Talvez haja poucos truísmos mais cansados do que a frase que importámos do inglês, “palavras não chegam para descrever” tal e tal, mas no caso de um concerto como o que os Massive Attack apresentaram no palco principal no primeiro dia do MEO Kalorama, é humilhantemente factual.

Aquilo que Robert del Naja, Grant Marshall e restante (e extensa) comitiva de artistas — com os ilustres colaboradores Horace Andy, Elizabeth Fraser, Deborah Miller e os Young Fathers —  trouxeram para o Parque da Belavista é uma performance total cuja descrição peca sempre por incompleta. Aliás, a mistura de som e vídeo torna-se de tal forma envolvente e, a espaços, vertiginosa, que é mesmo possível que até quem tenha presenciado in loco tenha deixado passar muito do que o conjunto britânico lhe atirou para cima.

Caso precise de um descritivo, os Massive Attack são uma seminal banda de trip-hop, género que eles próprios ajudaram a criar, misturando o rap, o dub, o reggae, a soul e o jazz num melting pot de música eletrónica tão rico e diverso quanto Bristol, a cidade que os pariu. Simultaneamente, a essa plasticidade sonora juntam uma identidade política que raramente desarmaram — bastaram segundos em palco para vermos uma banda a dizer “Palestina” à volta do braço de del Naja —  e que é particularmente notória com o tipo de imagens que apresentam nos seu concertos ao vivo. E porque pretendem ser universais, tudo esteve legendado em português.

O título desta peça não é mera provocação — os Massive Attack podiam ser um mero “legacy act” votado a tocar os êxitos de Mezzanine e outros discos e ver os zeros a avolumar-se nas contas bancárias. Aliás, o facto de não lançarem um álbum desde 2010 ajudaria a construir tal espantalho. Todavia, essa atoarda apenas poderia ser lançada por mero desconhecimento ou desonestidade — mesmo que as músicas mantenham-se as mesmas, o mundo mudou, e a banda foi mudando com ele, atualizando os seus anseios e causas. Prova disso é que, fora alguns pontos de contacto, o espetáculo pouco teve a ver com os dois que deram há cinco anos no Campo Pequeno.

Logo no arranque do concerto vemos uma entrevista a uma jovem que diz apenas que apenas queria ser ela própria: como sermos apenas “nós” num mundo dialético de caos informativo onde a cada oportunidade somos alvo de catalogação e maniqueísmo, sujeitos a todas as formas possíveis de influência e manipulação? Talvez a solução passe por mergulharmos no nosso íntimo, excluindo influências externas — mas até esse pode ter sido concebido para nós e não por nós. E do que vale a vida se não for partilhada e em contacto com outrem? Ao fim de quase duas horas de concerto, os Massive Attack não nos deram respostas, mas tiveram a igualmente nobre função de colocar as perguntas.

O arranque de “Risingson” proporcionou uma boa amostra que um concerto da banda pode oferecer — à toada embalante dos versos, quase soporífera de tão encantatória, seguiam-se as pontadas eletrónicas a lembrar um alarme, como que avisando que o mal está sempre à espreita. Por cada dose de candura soul de “Safe From Harm” e “Unfinished Symphony” — sublimadas pela voz incrível de Deborah Miller — ou “Teardrop” — a famosa canção que, apesar de repetida até à exaustão como genérico da série Dr. House, não perdeu o seu brilho, nem Elizabeth Fraser a capacidade de arrepiar-nos — tivemos canções a funcionar como um desfibrilhador nos tímpanos. 

A fúria de “Voodoo in my Blood”, com os Young Fathers em palco, foi exemplo disso mesmo, tal como “Group Four”, com o seu crescendo sufocante. Outros momentos, contudo, mostraram uma vez mais como os Massive Attack são peritos em deixar-nos em banho maria, com o baixo hipnótico de “Angel” ou as guitarras ameaçadoras de “Inertia Creeps” ameaçar um desabamento que nunca chega, espécie de coito interrompido que, neste caso, é imensamente satisfatório.

Enquanto a música ecoava, as imagens sucediam-se. Durante o concerto vimos críticas ao projeto Neurolink de Elon Musk, à forma como permitimos que o escapismo tomasse conta das nossas vidas para ignorar a crua realidade lá fora (nem os furries se safaram) e à forma como estamos a deixar a Inteligência Artificial tomar conta da nossa identidade — genial o momento durante Girl I Love You, embalado pela voz melancólica de Horace Andy, em que a câmara pairou sobre o público, rotulando festivaleiros com classificações que iam desde “vigoroso” a “assaltante”, muito ao jeito do que a China já implementou.

Outro momento particularmente pungente foi durante a versão a abrir e surpreendentemente pesada de “Rockwrok”, original dos alemães Ultravox, onde as imagens de pessoas a dançar livre e despudoradamente foram justapostas com considerações sobre as teorias da conspiração que grassam sobre o mundo e como estas funcionam numa sucessão de extrapolações bizarras. Exemplo, parafraseado: as elites pedófilas satânicas controlam toda a gente no mundo, excepto Donald Trump. Só que este é um agente de Vladmir Putin que, por sua vez, é controlado por Xi Jinping, que plantou o vírus da Covid-19 em Wuhan para domesticar o ocidente, um objetivo semelhante ao de Bill Gates e o Rei Carlos III, sendo que as vacinas plantaram microchips para permitir a Grande Substituição. Parece-lhe ridículo? É só uma de milhares exemplificadas em hashtags na tela — e que vemos a pulular nas redes sociais. Corrijamos algo escrito anteriormente: os Massive Attack propuseram respostas sim, uma delas foi a este dilema: “talvez todas as teorias da conspiração sejam uma conspiração em si mesmo para nos fazer sentir impotentes, já que a suspeição é uma forma de controlo”.

Noutros momentos, vimos sequências de imagens alusivas à invasão da Ucrânia e da guerra na Faixa de Gaza — que motivaram apupos do público quando Vladimir Putin ou Benjamin Netanyahu apareciam na tela — além de uma sucessão de números aterradores quanto à realidade vivida na Palestina desde os anos 40 e do quão enriqueceu o complexo industrial militar americano à custa disso.

É certo que a banda esteve em parte a pregar aos seus convertidos e a sua mensagem vem de uma posição tão à esquerda que repele de imediato uma fatia considerável de pessoas. Além disso, não deixa de ser curioso ver posições tão vincadas sob o placar colorido do naming sponsor do festival, mas qual será a alternativa? Fecharem-se em redomas de pureza? Qual a práxis a seguir para uma banda chegar a mais público com a sua música e mensagem no século XXI sem sacrificar os seus princípios? Tal como no concerto dos Massive Attack, há perguntas que ficam sem resposta neste texto, mas uma coisa é certa — ainda bem que ainda cá andam, ainda bem que continuam a abanar-nos.

A liberdade de ser Sam Smith (mesmo que com cansaço)

Sensivelmente uma hora depois dos Massive Attack levantarem arraiais do palco MEO Kalorama, Sam Smith assinaria o seu regresso a Portugal com uma forma inteiramente diferente, mas nem por isso menos meritória, de ser um sujeito político em palco. Assumindo publicamente a sua homossexualidade desde o início da carreira, Smith revelou o seu não-binarismo em 2019 — preferindo assim pronomes sem género — e, com esse passo, abraçou também uma queerness que metamorfoseou a sua música: das baladas delicodoces de blue-eyed soul e r&b com que se notabilizou para uma pop transgressiva e abertamente sexual.

Por outras palavras, tomou um rumo de maior liberdade e honestidade com a sua pessoa, mesmo que arriscando alienar o público — haverá algo mais político do que isso? Esse passo viu-se espelhado no cenário que apresentou em palco: uns rochedos lembrando uma voluptuosa estátua deitada, pichados com mensagens e palavras como “protejam as crianças trans”, “autonomia” e “libertação”.

Com a companhia de uma trupe de dançarinos capazes de ir da graciosidade à lascívia em poucas músicas, de uma banda de virtuosos e de um grupo de vozes de apoio que rivalizam a qualidade da sua, Sam Smith apresentou um espetáculo pop hipercompetente e que de forma hábil percorreu toda a sua carreira. Só teve um problema: tudo isto foi visto há pouco mais de um ano e em qualidade superior.

A quatro concertos de terminar a digressão de dois anos de promoção a “Glória” — álbum lançado em 2022 — foi por demais evidente o cansaço de Sam Smith quanto a este espetáculo, especialmente quando comparado com o concerto que deu no NOS Alive em 2023. Aí, com um alinhamento quase idêntico — é só compará-los no setlist.fm —, teve uma prestação mais enérgica e com figurinos mais bem trabalhados. Supõe-se que o problema também possa residir em que escreve, que viu esse primeiro concerto com olhos virgens, absorvendo uma frescura que passou de prazo mais de 12 meses depois.

Não se entenda com isto que foi um mau concerto —  dificilmente sê-lo-ia com a quantidade de êxitos que Smith conseguiu conceber no espaço de 10 anos, a começar com a toada quasi-gospel de “Stay with Me”, e a acabar em absoluto contraste com o exercício de profanação pop que é “Unholy”, com o seu refrão de elevação religiosa a par e passo com a instrumentação metálica. Tal como em 2023, vimos uma prestação começar com as canções consensuais — “I’m Not the Only One” e “Too Good at Goodbyes” — e a passar para as sensuais — ”Gimmie” deu o tiro de partida, com Smith a pedir ao Kalorama que se tornasse num “big gay bar”.

Uma diferença de maior, no entanto, a registar. No espaço de um ano, Smith voltou ao laboratório com Calvin Harris para, depois de “Promises”, criar algo ainda melhor: “Desire”, pseudo-trance a elevar a música de carrinhos de choque aos píncaros da pop e que, felizmente, foi-nos graciosamente apresentada no Parque da Belavista. Agora é favor fazer mais 10 destas.

Gossip a lembrar o passado, Ana Lua Caiano o futuro

“It’s a cruel, cruel world”. É assim que começa um dos maiores êxitos dos Gossip e é assim que podemos definir o percurso da banda norte-americana. Portadores de um infeccioso dance rock e do icónico vozeirão de Beth Ditto, nunca lograram o sucesso que canções como a acima referida “Heavy Cross” ou “Standing in the Way of Control” prometiam. Culpe-se a separação de 2016 — ou, convenhamos, o facto dos Gossip sempre terem sido uma melhor banda ao vivo que em estúdio. Toda a década tem os seus Parcels.

Poço de simpatia, à vontade e humor, Ditto comandou os Gossip no seu regresso a Portugal com todas as idiossincrasias que se lhe conhecem. “I’m 43, I’m fuckin fat, I’m really tired and I’m sorry about that”, foi apenas uma das tiradas hilariantes que disparou entre lamentos por Fever Ray ter cancelado a sua presença no festival e referências à “Not Like Us” de Kendrick Lamar, chegando mesmo a cantar “OV-hoe”.

No que toca à música propriamente dita, no entanto, o concerto foi um espelho da carreira dos Gossip — mesmo descontando o desconhecimento quanto aos temas do disco de reunião “Real Power”. Canções enérgicas e honestas — com sintetizadores cintilantes e baixos pulsantes, além da já mencionada voz de Ditto — que resultam num concerto bem passado, mas que só atingiu assomos de êxtase quando as duas tais canções foram tocadas — e “Standing in the Way of Control” até teve direito a uma interpolação de “Smells Like Teen Spirit”, dos Nirvana.

Em sentido oposto, se os Gossip representam o boom de bandas de indie rock americanas que surgiram no início dos anos 2000 (a maioria defunta ou inativa), Ana Lua Caiano é uma das caras do que a música portuguesa tem para dar aqui e agora. Ao contrário de muitos artistas que (re)descobriram a portugalidade recentemente entre pífaros e guitarradas, a cantautora demonstra uma identidade própria bem assente na vontade de desconstruir e reerguer alguns dos elementos tradicionais da nossa música em canções cheias de verve.

Munida da sua máquina de loops, Caiano é uma one-woman band que até se dá ao luxo de exemplificar ao vivo numa canção como “De Cabeça Colada Ao Chão” como é que o processo ocorre — primeiro um sample, depois bombos, adufes, vozes, palmas e sintetizadores. A transparência do processo não o torna menos interessante; pelo contrário, convida-nos a segui-lo com a curiosidade de um gato.

Estreando-se num palco principal de um festival “grande” português, não desperdiçou a oportunidade de maravilhar os presentes que iam chegando ao início da tarde com temas como “Que O Sangue Circule”, o cânone magnético entre os rufares de “Se Dançar É Só Depois” ou “Adormeço Sem Dizer Para Onde Vou”, dotada do instrumento mais subvalorizado de sempre, a melódica. A dada altura confessou que quando acabasse o concerto, queria passar para o nosso lado e usufruir do festival como qualquer outro festivaleiro. Felizmente, para nós, ainda teve de cantar “Mão na Mão” para fazê-lo.