Rua do Carmo, Rua do Carmo
Mulheres bonitas, subindo o Chiado
Mulheres alheias, presas às montras
Alguns aleijados em hora de ponta
Olha como é, a Rua do Carmo
Olha como é, a Rua do Carmo
Nos idos anos 80, os UHF, popular grupo de rock português, colocou uma rua lisboeta no centro dos decibéis nacionais. A vitrina dos telediscos deu nova vida a esta calçada comercial, uma atividade pulverizada no primeiro quartel do século XX.
E uma das primeiras montras a iluminar este empedrado de acesso ao cosmopolita Chiado, no coração de Lisboa, foi a Joalharia do Carmo, sita no número 87 B.
Classificada como Loja com História pela Câmara Municipal de Lisboa, o espaço centenário, efeméride celebrada no passado dia 24 de janeiro, foi “uma das primeiras casas a encontrar morada neste lado da muralha do Carmo, onde o comércio tardou a chegar”, conforme se lê no site Lojas com História, vizinho de outra com loja com 100 anos para contar, a Luvaria Ulisses.
Permaneceu nas mãos da mesma família durante quase um século. Em 2020 mudou para as mãos do Grupo O Valor do Tempo. Dois anos depois, a especialização afirmou-se. Mergulhou na rica herança da ourivesaria nacional e deu palco a uma técnica manual e à mais transversal das artes da joalharia portuguesa: a Filigrana.
Ouro de 19,2 quilates. O Bastião da Filigrana de Portugal Certificada
“A Joalharia, historicamente, já comercializava (Filigrana) apesar de ser um bastião de alta-joalharia”, começou por contar Bárbara Sousa, responsável da Joalharia do Carmo, uma das marcas do Grupo O Valor do Tempo.
Na conversa com o SAPO 24, em plena Loja com História, Bárbara Sousa começou pelo fim, ou seja da história presente. “Ouro de 19,2 quilates, Filigrana totalmente manual. A joalharia do Carmo é isso mesmo, o bastião da Filigrana de Portugal Certificada. A 27 de outubro de 2022 converteu-se na arca da Filigrana de Portugal”, resumiu a história de dois anos deste ativo nas mãos de um grupo que gosta do Made in Portugal.
Apropriação feita, foi dado um passo de gigante após “o protocolo de cooperação com a ACertifica, entidade certificadora, e os municípios de Gondomar e da Póvoa de Lanhoso, assinado aqui nesta mesma mesa à entrada (aponta) da loja”, os dois grandes polos de produção onde a Filigrana é Património Cultural Imaterial.
Cada peça, um contraste e um cartão único
A Joalharia do Carmo é pioneira no projeto-piloto da Imprensa Nacional-Casa da Moeda - Certificado Digital UniqueMark® - que traz para era digital o processo de certificação dos metais preciosos.
O tema suscita curiosidade. “Na Contrastaria praticamos a forma de defesa do consumidor mais antiga do mundo sob aquela que é a reserva de valor mais antiga do mundo, o ouro e prata”, salientou Júlio Rodrigues, diretor adjunto da Unidade das Contrastarias e Fiscalização
Imprensa Nacional Casa da Moeda, S.A.“Toda a gente sabe que há umas marcas, de 1,5 milímetros e outras menos, mas poucos sabem o que significa. Há marcas para diferentes metais e diferentes toques (ouro que contém). A Contrastaria sempre fez isso, ver a pureza do ouro”, reforçou Paula Pedro diretora da Unidade de Contrastarias e de Fiscalização da INCM.
Faz uma leitura micro da atividade. “As marcas de Contrastaria são, por norma, cabeça de animais. Muda de 30 a 40 anos, agora é a cabeça de carneiro (antes era veado) virada conforme o peso do metal. Ao longo desse período acrescentamos elementos de segurança que só nós conhecemos para despistar a contrafação”, esclareceu.
“Cada peça pode ter duas marcas. Uma, oficial de contraste, só a Contrastaria pode certificar. Temos essa competência há 142 anos (inserida na Casa da Moeda) quando terminaram os contratos municipais de D. Luís I, a autenticidade foi transferida para a Casa da Moeda”, recuperou.
Explicação dada, os responsáveis centram-se no selo criado para a Joalharia do Carmo através da App oficial da Contrastaria, o Certificado Digital UniqueMark®.
“Quando as peças vão à Contrastaria para marcar associamos uma etiqueta e um cartão e um código único, não copiável”, revelou Júlio Rodrigues. “Cada peça tem o cartão identidade, a sua história, do artesão, o peso, toque e ainda damos a possibilidade para os retalhistas acrescentarem mais informação”, detalhou ainda.
Paula Pedro acrescentou a mais-valia do processo. “Trazer para a era digital a forma mais antiga de proteção do consumidor. Através de um código criptográfico, descarrega a app e lê-se tudo”. A rastreabilidade e legitimidade das peças é o outro lado proporcionado pela inovação. “Traz outra transparência e autenticidade”, destacou Júlio Rodrigues.
“Temos artesãos da Póvoa do Lanhoso, Gondomar e Ovar”
A conversa segue das marcas cunhadas pela Casa da Moeda para o trabalho exclusivamente manual dos artífices.
Bárbara Sousa recupera a prosa. No exato ponto onde tinha ficado. “Temos artesãos da Póvoa do Lanhoso, Gondomar e Ovar. Ovar entra como uma única unidade produtiva que tem Eugénia Seixas, a única produtora que está certificada, uma artesã que se inspira nas formas marítimas”, indicou.
“Trabalhamos com 16 unidades produtivas e convidamos mais para entrar no protocolo”, garantiu. E quem são estas unidades? “Mais mulheres, maioritariamente feminino”, registou. “Póvoa do Lanhoso, em maioria, são negócios de família, é geracional. Grosso modo, herdaram o negócio familiar”, frisou.
Aborda a relação da joalharia com os artesãos, a quem compram e encomendam as peças. “Aplica-se a história do preço justo, não regateamos preços com ninguém, somos o palco. Aplica-se a qualquer produtor e não há nada esconder. É verdadeiramente uma economia social”, asseverou.
Chama à narrativa uma artesã. “A família da Inês Barbosa vai na 6.ª geração de ourives, as filhas têm mestrado, não são artesãs de garagem, que também temos, atenção. Queremos igualar todos e dar a possibilidade a quem está na garagem de subir”, atestou. “A nível financeiro é diferente, há diferenças na parte produtiva, a Inês coloca a peça em 7 dias, enquanto outros podem demorar mais, mas abraçamos a diferenças, porque as oficinas não são todas iguais”, comparou.
Esta é uma arte produzida por mãos meticulosas. “É um trabalho minucioso, o tempo depende das peças, há o desenho, o esqueleto, mesmo a mais pequena tem um esqueleto e são faseadas”, particularizou. “Há peças manuais e feitas à medida. Um casal de noivos pediu botões de punho”, exemplificou.
A cor monocromática do ouro pode ser a linha visual, mas a diversidade de peças salta à vista. E de preços também. “Trabalhamos de portas abertas. Tudo o que é bonito é para ser visto e contemplado e temos joias de 25 euros a 12 mil”, explicou Bárbara Sousa. Uma questão de gosto e de bolsas.
As ilustrações que também contam a história
Tudo o que ali se mostra está certificado e não só. “Cada peça tem ainda um livro com ilustrações de Isabel Botelho, artista plástica que costuma trabalhar connosco, tem um traço característico”, contou.
“É um pequeno trecho para despertar a curiosidade de saber mais sobre a peça. Pedimos aos artesãos para nos abrirem as portas e contarem a suas histórias”, relata.
Munidos do rico conteúdo histórico e do labor, transmitem a oralidade a quem compra. “Contamos aos nossos clientes. As pessoas passam algum tempo aqui na loja e valorizam a narrativa, mais do que ver a peça e tocar, é saber o que está por detrás, as horas, o que se fez, a história da família”, destacou.
Júlio Rodrigues interrompe a conversa. “Há lojas com peças de Filigrana, mas isto é diferente. Dá garantia, tem toda a história por detrás. Havia artesãos a perderem emprego com a concorrência da Filigrana feita à máquina vinda da Ásia. Isto valoriza tudo, a venda, objeto e quem o faz”, salientou, referindo-se ao o Certificado Digital UniqueMark®.
“O que aqui está é único, feito à mão”
Bárbara Sousa retoma as rédeas do diálogo. “O que distingue uma pulseira de 20 mil euros. O que aqui está é único, feito à mão. É única. Levou 30 horas a ser feita, foi a Inês e as duas filhas que estão numa aldeia no Minho que estão a trabalhar com ela. É essa a narrativa que distingue e temos de oferecer ao cliente”, pormenorizou.
E quem é que entra pela porta adentro da centenária joalharia, perguntamos.“Turista”, responde sem hesitar. “O português nem sempre e tem épocas especificas”, diz.
Dentro do fluxo turístico que sobe ou desce a Rua do Carmo, o americano é quem se chega a frente na hora de comprar. “São apaixonados pela Filigrana. Entram já com a referência e a loja identificada por causa das redes sociais”, explicou. “Dão valor à história, temos clientes que ficam três horas na loja, de volta dos contrastes e das peças”, contou.
“Tínhamos umas cadeiras que foram para estofar e em breve abriremos na parte de cima (onde eram os escritórios) uma zona premium com outro tipo de atendimento. É para descansar lá em cima com outro tipo de apport”, prometeu.
“A decoração era tudo o que estava cá”
Por esta altura, sabemos quem faz, quem certifica, faltava saber o que ali estava quando para ali, para o número 87 B da Rua do Carmo, o grupo se mudou.
“A decoração era tudo o que estava cá”, afiançou Bárbara Sousa. O mobiliário é religiosamente o mesmo, tendo sido somente alterada a cor. As escadas de caracol continuam a contar a história, assim com os lustres em cristal Baccarat ou a mesa de mármore à entrada. Já “cá estavam”, certificou.
“Adicionamos os abajures, os livros são no nosso espólio, do Grupo e a caixa de música foi também adicionada por nós”, precisou.
Fora das quatro paredes da loja, a fachada Arte Nova desenhada pelo traço do arquiteto Norte Júnior mantém-se inalterada desde a sua edificação, nos anos 20 do século passado.
A conversa caminhava para o fim. Regressámos às primeiras perceções antes das portas se abrirem. Fomos convidados a sair da Joalharia do Carmo para ver a montra e falar de uma arte, Filigrana, arte que o nosso imaginário associa a paragens minhotas, no geral, e a Viana do Castelo, em particular.
“Quisemos trazer o Minho até a rua do Carmo"
Viajámos no tempo. As imagens de séculos a preto e branco, misturada com toques circenses, assalta a visão. Os olhos acompanham os movimentos do tapa e destapa de duas caixas. Quase que escutamos música e quase que rodopiamos a dançar, depois de o termos feito com os olhos. Sentimos alegria e jovialidade.
Parados, fixos no olhar, escutamos as explicações de Bárbara Sousa, responsável da Loja do Carmo, sobre a peculiar montra que pouco casa com o letreiro.
“Associamos a Filigrana às romarias da Nossa Senhora da Agonia em que as noivas e mulher minhota aparece engalanada e acabamos por associar Viana do Castelo como o berço, mas não é”, explicou. “As romarias é que acabam por ser a procissão da Filigrana”, explicou.
Sobre a aposta monoproduto na arte ancestral da joalharia portuguesa, em pleno Chiado, as razões são claras. “Quisemos trazer o Minho até a rua do Carmo. Na Filigrana o que vem à memoria é a noiva minhota, a mulher do Minho e o vira-minhoto. Quisemos tornar mais fun, divertido e hip hop e quebrar o peso que a joia tem de ser reservada a uma parte da população”, desvendou.
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