“Losing my Edge”, uma primeiras e mais fulcrais canções dos LCD Soundsystem, é um tratado prolixo e hilariantemente específico sobre envelhecer e sentir que se está a deixar de ser fixe, de que as próximas gerações nos vão comer vivos se sequer ousarmos ir a jogo com as suas referências e códigos culturais. Era assim que James Murphy — vocalista e líder da banda — se estava a sentir há pouco mais de 20 anos quando era um DJ trintão em Nova Iorque e estava a sentir-se ultrapassado pela esquerda e pela direita, sem piscas. É-se ainda uma criança com 32 anos, dirão alguns, mas tentem convencer os putos disso mesmo.
Não deixa de ter uma certa graça que, volvidas mais de duas décadas e já com 54 anos em cima, Murphy demonstre com o seu coletivo artístico como, à custa de talento, verve e o tal nervo que admitia estar a perder, a sua banda continue a ser um nome cimeiro do panorama alternativo — que dita as tendências ao invés de se submeter aos ditames e, acima de tudo, que organiza arraiais de suor e ginga como aquele que ofereceu no segundo dia do MEO Kalorama.
Tudo isto podia ser uma miragem, se nos recordarmos que em 2011 a banda decidiu pôr termo à sua existência depois de incendiar pistas de dança durante o início dos 2000 com “This is It” e “Sound of Silver”. Todavia, se há lição que podemos extrair de alguns episódios mais recentes é que algumas miragens trazem mesmo oásis e que as reuniões medem-se tanto pelos coros dos fãs como pelo tilintar das moedas. De regresso apenas quatro após esse hiato — pontuado com um mega concerto de despedida em Nova Iorque — os LCD Soundsystem regressam com Murphy a admitir que o retorno teria de compensar pela perfídia desse falso fim. E a julgar pelo percurso que têm feito desde então — veja-se como foi recebido o seu álbum de 2017, “American Dream” — o rumo da contrição tem-lhes feito bem.
Já não dá para contar pelas mãos o número de concertos que os LCD Soundsystem deram em Portugal — os últimos, em 2018, foram uma data tripla no Coliseu dos Recreios —, e Murphy fez mesmo questão de lembrar quando estiveram no Lux em 2005. Percebe-se pela reação do público o porquê de tal propensão. Apesar da moldura humana ser talvez mais reduzida do que se esperava, foi difícil encontrar alguém que não estivesse a abanar o corpo ao ritmo da batida ou, pelo menos, a fletir o joelho e bater o pé no chão. A música dos nova iorquinos é tão inteligente e cerebral quanto infecciosa, e durante cerca de hora e meia, poucos foram os momentos que não convidaram à dança desbragada.
De forma algo surpreendente, “Us v Them” abriu as hostes com panache e uma mega bola de espelhos a reluzir sobre as colinas do Parque da Belavista, seguindo-se “I Can Change” com direito a uma introdução de “Radioactivity” pedida de empréstimo aos Kraftwerk. Murphy esteve no ponto com tiradas, falsettos e gritos a pontificar a música, ora frenética a roçar a neurose (a já mencionada “Losing my Edge”), ora apenas jubilante (“Home”). O mais próximo que tivemos de contemplação foi “Someone Great”, reflexão tocante sobre a mortalidade que ainda assim carrega uma toada agridoce, e “New York, I Love You but You're Bringing Me Down”, espécie de power ballad que podia aplicar-se perfeitamente à Lisboa de Carlos Moedas e Fernando Medina.
De resto, foi de hipnóticas sequências que os LCD Soundsystem nos pediram para dançar tudo o que havia para dançar naquela noite (“Tonite”), despojar as impurezas na libertação (“Dance Yrself Clean”) de tal forma que seríamos passíveis de sair do recinto com um corpo novo (New Body Rhumba”). Para o final, como sempre, o hino à amizade, à partilha e ao poder que a música tem de unir com “All My Friends”.
Death Cab for Cutie e The Postal Service, duas faces de um mesmo sentimento
Com os LCD Soundsystem como cabeças de cartaz, se dúvidas houvesse que este dia era particularmente dedicado àqueles que chegaram à idade adulta nos 2000 e que agora ou fazem planos de babysitter ou trazem os miúdos para o festival, a presença de Ben Gibbard em dose dupla no palco San Miguel trataria de dissipá-las (e houve também The Kills, mas já lá iremos).
Se um aniversário é, quase sempre, motivo de festa, o que dizer de dois em simultâneo? Líder de dois dos mais importantes projetos do indie rock deste milénio, Ben Gibbard tem estado desde 2023 em digressão para celebrar os 20 anos do disco “Transatlanticism”, dos seus Death Cab for Cutie. Igual efeméride tem sido assinalada para “Give Up”, álbum que criou à distância com Jimmy Tamborello, enviando os dois demos e maquetes entre Seattle e Los Angeles, formato de colaboração honrado pelo nome deste projeto, The Postal Service.
Se o primeiro é um disco clássico de indie rock, daqueles com melodias e assomos emocionais assoberbantes e letras tatuáveis em (quase) qualquer parte do corpo, o segundo é um casamento perfeito entre o indie e a eletrónica, com beats e encadeamentos tão pioneiros quanto dançáveis, sem ainda assim perder o núcleo sentimental da escrita de Gibbard. O músico conseguiu assim entrar no panteão de artistas igualmente influentes em géneros musicais distintos, ao lado de nomes como David Bowie, Bob Dylan, Prince, Miles Davis, Trent Reznor, Ian MacKaye, José Cid e Carlos Alberto Vidal.
O resultado foi uma experiência engraçada que raramente vemos em festival: uma banda a tocar um álbum inteiro, seguindo-se uma pausa de 15 minutos para o outro grupo subir depois ao palco. Assim foi, com Death Cab for Cutie a dar o arranque e The Postal Service a segui-los, com Gibbard como elo de ligação fulcral entre as duas entidades, espécie de mestre de cerimónias participativo desta sessão de homenagem — ou de pastor, para aqueles com inclinações mais espirituais.
Vestidos integralmente de negro, Death Cab for Cutie atiraram-se às canções de “Transatlanticism” com a alegria de quem os seus males espanta, abordando temas de amor e ausência, as forças motrizes deste álbum — e da vida em geral, ou não? “The New Year” deu o arranque para uma hora de partilha com um número ainda considerável de pessoas que pareceu estar especificamente no Kalorama para vê-los a eles naquela que Gibbard disse considerar “uma das cidades mais bonitas do mundo”.
A delicadeza de canções como “Title and Registration” e “Passenger Seat” — composta apenas por piano e a voz bem conservada de Gibbard — andou de braço dado com o cariz antémico de temas como “The Sound of Settling” e, principalmente, da faixa-título, o eixo emocional do álbum e deste concerto. Ver tanta gente a gritar “I need you so much closer” é daqueles momentos para ficar gravado na memória.
No que toca a The Postal Service, quem só tivesse familiarizado com Death Cab for Cutie de certo estaria a perguntar-se se tinha batido com a cabeça em algum lado, dada a diferença na palete sónica. Trocando riffs por teclas cintilantes, tarolas e bombos por beats e glitches, o projeto só tem mesmo em comum a voz de Gibbard e a mesma postura tão cruamente certeira quanto elegante no que toca ao departamento lírico. Mais polémico será dizer que é talvez, dos dois projetos, a música que melhor se traduz para um cenário ao vivo.
É impressionante a frescura com que se mantém canções como “The District Sleeps Alone Tonight” e “Such Great Heights” — e o quão convidativas são à entrega do público. Dado acontecer mesmo antes de LCD Soundsystem, foi para alguns talvez o aquecimento perfeito. Com a guitarrista e teclista Jenny Lewis como grande cúmplice em palco, com a qual entrou quase em modo dueto em várias ocasiões, vimos “Nothing Better” e “We Will Become Silhouettes” a estabelecer um crescendo que atingiu o apogeu de comunhão em “Brand New Colony” e “Natural Anthem”. Num concerto toldado pela tolerância — dedicado aos “he’s, she’s e they’s” — e pelos pedidos de que “sejam bons uns para os outros”, Gibbard despediu-se com as duas bandas em palco, unidas para tocar esse hino imortal que é “Enjoy the Silence”, dos Depeche Mode, forma perfeita de terminar a atuação.
Jungle e The Kills, porque um festival também se faz de mediania
No atual panorama laboral, tornou-se quotidiana a frase jocosa “podia ter sido só um email” quando a chefia marca uma reunião para discutir coisas que, lá está, só precisavam de ser transmitidas por escrito. Aproveitemos o jargão para afirmar que o concerto dos Jungle podia ter sido apenas um DJ set — a sério, não teria feito grande diferença e o cachet era mais barato.
Para um projeto de música eletrónica que vai tanto beber à disco e à funk, é notável a falta de garra que o duo britânico dos produtores Josh Lloyd-Watson e Tom McFarland — que entretanto passou a trio com a entrada de Lydia Kitto — apresenta ao vivo, mesmo que acompanhado de uma banda absolutamente competente. É inegável o encanto de canções como “The Heat”, “Back on 74” ou “Busy Earnin’”, que arrancou o concerto — nem ninguém lhes tira o sucesso e nem a longevidade —, mas os Jungle apresentaram-se no Kalorama como uma banda de Inteligência Artificial que por acaso é constituída por pessoas.
O problema nem é a mesmice em que algumas das canções entram — os LCD Soundsystem apresentaram temas com perto de 10 minutos quase sempre com a mesma batida sem nunca enfadar. É mesmo a falta da componente humana, da falha, de um sinal qualquer de que são pessoas que estão ali a tocar — soa tudo perfeitinho, sem dinâmicas, assético, com a espessura de uma tortilha atropelada por um rolo compressor. O resultado foi mais de uma hora de muzak para festivais, banda-sonora para stories do Instagram com brindes de bebidas inflacionadas, uma performance inadvertidamente robótica não obstante os sorrisos e boa disposição dos intérpretes — já que os mencionámos lá atrás, não é Kraftwerk (ou Daft Punk) quem quer, é quem pode.
Quanto a este aspeto, valha-nos Lydia Kitto, que já andava em digressão desde 2021 e tornou-se membro oficial em 2023. É ela que tenta humanizar todo o concerto de Jungle, que grita e dança, que toca flauta transversal e puxa pela voz em temas “Against the World”, “What D'You Know About Me” ou “All of the Time”. É curioso também que tenha sido apenas na reta final da atuação — onde largaram as influências da black music e abraçaram as origens do UK dance com beats a rasgar forte e feio — que os Jungle tenham soado com algum tipo de vitalidade. É também curioso que esse seja o estilo de música que não necessita de instrumentos — lá está, podia ter sido um DJ set.
Igualmente mediana foi a atuação dos The Kills, não obstante Jamie Hince e Alison Mosshart terem mais atitude nas unhas dos pés que bandas inteiras tenham ao longo das suas discografias. O problema não está no facto de serem apenas um duo nem do seu blues rock travestido pela sujeira do punk nova-iorquino dos anos 70 não permitir grandes aventuras na estrutura relativamente simples das suas canções. Era só terem uma bateria — numa sala pequena onde os pés colam no chão, a sua ausência pouco seria notada, mas em formato open air e num palco como o San Miguel, deixou-os mancos.
O resultado foi que, não obstante as acrobacias de Hince na guitarra — com a proeza de soar roufenha e compacta ao mesmo tempo, como um rádio a pilha do tamanho de um prédio — ou o timbre escaldante — nunca a rouquidão foi tão boa — de Mosshart, os The Kills pareciam estar a tentar fazer vento durante um tufão. Se Gossip — também eles relíquias da cena rock dos anos 2000 — demonstraram no dia anterior ser uma melhor banda ao vivo que em estúdio, o duo mostrou o inverso.
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