1986. Começava o ano e entrávamos na “Europa dos Ricos”. "Agora, que já lá estamos / vamos ter tudo aquilo que desejamos (...) Oh boy, é tão bom estar na CEE", como cantavam os GNR em 1981. Foi introduzido o IVA, em substituição do Imposto de Transações. Na televisão passava a telenovela brasileira “Louco Amor” e já se falava em “Roque Santeiro”. Nas salas de cinema o “Regresso ao Futuro”, de Rober Zemeckis, era o filme mais visto. Os portugueses gastavam mais de 1,5 milhões de contos por semana em jogos e a maioria tinha a ambição de, a curto prazo, comprar uma casa. No Hospital de Santa Maria nascia o primeiro bebé proveta, mas a reprodução era combatida no audiovisual com o drama da “cassete pirata” e com a publicação do Código do Direito do Autor. Ramalho Eanes ainda era Presidente e Cavaco Silva primeiro-ministro. De norte a sul, o país estava em campanha para as presidenciais, as mais disputadas do pós-25 de abril. Soares era fixe, mas Freitas teve mais votos à primeira. À segunda, Álvaro Cunhal apelou aos comunistas para tapar a foto do histórico socialista com uma mão e votar com a outra. E ainda íamos em fevereiro.
É neste turbilhão, num Portugal em mudança e herdeiro de uma geração de ideais, que nasce “1986”. A nova série da RTP, pensada por Nuno Markl, retrata um grupo de jovens lisboetas — Tiago, Marta, Sérgio e Patrícia — através da celebração cómica do espírito de uma década. Entre maus penteados, êxitos pop de qualidade discutível e um Romeu e Julieta de Benfica. Qualquer semelhança com a realidade, não é coincidência. São memórias.
Antes da estreia, que hoje acontece pelas 22h00 no canal público, o humorista e guionista falou com o SAPO24.
Começou tudo por volta de 2001 com a ideia de algo que tanto podia vir a ser uma curta-metragem ou um filme. O título, esse, era certo: ”O videoclube”. Uma homenagem às incursões ao videoclube e à mística das VHS. A ideia ficou a marinar, “guardada numa pasta”. Se és jovem e estás a ler isto, era mais ou menos como fazer uma subscrição da Netflix, mas que te obrigava a sair de casa e a desejar que alguém não tivesse alugado o filme que tanto querias ver.
Mas a história que andava muito à volta de um miúdo que se apaixonava pela funcionária do videoclube evolui. E com o avançar do tempo, com o sucesso da “Caderneta de Cromos", na Rádio Comercial, a possibilidade de fazer dela uma série de televisão “ganhou forma”.
"Em 2016 apresentámos a ideia à RTP para ver se estavam interessados. E aconteceu.”
“O videoclube” deu então origem a “1986”, a série.
As eleições presidenciais, Soares vs. Freitas do Amaral, dão o mote à história. As eleições "mais pop de sempre", como lhes chama o guionista, não só "moldaram o país e as relações entre pessoas" como "têm um enorme potencial cómico". Por isso, são o pano de fundo por excelência de uma intriga que o autor gosta dizer que tem tanto de Shakespeare, com de um Romeu e Julieta de Benfica, como de John Hughes (de "Pretty in Pink" ou "Breakfast Club"), uma das grandes influências da série.
Em televisão, conta, “já tinha feito coisas parecidas com séries de ficção, se pensarmos no ‘Paraíso Filmes’ [com António Feio e José Pedro Gomes] ou na ‘Rádio Calipso’, no Canal Q”. O desafio, desta vez, era o de “contar uma história em 13 partes e criar um arco narrativo do primeiro ao último episódio e pequenas narrativas dentro dessa maior”. E isso era algo que, assume, “não conseguiria fazer sozinho”. “A tarefa titânica” levou-o a recrutar a criatividade de Ana Markl, sua irmã, a experiência de Filipe Homem Fonseca e a atenção ao detalhe de Joana Stichini Vilela, autora da coleção de livros "LX60", "LX70" e "LX80", que teve na série o papel de consultora histórica.
Um passeio pelo passado a quatro memórias
O trabalho foi “muito orgânico”. “Passeios pelo passado” à base de sortido de húngaros — “todos nós saímos mais gordos”, brinca. Reuniam-se várias tardes por semana em casa da sua irmã a discutir “as narrativas da série”. Depois, dividiam o trabalho por todos, a partir da base que tinham: "tu escreves isto, tu escreves isto e tu isto”. No fim, reuniam para afinar o trabalho.
Por essa razão não assinaram episódios individualmente. “Todos nós contribuímos para aquela amálgama de histórias. Eu dei o pontapé de saída, mas todos fomos construindo a história. Cada um com as suas experiências, mais os jornais que a Joana nos trazia da Hemeroteca. Páginas e páginas. Ficámos a saber que séries é que a RTP passou em cada dia e como estava o estado do tempo."
“1986” tem a sua dose autobiográfica, mas mais do que isso é o retrato de uma década. Será fácil para quem assistir “reconhecer-se em várias personagens e não apenas numa em particular, até porque elas resultam também de experiências cruzadas de cada um nós”.
Mas Nuno Markl confessa: “Eu era muito o Tiago. E o pai do Tiago é também muito inspirado no meu, só muda a profissão”. O pai de Nuno era crítico de arte, o pai de Tiago de cinema, ambos comunistas. “Há ali uma dinâmica entre os dois que é muito familiar. Há aquela regra que diz: ‘escreve sobre o que sabes’. E resulta”.
No entanto, a narrativa é quase a de “uma realidade alternativa” relativamente ao que viveu. O Tiago e o pai vivem sozinhos um com o outro, porque a mãe morreu. Para enriquecimento da relação entre os dois, e para que houvesse um crescente e uma descoberta mútua, Nuno achou que era mais interessante matar a mãe. “A mãe da personagem, não a minha própria mãe. Tive de lhe explicar para que ela não ficasse magoada. No início ela chegou mesmo a ficar muito alarmada: ‘Então tu mataste-me?’. ‘Calma, calma’”, brinca o humorista.
“A minha mãe era uma espécie de quebra de eventuais barreiras de comunicação que havia lá em casa. E por isso achei mais interessante que não houvesse essa personagem”, explica.
Engane-se, porém, quem pense que esta é uma série exclusiva a quem viveu este período. “Vai dizer algo a quem viveu aquela época, mas, se tudo correr bem, vai dizer algo aos jovens de hoje”, defende o guionista.
“A Rádio Comercial fica perto da Escola Secundária Maria Amália e às vezes até via os miúdos a debater a série 'Stranger Things', que se passa numa época que não é a deles. Um dia ouvi uma miúda dizer algo que para mim foi espetacular: ‘eu adorava ter vivido nos anos oitenta’. E pensei cá para mim ‘ótimo público para a série, que bom’."
Benfica, 1986
Nuno gosta da ideia de ter uma máquina do tempo. “Ir lá atrás mas depois voltar”, confessa. “Gosto muito do presente, mas visitando sempre o passado.”
E visitar o passado significa também regressar aos sítios que nos deixaram uma marca. E para Nuno Markl só havia uma opção: Benfica. “1986” tinha de ter como pano de fundo a freguesia lisboeta. Da Escola Secundária ao Cinema Turim.
"Quando estava a escrever a série, imaginava zonas específicas da escola Secundária de Benfica onde as coisas se passavam. Partilhei com o Henrique Oliveira [ex-Táxi], que realizou a série, e que gostou da ideia. Mas depois, por uma questão prática, ele achou que seria preferível filmar tudo em Loures, onde eram os estúdios. E eu fiquei naquela. ‘Ahhhh, ok, está bem’. Um dia fomos dar uma volta por Benfica e de repente o Henrique apaixonou-se pela zona e percebeu exatamente de que maneira é que os guiões a espelhavam”.
A escolha dos “miúdos” foi fácil. Nuno conheceu "Tiago", Manuel Moura e Silva, num sketch no Liceu Camões, e pensou logo que seria o tal. "Vi este rapaz com uma personagem cómica incrível e ao mesmo tempo parecia ter o mesmo pendor para o desastre e inadaptação que eu hoje tenho, aos 46". Com os restantes teve uma "boa ajuda" da Patrícia Vasconcelos, mas todos “são especiais e bastante carismáticos”.
Para a construção das personagens, a música teve uma importância maior. "Para cada uma delas dei-me ao trabalho de construir uma mixtape. Vá, o Filipe fez a do heavy metal, que ele é que é o perito. E assim todos têm a sua música. Isso ajudou-os, para além do guião, a entrarem no espírito. É como costumo dizer, consegue-se conhecer as pessoas pelas músicas que ouvem".
Sob a coordenação de João Só, com quem Nuno Markl já tinha trabalhado n"As Baladas de Dr. Paixão", na Rádio Comercial, ou no "Tele-Baladas", no Canal Q, nasceu uma banda sonora original de "canções novas que soam a clássicos". O convite foi feito a alguns músicos em tom de desafio: entre os quais, Ana Bacalhau, que "podia ser uma espécie de Cyndi Lauper"; Rita Redshoes, "qual Siouxsie and the Banshees"; ou David Fonseca, "algures entre os Smiths e os Echo and the Bunnymen". Ideia editada em CD e vinyl (claro), que vai subir ao palco do Altice Arena, em maio, em benefício da Associação Novo Futuro. Do alinhamento do concerto estão prometidas “as canções originais da série e outros tantos clássicos da época”.
A série de 13 episódios estreia hoje, dia 13. Não por superstição, mas por razões de calendário. E todos os episódios estarão disponíveis de seguida na RTP Play, "porque há claramente dois públicos diferentes e já não é toda a gente que espera uma semana para ver um novo episódio. Até porque no intervalo aparecem seis novas séries", explica.
Uma segunda temporada já está pensada. "Temos toda uma ideia definida para explorar o verão de 86 e, claro, aparecimento do gelado Calippo". "Agora é só ver se isto resulta e se a RTP está interessada em voltar a fazê-lo", termina em tom de desejo.
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