
1 de setembro
No cimo da rua estreita, por entre os campos e as vinhas, o ar tremeluzia sobre o asfalto. Liss conduzia o velho trator de caixa aberta vagarosamente, colina acima, e o ar parecia-lhe feito de um tipo de água mais líquido do que a água normal; mais leve e movediço. Água estival. Bebê-la, apenas com os olhos.
Nos campos ceifados, brilhantes do restolho, subsistia a presença do trigo pelo odor avassalador que emanava a palha; poeirento, amarelo, farto. O milho começava a secar e o seu rumorejar na leve brisa de verão já não soava a verde, mas enrouquecia nas orlas, sussurrante.
A tarde estava quente e o céu, alto, mas, desligando-se o trator, tornava-se subitamente percetível que, agora, havia menos pássaros a chilrear no ar e os grilos cricrilavam mais alto. Liss via, cheirava e ouvia que o verão se aproximava do fim.
Era uma boa sensação.
Não havia ninguém a correr atrás dela. Ninguém a persegui-la. Ninguém a entrar num automóvel com a intenção de percorrer lentamente os caminhos de terra por onde ela andava havia duas horas; sempre a subir nos últimos três quartos de hora. E, sinceramente, porque o fariam? Não era como se tivesse de se apresentar algures, de hora em hora. Se bem que... essa experiência, já ela a tivera.
Sally parou e voltou-se. Lá em baixo, banhada pelo sol, estendia-se aquela paisagem pavorosa. Dez mil campos cultivados com uma coisa qualquer, espraiando-se na linha do horizonte, envoltos ainda numa cerrada neblina estival, a cidade, em cuja periferia ficava a clínica. Num sítio bonito, no meio do verde. Com um caminho ladeado de árvores. Com um caminho devidamente ladeado de árvores que se estendia até ao portão. O caminho ladeado de árvores tinha sido, de alguma forma, importante para a sua mãe. Como se as árvores fossem uma espécie de garantia de que ali proporcionavam tratamentos particularmente bons.
Ela sentou-se na relva, na margem do caminho de serventia. Aquilo não era bem uma estrada, compunha-se antes de placas de cimento, cada uma com exatamente oito passos e meio de comprimento. Ela contara os passos, porque era importante não pisar as juntas. E agora, sentada na berma, puxou os joelhos para si e envolveu-os com os braços. Estava calor. Ela parara ao fim de alguns quilómetros, mas o tipo que lhe dera boleia saíra-lhe cá um parvalhão. Não fechava a matraca. Pergunta atrás de pergunta; e as que não fez ouviam-se nos intervalos. De onde és? Como te chamas? O que tens feito? Vais para casa? Já estás de férias? Serei um parvalhão irritante e imbecil? Darei eu boleia a raparigas, por- que me tenho como um ser altamente sociável, mas, na verdade, o que quero é levá-las para um sítio qualquer onde lhes possa saltar para cima? Como é que te chamas, afinal? Diz lá.
A dada altura, ela puxou o travão de mão. E saiu do carro. Não precisava daquilo. Não naquele dia. A bem dizer, nunca. Para mais, preferia ir a pé. Subir a colina, apesar da brasa que se fazia sentir. Uma brasa insuportável. Uma brasa insuportável. Sally repetiu as palavras para si, apenas para ouvir a sua própria voz, que ficara seca por causa do ar quente. Tirou a garrafa de água da mochila. Estava quase vazia. Na encosta ao lado, havia umas macieiras dispersas, carregadinhas de maçãs, que talvez até matassem a sede, mas ela não ia cair nessa. Hoje não era dia de comer. Logo hoje. Ela detestava ter de comer quando os outros diziam ou porque era assim que se fazia. Comer porque era de manhã. Ou de tarde. Ou de noite. Ou porque se tinha fome. Ela queria comer, quando lhe apetecesse comer, ora essa. Queria beber, quando lhe apetecesse beber. Ninguém compreendia.
Bebeu os últimos dois goles da água choca e tornou a enroscar a tampa na garrafa vazia. Havia uma aldeia no cimo da colina. De certeza que ali alguém lha poderia encher. E se não enchessem, pois não enchiam.
Levantou-se, pronta para prosseguir a subida. Ainda não era tarde. Mal passasse a aldeia, poderia procurar um sítio para dormir. O tempo ainda estava quente e ela tinha... Só agora ocorria a Sally que nunca dormira verdadeiramente ao relento. Claro que já dormira numa tenda, dantes, todos os anos no mesmo parque de campismo em Itália. Com outras dez mil famílias, que também iam passar as férias de Pentecostes a Itália. Tinha uns pais espanto- sos, ela! E imaginativos. Por outro lado... dormir ao relento talvez não passasse de uma ideia romântica. O mais provável era que lhe entrassem formigas no nariz e nas orelhas. E também havia carraças. Mas talvez encontrasse um celeiro ou assim.
O caminho de terra ia dar à estrada da aldeia, que subia a pique, muito mais íngreme do que o esperado, passava por umas casas rurais e terminava, ao fim de uns cem, duzentos metros, na estrada principal. Volvidos dez minutos, chegou finalmente ao cume e parou por uns instantes para se orientar. A aldeia não era grande; de onde estava, eram apenas alguns passos até à saída da povoação. A paisagem rural era a perder de vista. Havia turbinas eólicas dispostas em fileiras desordenadas pelos campos; as pás giravam devagar, movidas pelo vento de fim do verão, que, ali em baixo, mal se fazia sentir. Felizmente, havia as turbinas eólicas. Era tudo tão idílico, caramba, que teve de se controlar para não gritar. Se pudesse, ter-se-ia agachado no meio da estrada e mijado ali mesmo. Só para sujar alguma coisa.
Devia ter voltado para a cidade. Mas havia sempre tanta polícia por lá. Além disso, não queria encontrar gente conhecida. Havia muito tempo que deixara de querer estar com pessoas conhecidas. Mesmo antes da placa com o nome da povoação, passou por um quintal, onde um aspersor de relva lançava jatos de água cansados sobre os canteiros. Sem olhar á volta, Sally trepou a cerca, puxou a mangueira do aspersor e encheu a garrafa. Depois de a encher, deu ainda uns goles, diretamente da mangueira, atirou-a para cima da relva e, com um salto, tornou a descer para a estrada.
Liss tinha soltado o reboque, porque não era possível virar o trator, com ele engatado, no carreiro entre as videiras. Era mais prático desatrelá-lo e manobrá-lo manualmente. Mas, quando o rodou, uma das rodas dianteiras resvalou para a valeta entre o caminho e o campo e, agora, a barra de engate encontrava-se num angulo tão inusitado entre as videiras que ela não conseguia aproximar o trator o suficiente para a acoplar e puxar o reboque. A roda estava perfeitamente encaixada na valeta, impossibilitando a rotação da barra de engate. O reboque não era assim tão grande que ela não o conseguisse movimentar numa estrada plana, mas só a sua força física não bastava para o tirar sozinha da valeta. De repente, sem saber porquê, deu por si a pensar em Sonny. No jovem Sonny de antigamente, não no outro. Ele pelava-se por coisas deste género, pois compraria-se na sua própria força. Quando sucedia alguma coisa assim, com a caravana, por exemplo, ele saltava para a valeta e pressionava o corpo contra a caravana; Liss acionava o pedal com o pé, com suavidade, enquanto Sonny empurrava com todas as suas forças, até a roda ficar novamente livre.
Livre.
Liss ouviu a palavra fazer eco na sua cabeça e endireitou-se, piscando os olhos involuntariamente ao olhar para baixo. As sombras das folhas de videira eram nítidas, desenhando contornos definidos, azulados nas margens, sobre o cimento claro do caminho. Quando tornou a erguer o olhar, teve de proteger os olhos do sol, que agora incidia de viés. Era uma paisagem imensa. O rio, até onde a vista alcançava, produzia o efeito de um cinto reluzente. Ela estava livre, disse de si para si. Podia ir para onde quisesse. Puxou o reboque uma vez mais com convicção. Foi então que viu a rapariga no caminho de serventia.
Sally só reparou na mulher quando esta se ergueu. Alta. Magra. Vestia um... o que era aquela coisa azul? Uma bata de trabalho? Parecia que lhe cobria todo o corpo... como se chamava aquilo? Um fato-macaco. Um vestido-macaco. E usava também um lenço na cabeça. Trajes de quem vive no campo. Super na moda.
Ela teria preferido escapulir-se por entre as videiras, mas faze-lo teria sido estranho, porque a mulher já a tinha visto. Sally estugou um pouco o passo, assim que percebeu que a mulher a fixava. De uma forma peculiar. Não curiosa. Simplesmente... como se observa um animal? Como quem contempla um escaravelho a atravessar a estrada. Um daqueles que cintilavam nos seus bonitos tons esverdeados com matizes douradas, que eram, na verdade, besouros-do-esterco. Eram assim as coisas. Tudo o que parecia ouro alimentava-se de merda. Ela passou rente ao reboque, atravessado no meio do caminho, e, ao passar pela mulher, baixou levemente a cabeça, num gesto mecânico.
— Podes segurar aqui?
A pergunta foi tão inesperada que Sally se sobressaltou. Foi uma pergunta feita com toda a calma, de forma genuína, sem qualquer exigência. Não ocultava nenhuma ordem — como acontecia com a maioria das perguntas. «Será que podes dar uma ajudinha?»,
«Não queres comer nada?», «Passas-me a água?». Eram perguntas idiotas para as quais a única resposta possível era: Não. Não quero. Só faço isto porque vocês são mais fortes do que eu. Porque são vocês que mandam. Porque, seja por que razão for, podem obrigar-me a fazer coisas para vocês. Mas: Não! Não quero! Nem vale a pena perguntarem! Não se comportem como se eu tivesse escolha! Ordenem-mo e pronto. Digam: Sally, sua imbecil, ajuda-me. Sally, não te suporto, odeio-te a ti e aos teus pais, porque nesta clínica só recebo metade do que o teu pai ganha, mas sou eu quem decide se comes ou não. Sally, Sally, Sally, Sally, Sally, passa-me a porcaria da água, sua grande cabra. Mas a isso não se atrevem vocês.
— Podes segurar aqui?
Era uma pergunta a sério. Uma pergunta com uma resposta de «sim» ou «não». Ela tinha ficado especada, mas agora voltou-se e olhou para a mulher alta. E para o reboque, que tinha uma das rodas enfiada na valeta.
— Sim — respondeu. — Quer que empurre?
A mulher fitou-a por breves instantes, mas não comentou que Sally era demasiado magra ou escanzelada. Não empregou nenhuma das palavras que os outros costumavam usar para dizer o que queriam.
— Tens força? — quis saber, nada mais.
Novamente uma pergunta de que Sally não estava à espera. Ainda nunca ninguém lhe perguntara se tinha força. Nunca, na sua maravilhosa e deslumbrante vida. Que género de mulher era esta?
—Mais ou menos.
— Então, vai rodando a barra de engate para a esquerda, um bocadinho de cada vez. Eu vou tentar baloiçar a roda, até a soltar. A mulher já tinha ido para trás do trator e apoiado as costas no taipal do reboque, quando reparou que, lá à frente, não se operavam quaisquer movimentações. Virou-se para ela e, após um breve momento, durante o qual tornou a olhar para Sally daquela maneira peculiar, apontou para a peça metálica em forma de garfo com um furo na parte da frente.
— Isso aí é a barra de engate.
Rodou novamente o corpo, apoiou as costas no reboque e começou a balançá-lo. Sally levantou a barra. Sentindo a cadência, começou a puxar sempre que a mulher empurrava e a empurrar sempre que ela afrouxava. A roda baloiçava cada vez mais contra as paredes da valeta, para cima e para baixo, e eis que o reboque se soltou de repente, e Sally teve de se impulsionar para a frente para não cair. A mulher agarrara-se ao taipal, mantendo o reboque na estrada.
Sorria de uma forma quase impercetível.
— Obrigada.
Sally anuiu.
— Sabes conduzir um trator? — perguntou ainda a mulher.
Sally, subitamente furiosa com a estupidez da pergunta, virou-se para ela.
— Parece-lhe que é coisa que saiba fazer? — respondeu bruscamente. — Tenho ar de quem tirou a porra da carta de condução? Pareço-lhe ter dezoito anos ou quê?
A mulher tinha parado de sorrir e fitava-a novamente como se o seu olhar viesse do mar ou do outro lado das montanhas; fosse como fosse, de um sítio bem longínquo.
— Não foi isso que perguntei — respondeu ela, pragmática, como quem responde a uma pergunta de verdade. E com calma, sem reprovação, acrescentou: — Mas não importa. Podes ir buscar-me duas pedras e pô-las debaixo das rodas dianteiras? Demasiado pequenas, não, por favor.
Sally hesitou. Aquela mulher não irradiava a serenidade da pedagogia social que predominava na clínica. Não tinha uma daquelas caras imperturbáveis que todos punham quando alguém gritava com eles, os insultava ou simplesmente se remetia ao silêncio. Uma cara em que dava vontade de cuspir.
Ela avançou para a valeta e olhou à sua volta. Por todo o lado, havia pedras esboroadas, como se as tivessem amontoado ali na berma. Certo, se calhar foi isso mesmo que aconteceu. Retiraram-nas da vinha, para não estorvarem. Ela escolheu uma; triangular, em forma de cunha, branca do pó, quente do sol. As arestas partidas eram agradáveis ao toque, quase afiadas. Ela enfiou a pedra por baixo da primeira roda, enquanto a mulher continuava pacientemente a segurar no reboque, sem tirar os olhos dela. Sally apressou-se com a pedra seguinte.
— Assim? — perguntou.
A mulher alta tirou as mãos do reboque.
— Isso mesmo — respondeu. — Obrigada.
Deu a volta ao trator, levou a mão ao motor e fez pressão para baixo. Sally ouviu o veículo arrancar, de uma forma incrivelmente vagarosa. Como um homem de idade que hesita dar os primeiros passos ao levantar-se de manhã, como se pudesse tombar a qualquer momento. Pelo ruído que o trator produzia, parecia que estava à espera de que alguém lhe desse primeiro umas palmadinhas nas costas. Mas pôs-se então em funcionamento e começou, de repente, aos soluços a um ritmo cadenciado. A mulher sentou-se, contornou o reboque com o trator e fez marcha-atrás com tanta habilidade que a barra de engate por pouco não engatou sozinha. Sally deu por si a pegar na barra e a levantá-la.
— Só mais um pouco! — gritou, tentando fazer-se ouvir por cima do ruído do motor. A mulher deixou o trator rolar dez centímetros para trás e a barra engatou. Sally fitou a pequena barra de ferro que estava presa a uma corrente fina, junto ao engate, tirou-a e enfiou-a nos olhais. Olhou para a mulher sentada no trator, que se virara no banco e lhe mostrava o polegar erguido.
— O pino de bloqueio também — pediu.
Sally inclinou-se e viu o pequeno pino que tinha de ser inserido num pequeno buraco na barra, para esta não deslizar para fora do engate. Parecia um gancho de cabelo desenxabido. Enfiou-o, recuando depois para o caminho entre o reboque e o trator. O trator deu um solavanco, a mulher ergueu a mão em jeito de despedida e Sally pegou na sua mochila. Quando o trator avançou aos sacões colina acima, por entre as vinhas, levantou um pequeno remoinho de pó. Sally caminhou lentamente atrás dele. Havia cachos de uvas pendurados nas vinhas. Muito mais pequenos do que aqueles que ela se habituara a ver lá em casa. Azul-escuros, cobertos por uma película branca. Arrancou uma uva e meteu-a na boca. Se fosse só uma, tudo bem, mas definitivamente não... não era lá muito doce. Sabia-se que ainda não estava madura pelo sabor, mas não era como as maçãs ainda verdes. O sabor já lá estava. Cuspiu a pele e prosseguiu caminho. Só ao fim de um bocado é que reparou que o trator estava parado cerca de cem metros à frente. Ouviu o motor au ralenti e viu a mulher sentada. O que é que ela queria mais? Caminhou um pouco mais depressa, ponderando se devia seguir pela vinha, metendo pelo meio dos campos, mas depois irritou-se consigo própria. Que raio? A tipa não a conhecia de lado nenhum. Quando passou pelo trator, viu que a mulher tinha enrolado um cigarro. Virou metade do corpo para Sally e disse, suficientemente alto para se fazer ouvir por cima do som do motor:
— Podes dormir na minha quinta, se quiseres.
O primeiro impulso de Sally foi fingir não ter ouvido. Como é que a mulher sabia que ela não ia a caminho de casa? O segundo impulso foi fugir. Ergueu os olhos para o trator. A mulher tinha acendido um fósforo, que agora aproximava do cigarro. Só depois é que tornou a baixar o olhar para Sally.
Que se lixe, pensou Sally. Que se lixe. Virou as costas para o reboque, subiu para uma das rodas e içou-se até à plataforma de carga. Não se sentou ao lado da mulher no trator. Ficou onde pudesse saltar para o chão a qualquer momento.
A mulher exalou uma baforada e pôs o pé no travão. O trator tossiu fumo. Sally sentou-se na superfície de carga, de costas viradas para ambos, mulher e trator, puxou as pernas para si e ficou a ver a aldeia que começava a tornar-se desfocada no ar tremeluzente, desvanecendo-se à luz cintilante do final de tarde, até deixar de se ver por completo. Seria perfeito se nos pudéssemos dissolver assim, pensou ela, no ar quente e na luz.
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