Todos os anos, um novo fevereiro. O fevereiro de Salvador, o fevereiro do Rio, o fevereiro do Brasil. O fevereiro do Carnaval, da purificação e da alegria.
"Fevereiros", o documentário chama-se fevereiros. O plural está ali para que seja também múltiplo o significado que cada um encontra.
Não é um mês escolhido ao acaso e não é uma artista escolhida só porque sim. Fevereiro é Carnaval e Bethânia é Carnaval e Brasil. Porquê? Porque é um dos grandes nomes dentro e fora do país, porque reza a Nossa Senhora e a Oyá, porque vem da Baía mas foi no Rio de Janeiro que a sua história de vida foi contada por uma das mais míticas escolas de samba, a da Mangueira, que assim voltou a vencer um desfile que há 14 anos perdia. Uma história demasiado boa para falar do que é o Brasil hoje para que um realizador pudesse perder essa oportunidade.
E é assim, como quem dá a mão à letra do samba-enredo que foi hino em 2016, que nos deixamos guiar pelo mundo de Maria Bethânia, do Carnaval do Rio e das celebrações religiosas da Baía.
É ele, Márcio Debellian, o realizador do documentário, que nos abre a porta para este mundo quando conversou connosco na varanda do cinema São Jorge, em Lisboa, depois da projeção do filme na 1.ª Mostra de Cinema do Brasil, a 22 de julho.
“Raiou... Senhora mãe da tempestade, A sua força me invade, o vento sopra e anuncia”
Quando, em 2015, soube que a Mangueira ia homenagear a Bethânia, Márcio Debellian não deixou escapar a oportunidade. “Isto é grande, isto tem de ser feito. A Mangueira é a escola de samba mais popular do Brasil. E a Bethânia a nossa grande diva”, diz, num tom de voz que ganha fôlego a cada palavra.
“Em 2016, celebrou-se o centenário do samba”, continua, empolgado, “e, cem anos depois, uma baiana ia ser homenageada pela Mangueira”! Era um acontecimento que precisava de ser registado.
“Como foi trabalhar com Maria Bethânia?”. A pergunta vem do público, no final da sessão.
“Com muito cuidado”, responde o realizador, provocando risos e sorrisos na plateia. “Eu queria respeitar [o espaço da artista]”, acrescenta Debellian , que reconhece que sentiu que estava perante um momento imperdível.
Dois anos depois, o entusiasmo ficou como uma impressão digital em cada plano do filme: uma conversa com Maria Bethânia vai-nos aproximando, segundo a segundo, da artista. Há relatos de situações caricatas contadas por Caetano Veloso e Chico Buarque que provocam gargalhadas na plateia. Passagens essenciais para que o público relaxe e se identifique com a mensagem do filme; há imagens das agitadas celebrações do 2 de fevereiro em Santo Amaro da Purificação, terra natal da cantora, e do frenético Carnaval do Rio de Janeiro, que deixam saudades a quem já lá esteve.
“Oyá... Entrego a ti a minha fé (…) Oh, Minha Santa, me proteja, me alumia, Trago no peito o Rosário de Maria”
É incontornável: quando uma escola de samba se prepara para desfilar no sambódromo do Rio de Janeiro, precisa de escolher um tema. “A Mangueira podia ter escolhido vários caminhos; escolheu o religioso”, explica Márcio Debellian.
O sincretismo religioso que tão bem caracteriza Bethânia ganhou protagonismo. A composição da Mangueira foi, assim, uma harmónica combinação de catolicismo e candomblé - uma religião de raiz africana, praticada no Brasil, com particular expressão na Baía, em que existe um culto aos orixás, entidades divinas associadas aos elementos da natureza.
A opção acabou por permitir criar “um certo arco histórico” que liga o samba carioca ao samba de roda da Baía, com toda a carga religiosa que estas duas tradições carregam.
O título escolhido para o samba-enredo: Maria Bethânia: A menina dos olhos de Oyá. O nome do orixá de Maria Bethânia, Oyá, a divindade dos ventos e das tempestades. Mas Bethânia junta dois mundos, ela que é também devota de Nossa Senhora, como a própria partilha no filme.
A magia desta fusão não deixou o Rio indiferente: 14 anos depois, a Mangueira foi campeã outra vez. Na plateia do São Jorge, em Lisboa, o público também se deixou levar pela força das imagens, e a emoção transbordou nalguns rostos.
“Faz da minha voz um retrato desse chão, Sonhei que nessa noite de magia, Em cena, encarno toda poesia, Sou abelha rainha, fera ferida, bordadeira da canção”
“Fevereiros” começou a ser sonhado em 2015, mas o percurso até ao seu lançamento, em outubro de 2017, não esteve livre de desafios.
Como por exemplo as filmagens incompletas na terra natal da cantora. Sem desgosto na voz, Márcio conta que, depois de ter filmado intensivamente as festas de Santo Amaro, percebeu que só tinha gravado uma parte das celebrações. A época festiva é tão rica em rituais que o realizador precisou de voltar no ano seguinte para captar os espaços e as cerimónias que não tinha conseguido filmar antes.
Mais tarde, já no Rio de Janeiro, a poucos dias do desfile no sambódromo, a equipa de realização ainda não tinha autorização para acompanhar a escola de samba. A situação acabou por se transformar numa história divertida, que o realizador partilhou com a plateia: o produtor do filme, descarado - e coberto de purpurina -, invadiu uma reunião da organização do desfile. A abordagem foi de tal forma extravagante que acabou por conquistar a simpatia dos organizadores e foi-lhes dado o acesso ao recinto.
Para além dos imprevistos, “o documentário tem a grande beleza de o irmos descobrindo ao longo do processo de trabalho”, conta o documentarista. Nada estava decidido à partida, ou como diz Debellian, "a dimensão que cada aspeto vai tomando” depende muito de como as “entrevistas rendem” e de como os espaços “se comportam”.
“De pé descalço, puxo o verso e abro a roda”
A palavra, a música e a poesia são a matéria-prima favorita de Márcio Debellian. Os seus filmes anteriores revelam isso mesmo. Para “Palavra (En)Cantada” (2009), por exemplo, o realizador convidou artistas como Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes e Martinho da Vila a contar a história do cancioneiro brasileiro. Em “(O vento lá fora)” (2014) podemos ver Maria Bethânia em exercícios de leitura dos poemas de Fernando Pessoa, sob a orientação da conceituada professora Cleonice Berardinelli.
Fernando Pessoa “foi uma paixão arrebatadora”, confessa, mas o realizador é fascinado também por outros autores da literatura portuguesa. Gosta “muito da poesia” de Herberto Helder e tem uma grande admiração por Alexandra Lucas Coelho, em especial pelos livros “Vai, Brasil”, “O meu amante de domingo” e “Deus-dará”.
Não será por isso de estranhar que o produtor de cinema tenha um novo projeto em mente em que vai trabalhar com um texto português, mas por enquanto é um segredo para guardar.
“Sou trapezista num céu de lona verde e rosa, Que hoje brinca de viver a emoção, Explode coração”
Mas regressemos ao "Fevereiros". “O filme é sobre como o Brasil é forte quando convive bem”, sublinha uma e outra vez o realizador. E onde vemos essa força? “Na alegria!”, responde, sem hesitar.
“A alegria é um sentimento muito forte, muito transformador. E o Brasil não pode perder isso”, é isso que quer sublinhar.
Era quase impossível que a política não tivesse espaço na conversa. Márcio é forte nas palavras que usa - afinal são o seu instrumento de trabalho. Está triste - “revoltado” mesmo - com a atual situação política no seu país. O retrocesso nas mentalidades, a “politização” do poder judicial, o regresso de preconceitos que pareciam “superados” são alguns dos temas que deixam o realizador indignado.
“Mais do que as posições conservadoras”, assusta-o o ódio: “O discurso de ódio em lugar nenhum do mundo deu certo”.
E por isso é que “o filme é amor, completamente amor”. “Olha todo o mundo festejando. Tanta gente diferente. No filme, passa um índio, passa um negro, passa um branco. Todos na mesma festa”.
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