Katherine Vaz é considerada uma das mais proeminentes divulgadoras da cultura lusa em todo o mundo. Filha de pai açoriano e mãe irlandesa, é uma autora premiada, detentora de bolsas da Universidade de Harvard, do Radcliffe Institute for Advanced Study, do National Endowment for the Arts e da Harman Fellowship.
Lê e estuda português durante pelo menos uma hora por dia, mas é em inglês que constrói os seus romances. Lá dentro vem Portugal. Em "Mariana", livro escolhido pela Biblioteca do Congresso dos EUA como um dos 30 melhores Livros Internacionais, tendo sido traduzido para seis idiomas, conta uma das mais famosas histórias de amor de todos os tempos, a de Mariana Alcoforado e do Capitão Bouton, que resulta nas conhecidas cartas da freira portuguesa. E agora chegou às livrarias portuguesas uma nova obra, "A Linha do Sal", numa edição da ASA.
Esta é uma história passada na década de 1840, na ilha da Madeira. "O mestre botânico Augusto Freitas conta à sua filha adotiva, a pequena Maria, que os pais dela vivem no fundo do mar, onde brincam com os animais marinhos. É um artifício bondoso, que envolve a menina na 'alegre melancolia que é a fonte de calor da alma portuguesa'. Esse sentimento acompanhá-la-á ao longo da vida e da relação atribulada com o seu grande amor, John Alves", pode ler-se na sinopse do livro.
"Filho de uma conhecida vítima de perseguição religiosa, John pouco mais conhece do que miséria e isolamento. Tudo muda quando se cruza com Maria. Rapidamente se forma entre as duas crianças um vínculo forte e, acreditam, eterno. Mas os violentos confrontos entre católicos e protestantes obrigam as suas famílias ao exílio, separando-os. Anos mais tarde, reencontram-se como imigrantes nos Estados Unidos, e a surpresa dará lugar a uma paixão desmedida. Porém, este não será ainda o final da história entre os dois", é referido.
Katherine Vaz conta ao SAPO24 como surgiu a ideia para a história do livro e o percurso até ao resultado final, que demorou mais de uma década. Pelo meio, muitas páginas foram deitadas fora. "Faz parte do processo de acertar uma história, de a aperfeiçoar quando necessário, de a expandir de uma nova forma se for preciso", garante.
Apesar disso, a história viu a luz do dia e tem sido bem recebida no mercado americano. Com a febre das redes sociais e dos clubes de leitura, para a autora o sucesso ainda se faz também do tradicional: "a minha convicção é que o boca-a-boca continua a ser o melhor método para um livro receber um maior número de leitores".
"As minhas raízes luso-açorianas são diretamente responsáveis pelo caminho para esta invulgar história de imigração"
O livro "A Linha do Sal" é inspirado num episódio real de um grupo de madeirenses nos EUA. Ter raízes portuguesas leva-a a querer contar estas histórias?
As minhas raízes luso-açorianas são diretamente responsáveis pelo caminho para esta invulgar história de imigração. Eu estava a dar uma palestra na Biblioteca do Congresso em Washington, D.C., a convite da Drª. Iêda Siqueira Wiarda da Divisão Hispânica — eles tinham registado o meu trabalho para os Arquivos como o primeiro luso-americano homenageado com isto — e havia uma exposição na Sala dos Mapas chamada "Os Protestantes Portugueses de Illinois".
Nunca tinha ouvido esta história! Temos tendência para pensar que a costa oeste e a costa leste são os principais pontos de fixação dos portugueses na América. Comecei a investigar um pouco. Como sou romancista, precisava de ter uma noção das personagens específicas que poderiam habitar um livro, e não apenas dos factos históricos. O pano de fundo era a época rica e turbulenta da Guerra Civil.
Deparei-me com a história de um soldado chamado John Alves, um dos primeiros convertidos e criado na prisão com a mãe, que tinha sido condenada por heresia. Alves deu uma entrevista a um jornal de Salt Lake City, já idoso, quando visitou novamente a casa de Lincoln, e recordou a magnânima receção do "Grande Homem" quando ele era jovem e cortejava uma mulher chamada "Mary". Quando chegou a hora de partir, a sua mão tremia tanto que não conseguiu assinar o seu nome no livro de visitas; alguém o fez por ele. Que grau de emoção, que história de amor, para que isso o possuísse na velhice! E o que é que aconteceu? Ele não o diz na entrevista. Esse "espaço em branco" é a tela, o terreno fértil, para um romancista.
"As pessoas começaram a notar o meu tema e levaram-me à fonte para beber"
Noutras obras, como "Mariana", também se centra em temas portugueses. Com uma vivência maioritariamente americana, como é chegar a estes temas?
Nasci e cresci na Califórnia, mas a origem do meu pai era açoriana (ilha Terceira), e ele tinha muito orgulho nisso. Escreveu um livro, que ainda hoje é visto com carinho e respeito, chamado "Os Portugueses na Califórnia" — um relato histórico — e dava frequentemente palestras sobre a cultura portuguesa.
Éramos ativos nas várias sociedades portuguesas (UPEC, IDES) que existiam no norte da Califórnia. Tudo isto se conjugava para me dar a conhecer em primeira mão pessoas cujas histórias — quer de imigração, quer das suas vidas e sonhos como americanos — não estavam a ser registadas nos meios de comunicação ficcionais. O meu pai incentivou-me a seguir este caminho, uma vez que ele próprio era escritor, para além de ser um professor de História muito querido.
"Mariana" ocorre apenas em Portugal, mas eu tinha uma amiga, Gwyneth Cravens, que lia muito Rilke, que adorava Mariana Alcoforado como um ícone, e ela pôs-me essa história à frente. A maior parte do material escrito sobre Mariana tratava do debate sobre a sua existência. Eu pensei: porque não contar a história dela? Porque mesmo que ela não tenha existido — e eu acredito que existiu, e há certamente provas bem documentadas de uma Mariana Alcoforado no convento — porque não contar a história que as cartas imaginam para nós?
A vida tem uma forma de acumular; as pessoas começaram a notar o meu tema e levaram-me à fonte para beber.
Durante o processo de escrita costuma pensar e escrever algumas partes em português?
Gosto de pensar que o meu coração e a minha mente estão cheios de versões da alma e da sensibilidade portuguesas, mas escrevo em inglês. Mas acredito que a língua é um território crucial para estar ligado a uma cultura, e leio ou estudo português durante uma hora todas as manhãs.
"A minha convicção é que o boca-a-boca continua a ser o melhor método para um livro receber um maior número de leitores"
O livro que agora chegou a Portugal foi publicado em primeiro lugar nos EUA. Como é que foi recebidos no mercado americano?
Fico muito contente por dizer que "Above The Salt" (Flatiron Books/Macmillan) continua a sair-se muito bem nos EUA. Antes da sua publicação, recebeu raras críticas com estrelas nas principais publicações do setor (Publisher's Weekly, Kirkus), o que cria automaticamente uma onda de interesse.
Depois foi escolhido como Livro da Semana pela revista People, que tem uma circulação enorme. Houve outras coisas: um Top Three Pick do programa nacional "Good Morning, America", um Top Fifteen do Goodreads, etc.
A novidade agora é a proliferação de clubes de leitura, muitos deles online, pessoas com seguidores que procuram sugestões do que ler. Apesar do que os media podem fazer, a minha convicção é que o boca-a-boca continua a ser o melhor método para um livro receber um maior número de leitores. A receção tem sido maravilhosa e está planeada a edição em livro de bolso para o outono deste ano.
"O mais gratificante foram as cartas ou críticas dos leitores a dizerem que o livro tem uma enorme dimensão de guerra e paz e é poético"
Conta no prefácio que demorou década e meia a escrever “A Linha do Sal”. O tempo deveu-se a toda a investigação necessária, apesar de ser uma obra de ficção?
Acredito firmemente que, embora seja maravilhoso que hoje em dia possamos procurar tanto na Internet, "pesquisar" significa realmente ir a sítios, ser surpreendido, conhecer pessoas, estar aberto e atento às histórias que as pessoas e os sítios nos dão. E esta é uma boa atitude em relação à vida em geral.
Fui à Madeira e consegui uma nomeação para um semestre no Illinois College em Jacksonville, Illinois... e quais são as probabilidades de um emprego destes ser anunciado? Isso faz parte da forma como o mundo nos pode oferecer coisas maravilhosas. Ficaram tão espantados por eu estar a escrever sobre Jacksonville que consegui o emprego e, enquanto lá estava, conheci um professor de botânica, o Dr. Lawrence Zettler, que estava a desenvolver um perfume de orquídea fantasma! Eu nunca teria imaginado que tal coisa pudesse prosperar na pradaria! Até fomos à caça de orquídeas no Illinois, onde encontrou algumas.
Mas, honestamente, o que levou mais tempo foi o desenvolvimento da história. Trabalhei durante anos para me certificar de que as personagens eram envolventes e complexas e que a história era emocionante, com um enredo forte e dinâmico. Trabalhei com um editor freelancer, Randall Klein, recomendado pela minha agente, Ellen Levine da Trident Media. Ele ajudou-me verdadeiramente a dar forma ao material. E depois a minha editora, Megan Lynch, trabalhou comigo durante mais um ano.
Mas, no final, o mais gratificante foram as cartas ou críticas dos leitores a dizerem que o livro tem uma enorme dimensão de guerra e paz e é poético, mas que a história tinha voltas e reviravoltas inesperadas e que continuaram a ler. Trabalhei muito para conseguir exatamente isso.
Tem alguma personagem preferida ou cujo processo de construção tenha sido mais interessante?
Isto é um pouco como pedir a uma mãe que diga o nome do seu filho preferido... mas as primeiras honras vão para o João Alves, que inspirou a história e cuja mão trémula de velhote me fez voltar a fazer a história cheia de emoção, cheia de amor e angústia, separações e reencontros.
Eu criei a Maria, mas coloquei muito da relação com o meu próprio pai na relação dela com o Augusto (este era também o nome do meu pai, e ele era um ótimo jardineiro). Perdi o meu pai durante a escrita deste livro; estava a segurar-lhe a mão quando ele morreu, com 86 anos. Ele queria que eu acabasse o livro, e ele e a minha mãe estavam muito orgulhosos de mim. Perdi a minha mãe, com 95 anos, em 2022, exatamente quando o livro estava pronto. Por isso, suponho que coloquei a ideia da perda e do luto no livro através da perda dos meus pais.
Gostei mesmo do Edward! Ele desafiou-me realmente a criar uma personagem masculina que fosse simpática e também um "homem do Oeste", e como eu própria sou do Oeste, suponho que há um pouco de mim no Edward. Para mim, ele continha toda a estranheza de não ter a certeza de onde se encaixar.
Serafina, a mãe de John, fez-me rir, porque a certa altura, pensei: "bem, tu eras uma heroína na Madeira, mas em Illinois, pareces estar adormecida". Então eu disse-lhe: "Levanta-te e faz alguma coisa." Então ela foi dar uma volta e eu gostei de escrever essas passagens.
Mas o amor número um: John, para mim. Depois o Augusto.
"Um bom escritor não tem medo de deitar fora grandes porções de trabalho ao serviço da criação de algo"
Disse numa entrevista, há uns meses, que ao longo do processo de construção do livro teve de adaptar as personagens e até eliminar algumas. Como é que se lima uma obra que ainda tem alguma extensão?
Eu gosto muito de deitar as páginas fora! Não há perdas. Isso faz parte do processo de acertar uma história, de a aperfeiçoar quando necessário, de a expandir de uma nova forma se for preciso. Houve algumas personagens menores que foram cortadas na edição final.
A personagem "Addy", que geria a pensão para mulheres no livro, agora é apenas uma presença menor. Precisava de ajuda com isto. Na reescrita final, trabalhei com a minha editora principal, Megan, para moldar melhor a presença de Edward. Ele precisava de ser uma pessoa complexa e boa para que pudéssemos compreender porque é que a Mary o podia vir a amar, e ele estava à frente do seu tempo ao tratar as mulheres da forma que ela tinha sido educada para esperar. Mas ele não podia ser tão maravilhoso que ela desistisse de amar John! Era, como diz o ditado, uma agulha fina para enfiar na linha.
A história também tinha de existir "em cima" da poética; as personagens não podiam afogar-se em lirismo. Também precisei de ajuda com isso. A melhor resposta é que tive uma ajuda maravilhosa de editores especializados que foram óptimos a dar vida à história. Um bom escritor não tem medo de deitar fora grandes porções de trabalho ao serviço da criação de algo.
Sendo um livro cuja trama se passa no século XIX, existem temas transversais aos dias de hoje, como o caso da perseguição religiosa, que ainda acontece em alguns locais do globo, e da imigração. É também uma forma de alertar para questões por vezes complicadas a que ainda vamos assistindo?
Gosto muito desta pergunta, porque foi exatamente isso que me motivou a escrever a longa história do tempo da Guerra Civil, uma saga de guerra, de paz, de manobras sociais, de um ambiente próspero de invenções, de deambulação pela paisagem de um país onde o ouro tinha sido descoberto, em 1849, nos confins. Mais concretamente, o facto de várias centenas ou talvez até dois milhares (as estimativas do número de refugiados variam, mas trata-se de um grupo grande, não pequeno) terem sido acolhidos de braços abertos na América, recebendo terras, empregos, oportunidades, era algo que eu queria reconhecer e abraçar.
"Espera-se que possamos, como espécie, celebrar as nossas diferenças em vez de nos assustarmos com elas"
Um pequeno asterisco: sim, os presbiterianos madeirenses também eram abolicionistas, pró-educação, pró-igualdade para as mulheres e, por isso, eram um bloco de votos sólido para o partido de Lincoln.
Queria chamar a atenção para o valor de recordar o que a América representou, um lugar diversificado e próspero. Outro aspeto subtil foi o facto de Jacksonville, Illinois em particular, ter sido um local de grandes experiências na tentativa de moldar a alma do país: havia colégios para mulheres, galerias de arte, uma sensibilidade comunitária, instituições para cegos, surdos e indigentes. Chamavam-se a si próprios a "Atenas do Oeste" por alguma razão. Springfield, Illinois, tinha política, caminhos-de-ferro, um sentido mais "individualista".
Esta é uma luta com que continuamos a viver. Quis mostrar como o conflito religioso e esta contenda básica sobre se existimos como membros de uma comunidade ou como indivíduos que podem seguir em frente para procurar os seus destinos. É um facto triste que, se os madeirenses que eram protestantes sofreram perseguições, os católicos na América, na mesma altura, foram tratados com preconceito. Espera-se que possamos, como espécie, celebrar as nossas diferenças em vez de nos assustarmos com elas.
Acredito que tenha novas histórias em carteira. Há algum tema relacionado com Portugal que gostasse particularmente de desenvolver num romance?
Estou a trabalhar no meu primeiro argumento, com a orientação do realizador e argumentista Robin Swicord, uma adaptação do meu conto "Our Lady of the Artichokes".
Comecei um novo romance sobre amizades femininas que ainda está um pouco nebuloso, mas pode muito bem incluir raparigas portuguesas do vale da Califórnia...
"Uma grande história precisa de tempo para crescer e ser criada, e as grandes histórias são amadas. As redes sociais só vão até certo ponto"
Estamos num tempo em que surgem muitos novos escritores e em que as redes sociais servem para promover obras. Como vê o futuro da literatura?
Há, de facto, mais livros a serem publicados agora do que nunca, e suponho que haja um pânico sobre "ser notado". O que nos pode acalmar e salvar é lembrarmo-nos de que uma grande história precisa de tempo para crescer e ser criada, e as grandes histórias são amadas.
As redes sociais só vão até certo ponto. Além disso, é bom lembrar que, se quisermos afastar-nos do pensamento hierárquico (ou seja, há um "melhor" escritor, uma lista dos "dez melhores", etc.), a paisagem literária é assim: muitos livros de muitas pessoas, leitores diversos, livros diferentes para públicos diferentes.
Talvez estejamos a desenvolver demasiada vontade de ser, literalmente, "apreciados". A promoção faz parte da ligação com os leitores; isto sempre foi verdade. Mas a melhor parte de ser um leitor ávido é partilhar o entusiasmo com outro leitor sobre um livro que nos toca. Digo sempre a mim própria que a literatura utiliza uma linguagem emocional que não podemos utilizar muito no nosso quotidiano. Os leitores completam o ato de escrever. Esta é a beleza do que fazemos.
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