INTRODUÇÃO — EUROPA E PAZ
Em meados do século XVIII, o artista italiano Giovanni Battista Tiepolo pintou um esplêndido fresco, intitulado Alegoria dos Planetas e Continentes, no teto da residência palaciana do príncipe-bispo em Würzburg, Baviera. A obra, imponente sobre a escadaria monumental, era de cortar a respiração pela sua dimensão e grandiosidade, assim como pela riqueza dos seus pormenores. Uma das suas figuras mais fascinantes é Europa como Europa Regina, uma rainha ricamente vestida, deitada, representando a prosperidade da paz1. Embora não seja a personagem principal — Apolo, deus da paz, da inteligência e da beleza ocupa o centro da pintura —, está colocada mesmo acima do patamar das escadas, para que os visitantes olhem de frente para ela, ao chegar ao piso superior.
À primeira vista, este fresco representa a glória da Europa e o seu triunfo sobre os outros continentes. Existe, contudo, uma nota subtilmente subversiva: um touro domesticado, deitado ao lado da rainha. Que faz ali? Através da posição do touro, Tiepolo funde a representação majestosa de Europa-a-rainha com outra criatura mítica com o mesmo nome: uma jovem princesa fenícia a quem Zeus, disfarçado de touro, raptou e violou.2 Apesar de ambas as figuras estarem simbolicamente ligadas à Europa, as suas representações eram, em geral, distintas: O Rapto de Europa era convencionalmente representado como uma jovem sentada sobre um touro num cenário bucólico, abençoadamente ignorante do crime que estava prestes a acontecer.3 Na Alegoria dos Planetas e Continentes, Tiepolo altera este motivo convencional para politizar o seu significado: o touro é «bastante manso para ser uma vaca honorária», enquanto Europa já não é a rapariga inocente e indefesa, mas uma mulher madura, uma mãe para o seu povo, rodeada por artistas, homens instruídos, soldados e uma série de outras personagens, como que para sublinhar que a mulher outrora escravizada se vingara do bruto. De facto, o touro de Europa é presumivelmente uma representação dissimulada dos poderosos imperadores habsburgos do Sacro Império Romano, que tinham sido recentemente derrotados e forçados a abandonar as suas ambições de domínio das terras germânicas, de Espanha, da Europa e, na verdade, do mundo.4
Contudo, um touro domesticado é antinatural e, logo, inquietante: poderia voltar a atacar? De facto, o Velho Continente nunca foi tão alegremente pacífico como Tiepolo o retratou, nem os seus governantes foram sempre tão benevolentes para com os povos conquistados, especialmente os não-europeus. A história do continente foi de conflitos destrutivos quase contínuos desde a Idade Média. Na época em que Tiepolo pintou o seu monumental fresco, a Guerra da Sucessão Austríaca (1740–1748) mal acabara, e outro importante conflito, a Guerra dos Sete Anos, estava prestes a eclodir. Evidentemente, o artista italiano não pintou o Velho Continente como este era, mas uma versão idealizada. A maior parte das grandes guerras que já tinham acontecido podia ser reduzida ao desejo dos governantes de aumentarem as suas terras, desde o imperador habsburgo Carlos V ao rei Bourbon Luís XIV; as outras podiam ser atribuídas a disputas legais entre Estados que tinham de ser resolvidas através de duelos rituais entre dois exércitos.
Com a sua inquietante colisão entre Europa Regina e O Rapto de Europa, o fresco de Tiepolo tornou-se um precursor de uma longa tradição de alegorias anti-imperiais ou antiguerra (incluindo Guernica de Pablo Picasso) que explorou conscientemente a relação atormentada entre uma mulher e um touro. O agressivo animal, em todas as suas formas e atitudes, começou a simbolizar a conturbada política do continente europeu, dividido entre o Espírito da Paz e o Espírito da Guerra, entre a lei e a força das armas, a liberdade e a tirania, a civilização e a barbárie.5 Poucas obras de arte expressam esta tensão de forma tão viva como Europa depois da Chuva, de Max Ernst, pintada dois séculos depois do fresco de Tiepolo, durante a Segunda Guerra Mundial. Tendo emigrado para os Estados Unidos para escapar à perseguição nazi, Ernst representa o seu continente como uma surrealista terra inóspita após o Dilúvio, com edifícios em ruínas, vegetação apodrecida e corpos em decomposição, todos fundidos numa massa disforme. Ao fundo, Júpiter, o touro, ainda coberto de armadura, jaz enfraquecido, de olhos vazios. Europa, a princesa fenícia, fita tristemente a distância, como se contemplasse a queda do seu atormentador. À sua direita, um guerreiro ominoso, com cabeça de falcão, observa-a de cima com desprezo. Será Hórus (símbolo dos faraós egípcios), representando o caos da loucura da guerra?6 Que distância entre esta desolação apocalíptica e a glória do fresco de Tiepolo!
Na verdade, a distância não era grande: bastaram 20 minutos para um ataque aéreo britânico obliterar o Palácio de Würzburg, assim como 80 por cento da cidade circundante, deixando cinco mil civis mortos entre os escombros. E, contudo, como que para simbolizar a resiliência dos ideais de paz, a escadaria e o fresco de Tiepolo sobreviveram incólumes à terrível noite de 16 de março de 1945, graças à excecional robustez da sua estrutura arquitetónica. A partir dessa miraculosa sobrevivência, o resto do centro histórico de Würzburg foi penosamente reconstruído após a guerra. A invulgar personificação na arte da Europa, continente, como Europa, a figura mitológica, serve, claro, para transmitir os conceitos de beleza, fecundidade e o subtil poder de uma mãe. Recorda também intensamente, contudo, que a força interior dessa mulher cresceu em resposta à sua inerente vulnerabilidade à agressão e que o que lhe aconteceu podia perfeitamente voltar a acontecer. A tensão mítica de Europa com o touro transmite assim uma mensagem poderosa que enforma o tema central deste livro: a Europa apenas foi capaz de encontrar uma paz duradoura e a prosperidade depois de recusar vergar-se à arrogância dos impérios continentais que tentavam apreender territórios e riquezas pela força. Embora À Conquista da Paz seja um livro histórico, pode ser visto como um diálogo teatral em cinco atos que retrata a resistência dos impérios europeus enquanto tentam manter-se livres de conflitos armados, e esta é, de facto, a mais elementar definição de paz. Esta alegoria de Europa tem a vantagem de enfatizar as duas principais ameaças políticas da Europa continente — impérios continentais e guerras de extermínio mútuo — que não impediram, infelizmente, várias das suas nações de exportarem essas duas mercadorias sob a forma de impérios coloniais ultramarinos.
Mas poderá alguma vez existir uma solução viável para estes dois males? De que serviria um Estado procurar uma política externa pacífica, apenas para ser conquistado e subjugado por um qualquer império agressivo? Será que as guerras napoleónicas, duas guerras mundiais e a Guerra Fria não provam, conclusivamente, que a confiança e a cooperação internacionais não passam de utopias?7 Sabendo que os impérios funcionam constantemente com a política de «might makes right» [a lei do mais forte], apenas uma resposta parece possível: si vis pacem, para bellum — se queres paz, prepara-te para a guerra, como diz a máxima latina, atribuída ao autor romano da Antiguidade Tardia conhecido como Vegécio. A sua obra, Compêndio da Arte Militar, desfrutou de um extraordinário sucesso em finais da Idade Média, e as suas premissas continuam relevantes hoje em dia.8
Tudo isto parecia conduzir a uma conclusão óbvia, que mais tarde serviria de base à grande alteração na política externa norte-americana em 1945, após a morte de Franklin D. Roosevelt: em face de ameaças constantes, o pré-requisito fundamental para as liberdades e a paz dos cidadãos é manter para sempre um exército permanente, pronto para lutar. Em 1985, quando a Guerra Fria ainda não tinha acabado, Ronald Reagan referiu-se claramente a esta arreigada crença quando declarou perante o Congresso: «Sabem, apenas temos um complexo militar-industrial até um momento de perigo, e depois este torna-se um arsenal de democracia. Gastar em defesa é investir em coisas que não têm preço — paz e liberdade.»9 É importante notar, contudo, que a política externa americana entre 1917 e abril de 1945 seguiu uma doutrina inteiramente diferente: apesar da evidente recusa do Senado em ratificar o Pacto da Sociedade das Nações após a Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos ainda tinham por objetivo instalar a paz no mundo, substituindo o confronto militar por tratados internacionais e uma «maquinaria de paz» que tornaria a guerra ilegal ou desnecessária.
Este livro traça a história — desde os inícios do século XVIII aos nossos dias — de uma questão profunda e perturbadora: como é possível evitar guerras futuras e, ao mesmo tempo, garantir as liberdades de todos os Estados? Formular a questão nestes termos também implica aceitar que a guerra sempre fez parte da vida e que podemos ser forçados a aceitá-la de novo no futuro. Isto não significa, contudo, que essa seja uma condição desejável. Os Estados europeus elaboraram progressivamente uma doutrina que, não só rejeitou a assunção de que a guerra era inexorável, como veio a considerar a crença na sua inevitabilidade uma profecia autorrealizável. Esta doutrina afirmava que uma configuração internacional em que todas as grandes potências estivessem convencidas de que exércitos permanentes fortes eram a condição para a paz e a liberdade, nunca estariam num estado de verdadeira paz, mas sempre, na melhor das hipóteses, num estado de trégua armada — e manter-se-ia sempre presente o risco de reiniciarem o círculo vicioso de uma corrida às armas, que podia então degenerar noutro conflito, destruição e empobrecimento geral. Esta teoria arrojada, nascida na viragem do século XVIII, tinha como nome original pax perpetua, ou paz perpétua (sendo, de momento, esta etiqueta de «perpétua» uma questão de esperança, porque obviamente a paz nunca foi eterna).
A esperança de atingir a paz atingindo a solidariedade política na Europa continuou como um pequeno regato, fluindo sem obstáculos ao longo dos séculos, ou como uma mãe «vazia, mas inexaurível, dando à luz mundos infinitos».10 Isto não significa que essa teoria tenha sido imediatamente ou de um modo geral apoiada; pelo contrário, os promotores da paz perpétua foram frequentemente escarnecidos, denegridos e derrotados. Os impérios coloniais modernos da Europa impuseram minuciosamente as suas doutrinas marciais no ultramar, muitas vezes com um «êxito» assustador. Temos, pois, de lidar com o paradoxo evidente de que o continente que produziu uma gentil conceção de paz e veio a rejeitar qualquer império na Europa, foi ao mesmo tempo o centro de impérios coloniais que conquistaram implacavelmente o mundo durante 500 anos. Contudo, esta história da paz cobrindo os últimos três séculos revela o longo processo em direção à compreensão de que a paz e a liberdade eram alcançáveis na Europa; de facto, foram alcançadas em grandes partes do continente, pelo menos por algum tempo. Além disso, os meios pelos quais muitos europeus resistiram à opressão imperial durante a primeira metade do século XX promoveram o entendimento generalizado de que atos de conquista e supressão contra não-europeus também se qualificavam como crimes contra a humanidade — momento em que o público retirou o seu apoio a guerras anti-independência e deixou os governos nacionais com poucas alternativas que não fossem cortar os últimos magros orçamentos atribuídos a empreendimentos coloniais.
Este livro examina cinco momentos, cada um com o seu próprio espírito, que ocorreram pouco depois de importantes sublevações geopolíticas da história europeia e foram marcados pela ameaça iminente de um império pan-europeu: o esforço de Luís XIV pela obtenção da hegemonia europeia (1701–1714); Napoleão e o Império Francês (1799–1815); os Impérios Germânicos na Primeira Guerra Mundial (1914–1918) e na Segunda Guerra Mundial (1939–1945); o domínio soviético sobre metade da Europa durante a Guerra Fria nas décadas anteriores a 1991. Esta periodização ilustra como o objetivo de paz nutriu a ideia política da Europa (e o seu corolário de unificação) na longue durée, muito antes de vir a existir um bloco europeu e mesmo antes da época dos estados-nações. Mostra também como a evolução da Europa — cultural, económica e institucionalmente — deu forma ao conceito de paz. Vista nesta perspetiva de longo alcance, a contemporânea União Europeia é apenas a mais recente — e talvez nem seja a última — de várias tentativas de atingir a «Ideia de Europa» como uma arena de paz política.
No decurso da sua demanda pela paz, a Europa teve de questionar o que sabia acerca de si própria e até — dados os efeitos do colonialismo — a sinceridade dos seus próprios motivos. Contudo, a Europa nunca foi apenas a Santa Aliança, a Sociedade das Nações ou a Comunidade Económica Europeia; nem é, hoje em dia, apenas a União Europeia. Estas instituições eram meros avatares de um ideal de paz abstrato; tal como a forma feminina da Europa mitológica, são formas políticas mundanas através das quais ela foi geralmente percebida, e por vezes adorada, por propaganda oficial e pela imprensa. Essas encarnações políticas sobreviveram na medida em que estavam em harmonia com ela e lhe eram fiéis; assim que perderam esta conexão, definharam e morreram. As várias tentativas por parte de líderes políticos e opiniões políticas de comungarem metaforicamente com o ideal da paz perpétua são aquilo a que chamo espírito, do francês esprit, como em esprit de corps. Uso esta palavra no seu sentido coletivo como em «Espírito do Iluminismo» para um grupo de indivíduos; é um fenómeno social que promove uma certa ideia ou ideal.
O leitor deve, contudo, refrear-se de pôr num pedestal os indivíduos que cultivaram esses espíritos. Embora essas pessoas tenham feito importantíssimas contribuições intelectuais e as suas ações tivessem tido muitas vezes grandeza, algumas também eram moralmente deficientes. O filósofo do Iluminismo Jean-Jacques Rousseau era socialmente insuportável e o seu seguidor Immanuel Kant era um autoproclamado misógino; o czar Alexandre I do século XIX tinha a alcunha de «fogo-fátuo» e acabou por abraçar uma visão política reacionária; o presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson manchou o seu registo liberal ao promover a causa da segregação racial.11 Vários partidários sinceros da tradição europeia de paz sob liberdade não acreditavam na igualdade racial, e muitos pensavam que o colonialismo promovia a causa da paz.
Se quisermos alcançar uma empatia por estas personagens históricas e entrar «dentro das suas cabeças» (assim como nas dos seus críticos), apesar dos seus inevitáveis erros, é necessário apreciar as suas naturezas complicadas e falíveis no contexto do seu tempo e local. Para compreender como as suas mentes funcionavam, será também necessário para nós — e especialmente proveitoso para os diplomatas — eliminar alguns mitos estabelecidos que originam antipatia, desdém ou ressentimento; nomeadamente, que a «Santa Aliança» de 1815 era uma conspiração reacionária contra os liberais, de acordo com uma versão, ou o sonho caprichoso de uma baronesa mística, de acordo com outra; e que o tratamento «cruel» da Alemanha e da Hungria nos Tratados de Versalhes e Trianon foi inteiramente intencional. Entre algumas outras narrativas comuns encontram-se as seguintes: a Sociedade das Nações foi um fracasso inqualificável na garantia de paz europeia e, ao contrário, as Nações Unidas foram um sucesso; o liberalismo americano inspirou o Mercado Comum Europeu e foi Ronald Reagan quem convenceu a URSS a retirar o Exército Vermelho da Europa de Leste com o famoso apelo «Sr. Gorbachev, derrube este muro». Todas as boas histórias têm de ter também os seus vilões: são as personagens imperialistas, de ambições pan-europeias que originaram alianças continentais para os derrotar. Então, cada «Espírito de Paz» tem o seu próprio vilão: Luís XIV, que ameaçou unificar os Impérios Espanhol e Francês numa formidável potência mundial; Napoleão Bonaparte, que conquistou a maior parte da Europa; os falcões do Kaiser, que defenderam a guerra total durante a Primeira Guerra Mundial; e, claro, os dois tiranos absolutos do século XX, Hitler e Estaline.
«O sucesso não é final, o fracasso não é fatal; o que conta é a coragem para continuar.» Esta máxima, atribuída a Churchill e que ele provavelmente nunca proferiu, é indicativa da persistente perseguição europeia da paz.12 Não é o produto de sonhadores não-violentos que recuaram de uma boa luta, mas de indivíduos que experienciaram uma grande dose de luta durante as suas vidas. De facto, cada Espírito mostra como experiências naquilo a que chamo «engenharia da paz» foram conduzidas no final de grandes guerras continentais. A cada momento que um poderoso império como o Terceiro Reich ou a União Soviética se desmoronou e caiu, deixando os povos oprimidos com uma sensação de alívio, liberdade e empoderamento, líderes políticos e os seus séquitos imaginaram um futuro feito de paz e tranquilidade. O termo «engenharia» implica que os sucessivos espíritos de paz construíram a partir de experiências prévias, para atingirem um objetivo partilhado: a paz perpétua. Quando uso a palavra «avanços», é, pois, em direção a esse fim. Como veremos, esta engenharia não se limitava a construir «maquinarias de paz», para usar uma expressão em voga durante o período entre guerras; em meados do século XX, os fundadores das Comunidades Europeias viam-se a si mesmos como cuidadores de um organismo vivo.
Como engenheiros, os promotores da paz perpétua tentaram — com diferentes graus de êxito — canalizar eventos caóticos da História de acordo com a sua vontade. Este tema comum da engenharia não nos ajuda necessariamente a fazer sentido das complicadas voltas e reviravoltas da história europeia, mas decerto lança luz sobre a direção geral que os cinco Espíritos da Paz seguiam. O romance de Lev Tolstói, Guerra e Paz, exprimiu a dialética entre o «grande mar de eventos» e a vontade humana de algumas figuras históricas:
O turbulento mar da história europeia assentara entre as suas margens. Parecia ter acalmado. (…) As figuras históricas que tinham conduzido exércitos e refletido o movimento das massas travando guerras, fazendo marchar homens para entrarem em batalha, refletiam agora esse mesmo movimento fervilhante em estratagemas políticos e diplomáticos, estatutos e tratados.13
Podemos ter uma vantagem sobre Tolstói na medida em que temos um horizonte mais vasto de experiência. Além disso, a nossa noção de engenharia é menos fatalista, porque pressupõe que os seres humanos são mais do que meras cortiças batidas de um lado para o outro pelo mar; ainda podem definir o seu caminho para um destino, pelo menos até certo ponto. Esta demanda de paz perpétua tem sido, pois, «da natureza de uma conquista» (para usar a expressão de Shakespeare): tem sido uma luta, não entre duas partes, mas contra as probabilidades.
Para medir estes avanços práticos dos Estados europeus em direção a uma paz duradoura, uso uma escala ad hoc que resume os passos que têm de ser dados para atingir esse objetivo. Começando num estado de guerra, sobe através de sete degraus: cessar-fogo (armistício ou capitulação), paz e tratados de paz que terminam formalmente a guerra, o estabelecimento de um sistema de paz, a fundação de instituições de paz, a reconciliação de diferenças históricas para evitar disputas recorrentes, a promoção da solidariedade entre Estados para criar uma dinâmica permanente de relações amigáveis e, finalmente, o (ideal e talvez inatingível) estado de verdadeira paz duradoura. Esta escala é uma descrição consolidada do método desenvolvido até agora na Europa para atingir a paz duradoura após a guerra. Não diz nada acerca de todo o pensamento e experimentação que foram necessários ao longo de três séculos para chegar a esta formulação direta.
De facto, como vemos, a unificação pacífica da Europa foi (e pode ser sempre) uma jornada e não um destino final. Recuando a 1713, 1815, 1919, 1945 e 1989, é evidente que a crença no «fim da História» — o início de um feliz novo mundo para sempre em paz — foi em cada momento uma ideia errada: a paz era um bem frágil e volátil, e emergiriam novas ameaças a certa altura. Contudo, o final de cada uma das grandes guerras continentais foi marcado por um momento privilegiado em que um novo espírito de paz se levantou na Europa — depois de todo o ódio e competição, estes eram momentos em que um tal espírito era mais necessário.
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É importante notar que os Espíritos de Paz não se materializaram subitamente, completamente formados, prontos para moldar a inovação. Durante os últimos três séculos, os Estados mudaram as suas práticas de coexistência de acordo com as necessidades do momento, à medida que os conceitos que acompanhavam a paz evoluíam e se expandiam. Algumas palavras mudaram de significado em momentos diferentes ou até no mesmo período; alguns termos, em particular «equilíbrio de poder», não significavam exatamente o mesmo em diferentes línguas. É, por isso, importante começar a nossa jornada histórica da guerra à paz com uma mente limpa, sem assumir que quaisquer conceitos que consideremos familiares hoje em dia — organizações internacionais, soberania, direito, direitos humanos, constituições, incluindo a própria ideia de paz — foram sempre conhecidos ou mesmo que tiveram relevância em períodos do passado. Ainda que a engenharia da paz europeia se tenha tornado uma fundação para a linguagem global do «direito internacional», não devemos esquecer-nos de que foi originalmente apenas o dialeto partilhado por líderes políticos e diplomatas num continente relativamente pequeno; não se deduz daqui automaticamente que seja a única linguagem possível. Este livro é, pois, um relato dos esforços para fazer durar a paz dentro dos limites da Europa, dentro da sua cultura política e no seu contexto histórico específico. Contudo, algo que se pode dizer sobre as práticas diplomáticas dos Estados europeus é que se tornaram gradualmente mais eficazes na prevenção de novas guerras continentais, apesar de ainda estarem longe de ser infalíveis.
Nesse continente, períodos de paz e de guerra alternaram-se longamente de acordo com uma sintaxe definida pelo ius gentium (direito das nações), um substancial conjunto de convenções e acordos que dominavam as relações entre os Estados — ou seja, até a expressão direito internacional, cunhada pelo autor inglês Jeremy Bentham na década de 1780, começar a ser vulgarizada na sequência do Congresso de Viena de 1814–1815. Existe, contudo, uma diferença entre os dois conceitos: o direito das nações era mais da natureza de um código moral ou de uma etiqueta de paz e guerra, essencialmente concebido como lei natural aplicada às nações.14 Deste entendimento até à nossa atual conceção elaborada das relações entre Estados como reguladas pelo direito internacional (corporizadas em tratados multilaterais e decisões de tribunais), houve, claramente, uma grande evolução. Contudo, diplomacia — a arte de negociar com outros e persuadi-los a concordar com os nossos desejos — já era o instrumento de eleição daqueles que consideravam conveniente usar meios pacíficos para atingir os seus objetivos. Ou era o último recurso daqueles que não podiam dar-se ao luxo de um confronto militar.15
A sintaxe da paz e da guerra dependia de um vocabulário altamente codificado: para o compreender, é necessário recuperar a definição de uma palavra-chave como paz. No primitivo francês moderno, a língua comum dos diplomatas, o significado de «paz» era direto: «repouso, o estado de um povo que não está em guerra».16 A paz estava associada à noção moral de tranquilidade, no sentido de «calma ou ausência de emoção», como na expressão «paz e tranquilidade» (neste sentido, segue o uso da palavra latina pax). Era esta a definição principal de paz da primeira edição do dicionário da Academia Francesa em 1694 até à quinta, produzida depois da Revolução Francesa.17 Num sentido político, paz era literalmente uma não-entidade: um ponto de não movimento, um vazio ou, quando muito, um tema para uma alegoria. A sua definição secundária e mais prática era que paz «também descreve alguns tratados de paz particularmente famosos», citando a paz de Vestefália.18 Amicitia (amizade) era uma noção distinta.
No início da nossa história, os tratados após uma guerra começavam, em geral, precisamente com esta linguagem de paz: Pax sit Christiana, universalis, et perpetua veraque et sincera amicitia inter… (Haverá uma paz cristã, universal e perpétua, assim como amizade sincera entre…).19 De facto, a expressão «paz perpétua» era uma abreviatura de tratado de paz perpétua. Porém, porque haveria um tratado de paz de ser perpétuo quando as guerras eram uma característica permanente deste continente? O jurista suíço do século XVIII Emer de Vattel deu uma resposta surpreendentemente simples:
Nesses tratados, as partes contratantes envolvem-se reciprocamente na preservação da paz perpétua: o que não deve ser entendido como se tivessem prometido nunca mais voltar a fazer guerra uma à outra por nenhuma razão. A paz em questão relaciona-se com a guerra que aquela termina: e é na realidade perpétua, na medida em que não lhes permite reviverem a mesma guerra voltando a pegar em armas pela mesma razão que originalmente lhe dera início.20
Por outras palavras, Vattel enfatizou que o tratado de paz em questão devia pôr fim à disputa específica de uma guerra específica, não evitar disputas futuras. Esta distinção subtil mas essencial por vezes desvanecia-se: por exemplo, os fundadores da Sociedade das Nações em 1919 acalentavam mesmo a ambição de tornar impossível uma futura guerra. Apesar de terem atingido alguns resultados notáveis em evitar ou resolver guerras de fronteiras entre os Estados europeus, essa parte do seu objetivo foi extremamente ambiciosa e — como todos sabemos — miseravelmente derrotada pela ascensão dos totalitarismos e a deserção, em rápida sucessão, de todas as grandes potências que tinham prometido apoiar a Sociedade. Franklin D. Roosevelt mantinha uma esperança similar de que as Nações Unidas marcassem o fim das guerras e da opressão política.21
O propósito básico da tradição política da «paz perpétua» — que incluía a criação de instituições reais — foi, pois, assegurar a paz entre os Estados europeus e no mundo em geral, não absolutamente e para sempre, mas pelo tempo razoável ou humanamente possível. Não era certamente erradicar todas as guerras no espaço de uma geração. Por uma questão de simplificação, consideremos «paz perpétua» como uma hipérbole para «paz duradoura».
Como nota à margem, o termo paz, que é também um eufemismo para morte e vida após a morte na maioria das línguas europeias, sempre foi propenso a trocadilhos, interpretações incorretas e corrupções cínicas. Em 1795, Immanuel Kant citou um letreiro de uma taberna que representava a paz perpétua como um cemitério (como que para implicar que a erradicação de toda a humanidade resolveria decerto o problema de guerras futuras, mas que o género de «paz» radical que isso proporcionaria dificilmente se podia considerar um remédio).22 No século XIX, tropas disparavam sobre manifestantes para «restaurar a paz» e, num contexto colonial, operações punitivas sangrentas contra povos não-europeus revoltosos eram geralmente chamadas de «pacificação».23 «Apaziguamento», a tentativa de «fazer concessões a opositores zangados para manter a paz», entrou desfavoravelmente na História com o famoso acordo de Munique em 1938 com a Alemanha Nazi que comprometeu a integridade territorial da Checoslováquia.24 Esta palavra contém potencialmente uma contradição nos termos: se os inimigos já tivessem decidido que a paz estava morta, apesar de não terem formalmente declarado guerra, então um compromisso diplomático com eles seria o equivalente a uma capitulação sem luta.
E como um tratado de paz só pode existir para terminar uma guerra e o seu conteúdo será inteiramente determinado pelo resultado da mesma, paz e guerra não podem ser dissociadas, como «dia» não pode ser definido sem compreender também «noite». É por isso essencial compreender as partes da gramática que governam a guerra. É notável que, apesar de toda a evolução impressionante na arte da guerra, os seus princípios básicos não tenham mudado muito nos últimos quatro séculos. O filósofo e advogado holandês Hugo Grotius, no princípio do século XVII, definiu guerra (bellum) como «a condição daqueles que contendem pela força».25 Isto fazia sentido: no altamente fragmentado continente europeu, era provável que surgissem disputas entre Estados; quando a boa vontade, a diplomacia e a mediação falhavam, o único recurso que restava era resolver os problemas através das armas. De acordo com o dicionário francês de 1694, a guerra era definida como «uma disputa entre dois Estados, executada com força armada».26
É essencial notar que a guerra nunca foi considerada uma quebra de relação entre dois Estados, mas antes uma mudança na forma da sua interação: as duas partes, deixando de lado a argumentação intelectual, continuam o seu confronto trocando golpes até que a parte mais forte prevaleça. Como Vattel descreveu apropriadamente (usando a definição de Grotius), «Guerra é aquele estado em que defendemos a nossa razão pela força.»27 É, na verdade, um duelo entre Estados, em que ambos os oponentes têm o direito de matar legitimamente os soldados do outro e destruir a propriedade do outro. Inspirada por uma tradição pré-cristã que parece ter paralelo nos duelos judiciais alemães entre indivíduos (também chamados julgamento por combate), a principal função da guerra na história europeia foi, então, servir como uma espécie de procedimento de julgamento, embora de um género mais primitivo e direto do que num tribunal; o axioma fundamental era o da «lei do mais forte», em que a parte vitoriosa na batalha é considerada vencedora do caso.28 Isto foi racionalizado por um antigo dogma religioso, segundo o qual os Céus favorecem as armas dos virtuosos. Esta crença foi mantida nas primeiras sociedades cristianizadas, reformulada durante a Reforma e mais desenvolvida durante a Revolução Industrial para justificar a superioridade do armamento europeu relativamente ao do resto do mundo. Embora tenha perdido valor na maior parte dos estados-nações europeus depois das derrotas militares da Segunda Guerra Mundial, permanece uma base ideológica do providencialismo político, tanto nos Estados Unidos como na Rússia.29
Uma declaração de guerra era o ato fundamental, formal e unilateral através do qual um Estado punha fim ao estado de paz, onde as leis do comportamento civil e do comércio vigoravam, para dar início a um estado de guerra. Obviamente, a menos que o Estado que recebesse essa declaração fizesse uma petição de paz, não podia rejeitá-la, sob pena de ser imediatamente derrotado. Como um Estado que declarasse guerra unilateralmente lançava o seu opositor no estado de guerra, isto dispensava o último da obrigação de declarar, por sua vez, guerra, pese embora muitas vezes o fizesse («quer por uma questão de dignidade, quer para a orientação dos seus súbditos»).30 Existe, contudo, uma reserva: pelo simples ato de declarar guerra, um Estado estava naturalmente a dar a mesma licença ao seu oponente. Como se pode ver, uma guerra séria no Ancien Régime era um assunto muito formal, estritamente reservado aos Estados (não para ser travada por pessoas privadas) e obedecendo a protocolos rígidos. Isto é, em teoria, porque a warfare (uma palavra especificamente inglesa que se refere à «prática da guerra») é barulhenta, caótica e imprevisível, com o corolário de ser cruel; «a guerra e a piedade não andam a par», diz um provérbio francês.31 O vencedor de um conflito tinha o direito legal de guardar os despojos e a terra conquistada, se assim escolhesse, um facto que provavelmente remonta a um tempo em que os primitivos humanos caçavam em grupos e por vezes lutavam uns com os outros pela mesma presa.
O procedimento europeu para terminar uma guerra e voltar a um estado de paz era igualmente formal e elaborado: exigia plenipotenciários atravessando as linhas sob uma bandeira de tréguas, seguido por um cessar-fogo; depois um armistício ou capitulação era assinado pelos líderes militares de ambos os campos. Em seguida os diplomatas passavam à ação e, após negociações adequadas, assinavam o tratado de paz que, de uma vez por todas, punha supostamente fim à disputa específica entre os dois Estados, enquanto definia a propriedade dos territórios e aspetos como as populações, prisioneiros, reparações de guerra e outros assuntos relacionados. A interrupção de uma guerra nunca foi uma declaração ociosa, antes se materializando como uma profunda e instantânea mudança de comportamento e atitudes: um súbito regresso à calma e à ordem, um ponto a partir do qual a vida humana se torna novamente sagrada e tirá-la volta a ser um crime. Quando a paz era finalmente assinada, o estado de guerra era oficialmente encerrado e as relações civis entre os anteriores beligerantes podiam ser retomadas como antes.
Embora a expressão «a História é escrita pelos vencedores» seja um lugar-comum, é muitas vezes negligenciado que a maneira principal de os vencedores o fazerem é através dos tratados que impõem aos Estados derrotados. A forma como o fazem depende, naturalmente, de um aspeto mais psicológico, a necessidade humana, profundamente enraizada, da autojustificação. A literatura histórica europeia mostra como as potências vitoriosas tendiam a racionalizar a sua própria vitória (e o mal infligido à outra parte), elaborando uma narrativa na qual a sua parte defendia uma causa nobre, enquanto os derrotados impediam o caminho do bem comum. Esse fator autojustificativo ajuda, sem dúvida, a explicar a mística militar em torno da fundação de impérios e nações europeias do passado. A questão aqui é que a prerrogativa dos vencedores de escrever a História é outra consequência prática do «might makes right»: o facto de o vencedor poder definir o veredito do duelo judicial esteve sempre embebido na própria definição e modus operandi da guerra.32 A nova Europa pacífica foi definida, após cada tratado de paz, pela prerrogativa da parte vencedora de explicar como as suas reivindicações eram justificadas e como a parte derrotada estava errada. A tarefa dos advogados era fornecer a racionalização do novo estado de coisas que, daí em diante, seria sustentado por ambas as partes e serviria como base para os moralistas das gerações futuras. Nos casos, contudo, em que uma grande guerra terminava sem um vencedor e um derrotado claros (como a Guerra da Sucessão Espanhola em 1713), o tratado de paz legaria à posteridade uma interpretação mais equilibrada da disputa. Em resumo, os aliados vitoriosos nas várias grandes guerras encontraram a confirmação de que tinham estado «do lado certo» no facto de ganharem a guerra.
Dado que o destino das armas definia assim o «certo» e o «errado» legais de uma forma final e sem apelo, uma distinção ex-post entre guerra legalmente «justa» e «injusta» era discutível: o tratado de paz que concluía cada guerra era justo pelo próprio facto — desde que, claro, o tratado não fosse revogado num futuro próximo. Em contraste, permanecia a questão sobre se começar uma guerra era moralmente correto. Por exemplo, o escritor irlandês Jonathan Swift enunciou, em 1711, cinco motivos justos para dar início a uma guerra: controlar o poder excessivo de um vizinho ambicioso, recuperar o que tinha sido injustamente tomado, vingar qualquer dano, ajudar um aliado numa luta justa e, por fim, defender-se quando invadido. Implicitamente, os principais motivos para uma guerra injustificável eram a conquista, tomar a propriedade de outro pela força e infligir dano.33
Comportamentos inaceitáveis após uma declaração de guerra incluíam matar prisioneiros, fazer mal a civis inocentes, empreender tortura, assassinar inimigos e infligir destruição desproporcional de propriedade — levou o seu tempo, contudo, até que a prática de saquear cidades após um cerco se tornasse completamente inaceitável e ainda mais até ser efetivamente punida.34 Escusado será dizer que, apesar da teoria, todas as potências europeias desrespeitaram tranquilamente essas prescrições numa altura ou noutra. Deriva da própria natureza de um tratado de paz que um beligerante vitorioso pudesse muitas vezes cometer essas violações impunemente: em 1919, a Alemanha derrotada aceitou a responsabilidade total pelo início da guerra; juízes do regime estalinista em Nuremberga, em 1946, condenaram dignitários nazis por crimes contra a humanidade, enquanto nenhum tribunal internacional alguma vez responsabilizou os líderes soviéticos por crimes de guerra cometidos sob o domínio de Estaline. Numa tentativa de remediar esta falha lógica de juízes serem também partes interessadas, o advogado americano nascido na Prússia, Francis Lieber, escreveu o chamado Código de Lieber (General Orders Nº 100), publicado em 1862 pelos Estados Unidos no contexto da Guerra Civil Americana, um dos primeiros códigos de lei marcial aprovados por um beligerante.35 Provisões relacionadas com as consequências da guerra para os civis e a sua proteção em territórios ocupados apareciam apenas como apêndices às Convenções de Haia de 1899 e 1907. A Quarta Convenção de Genebra, relativa à Proteção de Pessoas Civis em Tempo de Guerra, data apenas de 1949.36
Se a guerra era tão destrutiva e as suas práticas tão lentas a mudar, isto levantava outra questão às grandes potências que este livro segue: valia a pena arriscar uma corrida às armas para preservar a paz em tempos de crise (no mais vasto interesse coletivo da Europa e da humanidade em geral), ou a paz podia, de alguma forma, ser preservada por outros meios, sem o perigo de começar uma nova guerra? Em cada uma das cinco grandes guerras desde 1700, quando uma coligação continental teve de se reunir contra a ameaça de um império pan-europeu, a resposta dependia evidentemente das circunstâncias e alternativas disponíveis. O primeiro ato, a Guerra da Sucessão Espanhola, abriu com um sistema político que oferecia pouca alternativa à guerra. No segundo ato, as guerras napoleónicas, as grandes potências não tiveram outra escolha a não ser aliarem-se contra o expansionismo de um Império Francês que não as deixaria em paz. O terceiro ato, a Primeira Guerra Mundial, começou em 1914 da maneira mais imponderada, apesar de as grandes potências terem investido um esforço considerável na busca de alternativas judiciais às disputas internacionais.37 O colapso da ordem entre guerras e o início da Segunda Guerra Mundial estiveram entre as horas mais negras do continente; assim que o Terceiro Reich contemplou uma invasão da Checoslováquia, em setembro de 1938, já era provavelmente tarde para algo que não fosse uma aliança militar pan-europeia para contrariar esta ameaça. Depois da catástrofe da Segunda Guerra Mundial, contudo, era preciso levantar a questão do que a França e a Inglaterra podiam ter feito para evitar a ascensão do Terceiro Reich ao ponto de este ameaçar as liberdades da Europa — ou, pior, se a sua cegueira teria involuntariamente facilitado a ascensão da tirania, e o que devia ser feito se uma tal ameaça voltasse a apresentar-se. O quinto ato, a Guerra Fria, foi largamente causado pela transformação de uma União Soviética inicialmente em busca da paz num império brutalmente agressivo, que acabaria por ocupar metade da Europa. De maneira similar, o historiador pode perguntar retrospetivamente o que é que os outros poderes (particularmente os vitoriosos Estados Unidos e a Grã-Bretanha) podiam ter feito em 1945 para evitar uma Guerra Fria de 50 anos com a União Soviética, que causou considerável sofrimento humano e económico.
O propósito de fazer essas perguntas não é, obviamente, atribuir culpas, num esforço fútil de mudar o passado. Pelo contrário, é um exercício para o futuro, no espírito da engenharia da paz. Será possível extrair das experiências passadas algumas práticas de bom senso que possam atingir os objetivos de uma comunidade internacional segura, ao mesmo tempo que reduzem a necessidade da guerra? A tradição intelectual da paz perpétua tem afirmado — contra os realistas — que deve ser procurada uma alternativa mais eficiente do que a força bruta. Os seus proponentes argumentaram que, em 1939 e 1945, o ponto de não retorno tinha sido ultrapassado: restava apenas um dilema enganador entre uma «paz» ilusória que era, na verdade, guerra suprimida, ou a guerra aberta e respetivas consequências imediatas. E, além disso, a tradição afirmava que uma tal solução podia efetivamente existir, desde que fosse adotada com suficiente antecedência e a oportunidade não fosse perdida por erro, compromisso moral ou inação.
À Conquista da Paz procura explorar a hipótese de que a paz perpétua pode ser uma alternativa eficaz à força, e o corolário de que a busca da paz pode, em si mesma, ser um meio de evitar a guerra. É verdade que aqueles que procuraram uma alternativa se depararam muitas vezes com o desdém dos que chamam a si mesmos «homens práticos» (a versão passada dos «realistas»), que os acusavam de sonhar com utopias. Os apoiantes da paz argumentavam, por sua vez, que as certezas dos realistas deviam mais à postura do que ao facto. Kant escreveu, no seu ensaio sobre a paz perpétua, que «esses homens não têm ciência prática, apenas têm práticas.»38 Bastará notar que os partidários da paz perpétua têm — além de todos os seus fracassos — alguns argumentos solidamente confirmados pela experiência, tal como uma construção europeia que já sobrevive há 70 anos; em contraste, três impérios continentais «realistas» provaram-se conclusivamente errados em 1815, 1918 e 1945 pelo próprio argumento que eles mais valorizavam: a força das armas. A noção de que might makes right — quer seja usada para o autoengrandecimento ou para o bem da humanidade — teria sido considerada bem-sucedida se, e só se, a sua «razão» conduzisse à sobrevivência por uma quantidade significativa de tempo. O facto é que, em muitos casos flagrantes na história europeia, o «realismo político» conduziu à derrota e à humilhação — tanto, de facto, que partilha uma fronteira ténue com o curto-prazo.
Muitos impérios colapsaram, não por terem sido derrotados, mas indiretamente, porque o esforço interminável de guerras repetidas os exauriu financeiramente: o czar foi deposto por uma revolução em 1917; a Áustria-Hungria explodiu nos últimos dias da Primeira Guerra Mundial; o Império Otomano do século XIX foi apropriadamente chamado de «homem doente da Europa» e derrubado por um golpe em 1922. Os Impérios Francês e Britânico colapsaram depois de 1945, quando as metrópoles entraram em bancarrota, enquanto a União Soviética, incapaz de reequipar a sua indústria nos anos de 1980 e ultrapassada pela revolução informática, desmoronou no fim da Guerra Fria, quando se lhe esgotaram os recursos financeiros.39 É por isso que o século XX pode ser visto como a idade das extinções em massa de impérios europeus, o culminar de um processo que começou muito mais cedo. Os impérios foram, sem dúvida, um género bem-sucedido na história europeia moderna, porém, demasiado bem ajustados ao seu tempo e lugar. Quando as condições começaram a mudar, estavam condenados.
Notas
Todos os sites citados encontravam-se atualizados/disponíveis a 26 de setembro de 2020.
- Cesare Ripa, Iconologia: Overo descrittione di diverse imagini cavate dall’antichità, e di propria invenzione, introdução de Erna Mandowsky (Hildesheim: Georg Olms, 1970), 332–334; Peter Meurer, «Europa Regina: 16th Century Maps of Europe in the Form of a Queen», Belgeo 3–4 (2008): 355–370.
- O historiador grego Heródoto já tinha observado no século v a.C. que a única conexão entre esta princesa asiática e o continente Europa era uma similaridade de nomes; contudo, muitos artistas concordaram em suspender a sua descrença de que, num sentido cultural, se tinham tornado uma e a mesma. Heródoto, The Histories, ed. Walter Blanco e Jennifer Tolbert Roberts, trad. Walter Blanco (Nova Iorque: W. W. Norton, 1992), 4 (1.1-2).
- Luis Díez del Corral, The Rape of Europe, trad. H. V. Livermore (Nova Iorque: Macmillan Company, 1959); Luisa Prandi, «Europa e i Cadmei: La “versione beotica” del mito», Contributi dell’Instituto di Storia antica dell’Università del Sacro Cuore (CISA) 12 (1986): 37–48; Dario M. Cosi, «Dietro al fantasma di Europa: Sposa, madre, regina», Contributi dell’Instituto di Storia antica, 27–36.
- Svetlana Alpers e Michael Baxandall, Tiepolo and the Pictorial Intelligence (New Haven: Yale University Press, 1994), 154.
- Existia um precedente na associação entre duas representações de Europa Regina e o touro, no chamado Eitzing Atlas: Michael von Eitzing, De Europae virginis, tauro insidentis, topographica atque historica descriptione liber (Colónia: Gottfried van Kempen, 1588). Seguiu-se, contudo, que o cânone tradicional do touro em salto não procurava criar uma tensão entre as duas personagens. Sobre as representações de Europa (figura mítica)/Europa (continente) na arte e no mito, ver Michael J. Wintle, The Image of Europe: Visualizing Europe in Iconography and Cartography throughout the Ages (Cambridge: Cambridge University Press, 2009), 128–150.
- A paisagem caótica de Ernst é reminiscente da cor e consistência da espetacular — e venenosa — reação química conhecida como serpente do faraó (tiocianato de mercúrio), que origina o crescimento de formas grotescas que parecem vivas. Pascal Dethurens, «Europe, lieu fantasme: Le mythe d’Europe dans l’histoire de l’art», in Lieux d’Europe: Mythes et limites, ed. Stella Ghervas e François Rosset (Paris: Editions de la Maison des sciences de l’homme, 2008), 19.
- Sobre este aspeto «utópico», ver Jay Winter, Dreams of Peace and Freedom: Utopian Moments in the Twentieth Century (New Haven: Yale University Press, 2006), 48–74; Bo Stråth, Europe’s Utopias of Peace: 1815, 1919, 1951 (Londres: Bloomsbury Academic, 2016), 1–22.
- Flavius Vegetius Renatus, Epitoma Rei Militaris, ed. e trad. Leo Stelten (Nova Iorque: Peter Lang, 1990), 122–123 (III).
- 9.Ronald Reagan, «Address before a Joint Session of the Congress on the State of the Union» (6 de fevereiro de 1985), Ronald Reagan Presidential Library, https://www.reaganlibrary.gov/research/speeches/20685e.
- 10.Ambas as metáforas são tomadas de empréstimo de Lao Tzu, The Tao Te Ching, trad. Gia-Fu Feng e Jane English (Nova Iorque: Vintage Book, 1989), estrofes 6 e 66.
- Para um estudo psicológico destas personalidades, ver Leo Damrosch, Jean-Jacques Rousseau: Restless Genius (Boston: Houghton Mifflin, 2007); Beverley Clack, «Immanuel Kant 1724–1804», in Misogyny in the Western Philosophical Tradition: A Reader, ed. Beverly Clack (Basingstoke: Palgrave Macmillan, 1999), 144–160; Aleksandr Arkhangel΄skiĭ, Aleksandr I (Moscovo: Vagrius, 2000), 108-115; Patricia O’Toole, The Moralist: Woodrow Wilson and the World He Made (Nova Iorque: Simon & Schuster, 2018).
- Churchill by Himself: The Definitive Collection of Quotations, ed. Richard M. Langworth (Nova Iorque: Public Affairs, 2008), 570–581.
- Leo Tolstói, War and Peace (1869), trad. Anthony Briggs (Londres: Penguin Classics, 2007), 1259.
- Esta é a definição clássica por Emer de Vattel, The Law of Nations, ed. Béla Kapossy e Richard Whatmore (Indianápolis: Liberty Fund, 2012), 67–70, originalmente publicado em 1758.
- Para a definição clássica e restrita de diplomacia, percebida através de uma lente «vestefaliana» como um sistema de relações internacionais entre Estados, ver Harold Nicolson, Diplomacy, 2a ed. (Washington, DC: Institute for the Study of Diplomacy, 1988), 3–5; Hans J. Morgenthau, Politics among Nations: The Struggle for Power and Peace (Nova Iorque: Knopf, 1966), 139.
- «Repos, estat d’un peuple qui n’est point en guerre.» Le Dictionnaire de l’Académie française, 1a ed., 2 vols. (Paris, 1694), 2: «paix».
- Na primeira edição (1694), segunda (1718), terceira (1745), quarta (1762) e quinta (1798).
- «On appelle ainsi, certains Traitez de Paix plus fameux. La paix de Vestphalie.» Le Dictionnaire de l’Académie française, 1a ed. (1694), 2: «paix».
- Tratado de Osnabrück, [Münster] (24 de Outubro de 1648), Art. 1: «Instrumentum Pacis Osnabrugensis (IPO)», in Die Friedensverträge mit Frankreich und Schweden, ed. Antje Oschmann (Acta Pacis Westphalicae, ed. Konrad Repgen, Série III.B, vol. I), 3 vols. (Münster: Aschendorff, 1998–2007), 1: 98 (nº 18).
- Emer de Vattel, Law of Nations, 663 (IV.ii.19); Richard Whatmore, «Vattel, Britain and Peace in Europe», Grotiana 31 (2010): 85–107.
- Oona A. Hathaway e Scott J. Shapiro, The Internationalists: How a Radical Plan to Outlaw War Remade the World (Nova Iorque: Simon & Schuster, 2017), 199–214.
- Immanuel Kant, Perpetual Peace: A Philosophical Sketch, in Kant: Political Writings, ed. Hans Reiss, trad. H. B. Nisbet (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), 93.
- Jean-Francois Klein, «“Pacification”, an Imperial Process», Encyclopédie pour une histoire nouvelle de l’Europe, 2016, http://ehne.fr/en/node/1150.
- De acordo com o American Heritage Dictionary.
- Hugo Grotius, On the Law of War and Peace (1625), ed. Stephen C. Neff (Cambridge: Cambridge University Press, 2012), 23 (I.i.2); Richard Tuck, The Rights of War and Peace: Political Thought and the International Order from Grotius to Kant (Oxford: Oxford University Press, 2001), 78–108.
- «Querelle entre deux Princes, entre deux Estats souverains, qui se poursuit par la voye des armes.» Le Dictionnaire de l’Académie française, 1a ed. (1694), 1: «guerre» (guerra). A mesma definição era ainda apresentada na 8a edição (1932–1935) do Dictionnaire.
- Vattel, Law of Nations, 469 (III.i.1).
- James Q. Whitman, The Verdict of Battle: The Law of Victory and the Making of Modern War (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2012), 25–49; Hathaway e Shapiro, The Internationalists, 31–81.
- John Locke chamou a isto o «apelo dos Céus»; ver Matthew Grimley, «The Religion of Englishness: Puritanism, Providentialism, and “National Character”, 1918–1945», Journal of British Studies 46, nº 4 (2007): 884–906.
- Vattel, Law of Nations, 503 (III.iv.57).
- «Guerre & pitié, ne s’accordent point ensemble». Dictionnaire de l’Académie française, 1a ed.
- Esta frase é retirada de George Orwell, «As I Please», Tribune, 4 de fevereiro de 1944.
- Jonathan Swift, The Conduct of the Allies and of the Late Ministry, in Beginning and Carrying on the Present War (Londres: impresso por John Morphew, 1711), 3.
- Matthew C. Waxman, «Siegecraft and Surrender: The Law and Strategy of City as Targets», Virginia Journal of International Law 39, nº 2 (1999): 353–423.
- Patryk I. Labuda, «Lieber Code», in Max Planck Encyclopedia of Public International Law, setembro de 2014, http://opil.ouplaw.com; David Armitage, Civil Wars: A History in Ideas (Nova Iorque: Knopf, 2017), 162–166, 183–193.
- «Convention (IV) Relative to the Protection of Civilian Persons in Time of War», The Geneva Conventions of August 12, 1949 (Genebra: Comité Internacional da Cruz Vermelha, 1949), 153–221.
- Christopher Clark, The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914 (Nova Iorque: Penguin Books, 2012), particularmente 451–470.
- Kant, Perpetual Peace, Apêndice I, 116–117.
- Paul Kennedy, The Rise and Fall of the Great Powers: Economic Change and Military Conflict from 1500 to 2000 (Londres: Unwin Hyman, 1988), 365–372, 488–513.
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