Numa entrevista recente para a newsletter da FNAC, Álvaro Covões, dono da promotora Everything Is New e responsável máximo pelo NOS Alive, admitiu querer ver o concerto de Machine Gun Kelly porque “a crítica diz mal”. Não mentiu: a crítica especializada nunca foi simpática para com o norte-americano. Os fãs – sobretudo os stans, se os houver – poderão sentir-se indignados com tamanha infâmia, mas é a realidade. Para quem já ouviu um pouco de tudo, o que Machine Gun Kelly traz ao panorama musical não é, primeiro, nada de novo e, segundo, nada de bom, seja qual for o género musical pelo qual opta. Do trap banal, Kelly passou para o pop/punk em autotune, apetecível apenas a uma geração Z que nasceu demasiado tarde para levar com os Blink-182.
O facto de Machine Gun Kelly não parecer ser a melhor das pessoas também ajuda a esta ideia. Na lista de pessoas com quem já teve discussões de quase-morte contam-se, por exemplo, Eminem – que lhe dedicou, não um, mas cinco versos em cinco canções diferentes, a rasgar forte e feio no colega de profissão –, e Corey Taylor, dos Slipknot, que numa entrevista se lançou “aos artistas que falharam num género musical e decidiram voltar-se para o rock”. Mais recentemente, todo o noivado, entretanto terminado, com a atriz Megan Fox, que envolvia juras de amor feitas com sangue bebido, também fez voltar muitas cabeças.
Kelly sempre pareceu o típico artista americano que tenta enveredar pelo shock value para tentar garantir imprensa, esquecendo-se que os seus antecessores do shock value tinham algo que ele não tem, que se chama talento. Como tal, acabou menosprezado por grande parte do mundo.
No NOS Alive, havia uma falange de apoio: gente que cantava a letra de 'I Think I'm Okay', que Kelly gravou com Yungblud e Travis Barker, homem que depois de arruinar o punk decidiu também arruinar o rap. Outros ergueram cartazes e os típicos corninhos de um concerto rock. A esmagadora maioria ou permaneceu no seu lugar ou foi deambulando até aos demais palcos ou barracas de brindes, nada dispostos a aturar o norte-americano durante pouco mais de uma hora. Só que hoje, o grande problema da crítica especializada, sempre apta a rasgar forte e feio em artistas – porque é isso que, um, tem imensa graça e, dois, gera visualizações – foi este: Machine Gun Kelly não deu um mau concerto. Não que tenha sido bom. Mas foi o pior adjetivo que se pode atribuir a um espetáculo ou a uma peça musical, que é “banal”.
Em cima de uma plataforma em palco, com chamas a rodeá-lo para transmitir algum aparato visual, Machine Gun Kelly começou com as guitarras de 'papercuts', focando-se nesse instrumento durante boa parte do concerto (quando não fingia que sabia fazer rap, digamos). 'maybe' trouxe a angst adolescente que faz dele uma espécie de ídolo pertencente a muita gente dentro dessa faixa etária, com Kelly a controlar o público, nomeadamente os braços deste, numa ondulação típica.
Bastante falador, depois do “obrigado!” obrigatório pôs-se a comparar um espirro com um orgasmo – e a aleatoriedade da frase fez rir um pouco. Depois de 'concert for aliens', aconselhou os presentes a mandar à fava quem quer que os mandasse à fava, antes de descer para junto do público para cumprimentar quem quer que estivesse lá à frente. E nisto passou-se uma meia hora absolutamente desinteressante e indistinta de muitos outros espetáculos com melhor música, muita dela não soando à banda-sonora do “American Pie”.
“Espero que chorem se tocar esta”
Se uma breve passagem por 'Bitter Sweet Symphony', dos Verve, causou alguma estranheza, essa depressa foi colocada de parte assim que 'I Think I'm Okay' colocou os sub-18 da plateia em busca de um rasgo de compreensão dos seus próprios sentimentos, auto-ajuda misturada com palavrões e a Nickelodeon. “Espero que chorem se tocar esta”, diria mais tarde, antes de 'emo girl', ligeiramente problemática dado que é um homem de 33 anos que a canta e nenhuma mulher dessa idade usa um choker.
Um “estou feliz por vos ver felizes” descreveu aquilo a que aqui se assistiu: um artista satisfeito por não ter sido alvo de ódio, rebolando na sua mediocridade. Repetimos: não foi bom, não foi mau, foi banal. Tivesse sido horrível e teria pelo menos ficado na memória. Assim foi só facilmente esquecível.
Menos esquecível foi Sam Smith – até porque mudou tantas vezes de indumentária que quase se podia fazer um jogo, um drinking game em que cada roupa diferente merecia um shot de tequila. Cabeça de cartaz deste terceiro dia de NOS Alive, Smith começou a fazer as filas da frente (e não só) lacrimejar com 'Stay With Me', só a sua voz, um piano e alguns coros, encantando vários milhares de pessoas – e esperava-se que, depois de Queens of the Stone Age, houvesse uma debandada geral; o erro é nosso e admitimo-lo.
Sam Smith e a liberdade de sermos nós próprios
Com um sorridente “é muito bom estar aqui”, Smith mostrou-se ao público como é: pessoa livre, não-binária, alvo das mais variadas injúrias derivado disso. Aliás, disse-o mais tarde: este era um concerto sobre a liberdade, sobretudo a de sermos nós próprios, seja qual for a orientação sexual, o género, a raça, o clube de futebol (apareceria mais tarde com uma camisola da seleção feminina de futebol, o nome orgulhosamente atrás). 'I'm Not The Only One' colocou toda a plateia a cantar, dos mais fanáticos aos que estavam simplesmente de passagem.
A 'How Do You Sleep?' segue-se um solo de guitarra a fazer lembrar os tempos áureos de Prince, e mais tarde o agradecimento aos músicos que acompanham Sam Smith, bem como às pessoas que foram prestando auxílio ao longo de toda a sua carreira. Se a primeira parte do espetáculo puxou pelo sentimento, a segunda puxou pela dança, com Smith a ir buscar sonoridades disco (ouviu-se o clássico 'I Feel Love', de Donna Summer, ouviu-se 'You Make Me Feel (Mighty Real)', de Sylvester) para fazer o povo mexer-se. No final, mamilos tapados, tanga de cabedal, atirou-se a 'Unholy', a canção que, tal como aconteceu com Lil Nas X, valeu-lhe acusações de satanismo. Não que isso o afete muito. O Diabo, que é o pai do rock, é igualmente sexy.
Era expectável: os Jesus Quisto bloquearam a rua onde se situa o Fado Café ou, melhor dizendo, centenas de fãs do “Pôr do Sol” bloquearam a rua onde se situa o Fado Café. Não estamos a falar de uma banda, e sim de uma piada – no melhor sentido da expressão. Os fãs de “Pôr do Sol” tê-lo-ão pensado a dada altura: os Jesus Quisto, personagens da série da RTP, iriam acabar por dar concertos “a sério”. Depois do Teatro Maria Matos e do Porto, vieram ao NOS Alive, numa espécie de vitória para os fãs do humor. Pena que não os tenham metido no Palco Comédia, onde teriam feito muito mais sentido. Ainda se conseguiu ouvir algumas graçolas por parte dos atores que os compõem (“obrigado por nos ajudarem a cumprir um sonho e por não fumarem ganzas aqui dentro” foi uma delas), ainda se conseguiu ver um fã extremoso a indignar-se com um profissional da televisão por querer entrar na sala para poder realizar o seu trabalho. Ao lado, encontrámos o realizador de “Pôr do Sol”, Manuel Pureza, a quem contámos esta situação. “Quase à mocada é bom!”, foi a resposta.
A fechar a noite, os australianos Rüfüs Du Sol, que se deixaram fotografar por uma quantidade reduzidíssima de meios, trouxeram ao palco principal o género musical que mais arrebita uma audiência quando o álcool já se evaporou e os últimos fogachos de energia precisam de ser gastos: música eletrónica de dança, pois claro. Num concerto que não contou com assim tantos resistentes, o trio começou por falhar – o chamado prego – antes de colocar várias pernas a mexerem-se com ritmos 4/4.
O NOS Alive regressa em 2024 e já há datas: 11, 12 e 13 de julho.
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