Os últimos

[...]
Digo‐vos, camaradas de um caminho
Denso, mas não sem fadiga,
E também a vós, que perdestes
A alma, o espírito, a vontade de viver.
Ou ninguém, ou alguém, ou talvez apenas um, ou tu
Que me lês: lembra‐te do tempo,
Antes de a cera endurecer,
De quando cada um era como um selo.
Cada um de nós tem a marca
Do amigo que encontrou no caminho;
Em cada um o traço de cada um.
[...]

Primo Levi, Agli amici [Aos Meus Amigos],
16 de Dezembro de 198525

Os Tacca do Burgué

1.

Quando conheceu o prisioneiro 174 517, Lorenzo estava a construir uma parede com um outro rapaz da sua empresa, também ele de língua italiana. E, como era de esperar, apesar, ou mesmo por causa, das bofetadas que a vida lhe tinha dado – já falaremos disso –, ali estava a construir paredes «direitas, sólidas, com tijolos bem entrelaçados e com toda a cal necessária. Não o fazia por obediência a ordens, mas por dignidade profissional» – é Primo Levi que fala disso em Os Que Sucumbem e os Que Se Salvam. Quando viu pela primeira vez aquele minuto turinense, Lorenzo, que viera do Burgué, a antiga aldeia de Fossano, não se perguntou o que era e para quem teria servido o seu árduo trabalho de cão: um bombardeamento aliado acabara de arruinar «aquele emaranhado interminável de ferro, cimento,  lama e fumo» que era a «Buna», o grande projecto da Interessen-Gemeinschaft Farbenindustrie AG – mais conhecida como I.G. Farben –, fundada no Monowitz, a seis quilómetros de Auschwitz I. E, depois de ziguezaguear por entre os escombros que rangiam sob o couro dos seus sapatos de trabalho, chegou com o seu colega e compatriota, sem grande alarido, perto da maquinaria mais valiosa, que possuía divisórias altas e resistentes, de modo a protegê-la.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Estava a assentar tijolos a partir de um andaime, mudo, e aquele prisioneiro, com o n.o 174 517 tatuado no braço esquerdo, que viria a ser conhecido como Primo – um Häftling enfadonho, um prisioneiro quase invisível, tanto assim que ofegava de fome –, estava por baixo. A certa altura, Lorenzo falou-lhe em alemão, avisando «que a argamassa estava prestes a acabar», e que, por isso, trouxesse o balde para cima. O franzino jovem de 24 anos, que ainda não passava de um número, tentou abrir as pernas, agarrar a pega do balde com as duas mãos, levantá-lo e balançá-lo de forma a aproveitar o impulso e levar a carga toda para a frente e, a partir daí, fixá-la sobre o ombro. Mas o resultado, diga-se, fora no mínimo patético e assim o balde caíra no chão, entornando-se metade da argamassa. Lorenzo não se rira, mas pronunciara oito palavras, as primeiras da parte mais importante desta história, que ecoariam na cabeça de Primo. Não é difícil de imaginá-lo, durante horas intermináveis num dia do início estival de 1944, entre 16 e 21 de Junho, data em que a parte ocidental da Alta Silésia entrou em alerta máximo e seria sistematicamente bombardeada por raides cada vez mais imponentes nos meses seguintes.

«Ah, pois, é claro, com gente como esta», comentou Lorenzo quando estava prestes a descer da sua posição, antes de se deslocar para o mesmo nível da argamassa entornada, que já endurecia entre os escombros do estaleiro revirado pelas bombas dos Aliados, que atingiram as instalações industriais – fotografando depois o «planeta Auschwitz» a partir do céu – sem, no entanto, libertar os prisioneiros da pena por gás. O que é que queria ele dizer com «gente como esta»?

Referir-se-ia aos «escravos dos escravos»? «Ao degrau mais baixo» da hierarquia do Monowitz? Ou à burguesia incapaz de segurar um balde de argamassa, privilegiada até à entrada nesse mundo virado de pernas para o ar, que se tornou então a última das últimas? Sejam qual forem as nossas lentes, esta frase exala desprezo, ou compaixão: e é o próprio Levi que no-lo diz. Ao mesmo tempo, é um curto-circuito; quem sabe quantas vezes, suponho que não poucas, Lorenzo a ouvira dizer? Ele, como veremos, era um pobre alcoólico, um arruaceiro. Podia ser alguém que até fazia bem o seu trabalho, mas não se pode confiar em «gente como esta». Explora-se bem, até que, aos 40 anos, começa a perder o seu vigor e a sua concentração – depois, quando já não é necessário, deita-se fora.

Em todo o caso, não foi certamente um primeiro impacto aconselhável entre os dois, tendo em conta a catástrofe provocada por aquele operário 174 517. No entanto, Primo Levi impusera-se à vista de Lorenzo devido à sua curiosa reacção ao ouvir falar italiano, depois daquela ordem ríspida que emitira num péssimo alemão. Aliás, fizera-o com um sotaque piemontês muito reconhecível, criando assim uma brecha naquela espécie de feitiço que prendia todo o ser humano ao seu lugar, no universo ferozmente grotesco que era o Lager. Lorenzo reconhecera-a de perto, essa mão-de-obra masculina não qualificada, e isso bastaria por si, embora muitas vezes não bastasse de todo. Apesar de os internados de outras nacionalidades também terem tido a oportunidade de estabelecer contactos com o mundo exterior, por exemplo, através dos trabalhadores forçados do Serviço de Trabalho Obrigatório francês, os escravos eram de facto para os civis – incluindo, naturalmente, os trabalhadores como Lorenzo – «intocáveis». E assim deviam permanecer, quaisquer que fossem as circunstâncias: «Os civis, mais ou menos explicitamente, e com todas as nuances que se situam entre o desprezo e a compaixão, pensam que, para termos sido condenados a esta nossa vida e para termos sido reduzidos a esta nossa condição, devemos ser culpados por alguma falha misteriosa e muito grave», recordaria Primo Levi.

Será que Lorenzo pensou assim, no momento em que reparou nele? Penso que não, porque ele não distribuía culpas de ânimo leve, porque sabia que os acorrentados são quase sempre os miseráveis, enquanto o poder muda de sapatos de três em três semanas – e porque não sei nada do que ele possivelmente disse nas horas que se seguiram, e penso que seja impossível sabê-lo. Lanço o palpite, tendo já adivinhado algo da sua personalidade a partir de uma quantidade razoável de fontes, de que ele não queria procurar palavras, mesmo nos dois ou três dias seguintes: era mais provável que estivesse a moer-se em pensamentos, com um olhar algures entre o perdido e o sisudo, indecifrável, como o que revelam as fotografias que chegaram até nós – julgo que só haja duas. A primeira veremos em breve, a outra é esta.

Desprezava-o, aquele homem que quase desapareceu, à beira da morte? Tinha pena dele? Temia-o? Quase parece que sentimos o desassossego que surgiu com as leis raciais de 1938, que Primo Levi narraria em O Sistema Periódico, em 1975, recordando aquele primeiro «minúsculo mas perceptível lampejo de desconfiança e suspeita»: «O que pensas de mim? O que é que sou para ti?».

Livro: "O Homem Que Salvou Primo Levi"

Autor: Carlo Greppi

Editora: Guerra e Paz

Data de Lançamento: 28 de janeiro de 2025

Preço: € 19,45

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Ainda precisamos – sempre – de vislumbres de Levi, que sabia tecer habilmente as palavras e os conceitos úteis para fazer compreender a alma humana. Neste caso, referimo-nos precisamente ao olhar dos trabalhadores civis sobre os «escravos dos escravos», os prisioneiros judeus que, depois, através de marchas ordenadas e em uniformes listrados esfarrapados e bonés, iam para a Buna trabalhar, se é que se possa falar de trabalho:

Ouvem-nos falar em muitas línguas diferentes, que não compreendem, e que lhes soam grotescas como vozes de animais; vêem-nos ignobilmente subjugados, sem cabelo, sem honra e sem nome, a cada dia espancados, a cada dia mais abjectos, e nunca lêem nos nossos olhos uma luz de revolta, ou de paz, ou de fé. Conhecem-nos ladrões e malfeitores, andrajos enlameados e famintos, e, confundindo o efeito com a causa, julgam-nos dignos da nossa abjecção.

Para fotografar o momento em que esta história foi despoletada e se tornar algo mais do que só uma linha num arquivo enterrado, por muito que se tente juntar num só desenho os quilómetros percorridos de cabeça baixa desde a infância e aquele momento em que o olhar de Lorenzo tentou, no entanto, fazer sentido e vagueou à procura das palavras certas para depois as dizer, seria preciso primeiro admitir que nas vidas perdidas, talvez mais do que noutras, é o acaso que joga as suas melhores cartas. Uma imagem, então, impõe-se: Lorenzo e Primo pertenciam, muito simplesmente, «a duas castas diferentes», e podiam, muito simplesmente, nunca ter olhado um para o outro. Nas suas vidas anteriores, acima de tudo, e depois ali, em termos completamente invertidos, onde o privilégio era a chave-mestra de todos os dias. Primo estava destinado a morrer, se não lutasse pela vida a cada minuto, e Lorenzo a viver, se não se metesse em sarilhos.

A posição de superioridade na disposição espacial daquele momento e na hierarquia do Lager, naquele longo período sem se darem conta da existência um do outro apesar de estarem muito perto, era, por assim dizer, um contrapeso, dado o histórico em comum, no mundo do antes e do de lá em cima. Enquanto em 1944 o privilégio estava no chão que ele pisava e no qual tinha cuspido tanta poeira, agora, o prisioneiro 174 517, Primo Levi, que na sua vida desaparecida era o burguês de boa fortuna e o jovem licenciado em química, era, lá no fundo do espírito humano, um escravo como milhares de outros. Tal como outros 11 600 trabalhadores da I.G. Farben nesse ano, desempenhava todo o tipo de tarefas extenuantes para construir a Buna-Werke, a fábrica de produtos químicos do campo. Contudo, era frequentemente um trabalho «sem objectivo» – o seu, o deles –, uma actividade que esgotava todas as fibras vitais de quem o realizava, até à morte. Quer chovesse muito ou nevasse pouco, quer o vento soprasse as cinzas para longe ou o sol quase desse a impressão de as poder reanimar, tal como milhares de tantos outros, ele escavava, enterrava, levantava, deixava cair, classificava, reunia, até as suas veias e artérias estarem para rebentar, e levava com uma pá na cabeça de um Kapo ou de qualquer pessoa proeminente se não conseguisse continuar. Era preciso reafirmá-lo, o poder, e era preciso aniquilá-lo, aquilo que nos torna homens e nos faz acreditar podermos ser inflexíveis. Mas Primo não pediu ajuda a Lorenzo naquele dia. Suponho que assim foi porque não tinha, na altura dos acontecimentos do Verão de 1944, «uma ideia clara do estilo de vida e das vontades destes italianos», que antes eram sobretudo pedintes no mundo, mas que estavam ali à superfície ao mesmo tempo que ele se afundava junto de milhares de outros mendigos, da e na própria história. No entanto, bastava um punhado de palavras, mal medidas, na balança da linguagem comum para quebrar o feitiço e romper as cadeias do contágio do mal: é assim que «as armas da noite vencem», já diria a sabedoria de Levi.

Pois bem, é verdade que Lorenzo não poupava nas palavras, mas estas foram proferidas após o mal-entendido inicial e desajeitado.

«Olha que estás a correr riscos, ao falar comigo», disse Primo. «Estou-me nas tintas para isso», respondeu-lhe Lorenzo.