telemóvel. Para além disso, os gostos hoje são muito segmentados e os próprios canais generalistas já não aliciam a rapaziada mais nova. E acho que fazem muito mal.
É mau vermos só aquilo que temos a certeza de que gostamos ou aquilo que pensamos que é o nosso gosto. É como a música. 'Eu só gosto de Metallica e só oiço Metallica'. É um direito perfeitamente legítimo, mas revela falta de visão universal. Não há nada como provar. E até para recusar é preciso provar. Toda a comunicação social está segmentada hoje em dia. Falando de televisão, ela hoje está muito segmentada com exceção, em Portugal, ainda da sobrevivência — ainda, repare bem como digo — dos canais generalistas. Mas a televisão generalista está condenada, a curto prazo, em função dos gostos.
Como seria se tivesse começado hoje?
As coisas eram mesmo muito diferentes. Há uma diferença entre começar a fazer televisão em ditadura e começar a fazer televisão numa democracia como a que nós vivemos. Uma democracia burguesa, mas uma democracia. Isso é uma diferença tão grande que nem consigo imaginar. Só consigo imaginar que fiz a transição. Quem começa agora passa-lhe lá pela cabeça que o que dizia ou fazia tinha de ser controlado por terceiros. Isso é inimaginável, hoje em dia. Hoje a mais pequena coisa dá logo borbulha: mexeram-me nisto, censuraram-me aquilo...
Reformulando, há mais liberdade agora do havia há quarenta anos?
Do ponto de vista ideológico e social há mais liberdade. Sob o ponto de vista económico acho que hoje há muita comunicação social que está dependente de valores económicos e financeiros. De alguma maneira, em muitos casos, parece-me que isso pode condicionar — e acho que condiciona — algumas liberdades. Hoje é muito complicado [encontrar] o jornalismo, ou o jornalista, em estado quimicamente puro.
Já várias vezes estive mal enterrado e dessas vezes consegui sacudir a terra e vir cá para fora outra vez
O espetador hoje retira alguma liberdade de ação ao comunicador e aos programas? Pensemos no comportamento nas redes sociais. Se um apresentador disser algo ou tiver uma abordagem que, de alguma forma, seja suscetível de ferir sensibilidades de quem assiste, é automaticamente levado ao 'tribunal das redes sociais'.
Hoje é muito fácil, alguém escondido atrás de um teclado, fazer de juiz e executor. [Saber lidar com isso] faz parte das nossas convicções. A grande vantagem, apesar de tudo, dentro deste caos, é que há uma grande diversidade. Faço uma coisa e há muitos que me açoitam por isso; outros dizem que é bestial. Posso estar a perder por dez a um, mas há sempre um que me apoia. Mas apesar disso, volto a dizer, é uma questão de convicções. Disse está dito. É evidente que eu também estou sempre atento nesse sentido, não é para para modificar qualquer coisa porque alguém disse uma palavrinha sobre isso. Mas se começar a perceber que há uma tendência, talvez seja melhor colocar a mão na consciência e ver se o que estou a fazer está bem feito. Há realmente muita pressão sobre o jornalismo e sobre as figuras públicas porque há um eco imediato. Imediato e muitas vezes transversal, transgressivo e incorreto sob o ponto de vista factual. E isso é mau.
Foi condecorado pelo Presidente da República Jorge Sampaio com a Comenda da Ordem do Infante. Mas sente alguma mágoa pela falta de reconhecimento da sua cidade, de Lisboa?
Sim, tenho pena. Nasci na Avenida João Crisóstomo, onde vivi muito tempo — agora vivo em Cascais. Por aquilo que tenho feito acho que não era mau se me tivessem dado um diploma de cidadão da cidade. Não vivo obcecado com isso, mas acho que se um dia acontecer é justo. Tanto mais que já fiz apresentações de espetáculos durante os quais algum artista recebeu a medalha da cidade. É evidente que tenho uma grande paixão por Lisboa. Tenho uma paixão tão grande que até gostava que houvesse mais lisboetas a viver na cidade. Se Lisboa continuar a ser lisboeta é extraordinário. Vamos ver, depende do número de hotéis e de Airbnb's que para aí fizerem.
Terminando com mais uma frase que retive da sua biografia, o que queria dizer com “a minha vida tem sido feita de muitos quase fins e de persistentes princípios”?
Já várias vezes estive mal enterrado e dessas vezes consegui sacudir a terra e vir cá para fora outra vez. Às vezes também faço uma analogia com o surf. Já várias vezes estive enrolado na onda cá em baixo e outras vezes na crista. Com uma vantagem, quando estava na crista nunca me armei em galo. Sempre tive a perceção, e isto vai radicar no princípio da nossa conversa, de que tudo isto é muito etéreo e muito provisório. Quando estava na berra, e parecia ter o mundo aos meus pés, continuei a ser a pessoa que sou. Até porque é absolutamente ridículo alguém imaginar-se diferente dos outros. Perante a morte somos mesmo todos iguais.
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