Quinto Navarra Roma, 4 de novembro de 1925

A arma já está apontada. Trata-se de uma espingarda, uma carabina austríaca de precisão Steyr-Mannlicher, munida de uma mira telescópica Zeiss, usada na guerra pelos franco-atiradores tiroleses. O cano já está encostado às persianas do quarto de gaveto no quinto andar do Hotel Dragoni, a coronha já está adossada ao ombro, o dedo no gatilho.

Na outra ponta da linha de tiro, no primeiro andar do Palazzo Chigi, as persianas abrem-se e aparece um homem na varanda de esquina entre a piazza Colonna e a via del Corso. É de estatura média, idade indefinida, vestido de cinzento. O alvo inconsciente hesita por um instante, depois debruça-se na balaustrada, observa entre a multidão lá em baixo na rua a estranha aglomeração de agentes à civil que os seus olhos treinados reconhecem à primeira vista, e volta para dentro. Tudo em ordem, nada a assinalar. Quinto Navarra lembra-se de ter executado a sua tarefa costumeira de preparação da varanda presidencial para o comício do onorevole Mussolini. Hoje passa o sétimo aniversário da vitória italiana na guerra do mundo e o Duce, assomando ao parapeito, arengará a multidão exaltada de veteranos e mutilados de visita ao seu camarada de armas, o soldado desconhecido, guardado no mármore do Altar da Pátria.

Em outubro recebemos José Luís Peixoto

O escritor José Luís Peixoto é o convidado do próximo encontro do clube de leitura É Desta Que Leio Isto, no dia 28 de outubro, pelas 21h. Iremos conversar sobre o seu mais recente livro, Almoço de Domingo, mas também sobre outras das suas obras.

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Cumprido o seu dever, Navarra, como sempre, retira-se para um canto da sala, nas proximidades da porta de entrada, engolido pela penumbra do batente de mogno e das suas modestas funções de lacaio. Nota, porém, uma mão no ombro. Um comissário de polícia pede-lhe que torne a sair à varanda e que se ponha outra vez a descoberto a intervalos de cinco minutos, debruçando-se o mais possível para observar a multidão. Navarra não compreende aquela infração do cerimonial do costume. Não é preciso para nada: está tudo pronto, como sempre. Quinto Navarra não compreende e, no entanto, cumpre a ordem. Assim como sempre fez desde o dia em que Benito Mussolini, depois de marchar triunfalmente sobre Roma à cabeça dos seus camisas negras, ocupando impulsivamente o lugar do seu predecessor, decidiu pôr ao seu serviço aquele lacaio humilde e fiável ao qual verosimilmente teria concedido, quando muito, um olhar distraído. Ignorando, hoje como então, que se encontrava numa encruzilhada do destino, Navarra, embora relutante, abandona a sombra das coisas próximas e sai de novo à varanda, a servir de isco, vigiando pelo canto do olho o comissário que, de dentro, o incita a debruçar-se, e entrando com todo o corpo no olho da arma.

Do outro lado da rua, escondido atrás das persianas corridas do Hotel Dragoni, está um homem só num quarto. Envergou para a ocasião a farda de oficial das tropas de montanha, rapou o bigode, oleou a carabina. Quem a empunha é Tito Zaniboni, socialista intervencionista, mação, seguidor de D’Annunzio, várias vezes condecorado, com três medalhas de prata e uma de bronze, quarenta e dois anos – a mesma idade de Mussolini –, deputado do Partido Socialista Unitário – o mesmo de Matteotti –, cujo assassinato o transtornou ao ponto de o impelir a abrir numa só noite treze sepulturas do cemitério de Verano, à procura do seu cadáver desaparecido.

Até àquele momento, perante o fascismo, Zaniboni tinha oscilado entre o fascínio e o horror. No pós-guerra, colaborou até esporadicamente no Il Popolo d’Italia e, no verão de 1921, tinha subscrito o caduco pacto de pacificação entre socialistas e fascistas promovido por Mussolini. Depois da morte de Matteotti, porém, fica-lhe apenas o horror. Agredido no Parlamento por alguns deputados fascistas a 3 de junho de 1924, depois, no mesmo dia, atacado outra vez por duzentos fascistas do Grupo Salario, justamente por baixo das janelas do Hotel Dragoni, escapando por pouco à morte, o deputado Zaniboni convenceu-se de que era chamado pelo destino a vingar o massacre de Giacomo Matteotti, chamado a vingar os catorze inocentes mortos em Turim pelos esquadrões de Brandimarte em 1922, os companheiros assassinados em La Spezia em janeiro de 1923 e, depois, a vingar o advogado Consolo, assassinado na presença da mulher e dos filhos, poucos meses antes em Florença, e, ainda, o pobre Pilati e todos os irmãos mações espancados, humilhados, aniquilados e, depois, Piero Gobetti e, depois, Giovanni Amendola e, juntamente com eles, ter sido designado para resgatar todos os outros agravos sofridos há anos, por centenas, por milhares de vítimas indefesas anónimas. E todas essas infinitas vinganças Tito Zaniboni pretende consumar com a precisão no tiro, com um único gesto, um único disparo de carabina, bem assestado, que devolva em poucos décimos de segundo a paz e a justiça à Itália martirizada por anos de inumeráveis e inesquecíveis violências fascistas.

Há mais de um ano que Tito Zaniboni tenta organizar com quem quer que seja um golpe de mão contra o tirano, mas a sua é uma conjura do desespero. Experimentou primeiro com os aventinianos, procurando impeli-los a posições de luta e de revolta nas ruas, mas eles limitaram-se a dissolver-se em ordens do dia de comovente sensatez que acabaram por irritar toda a gente. Experimentou com o rei, pelo qual foi recebido duas vezes, para o impelir a declarar-se contra Mussolini, mas o soberano, colocado perante as suas responsabilidades, refugiou-se nos seus habituais silêncios melancólicos. O vingador, então, tentou organizar a sedição com os exilados antifascistas do clã Garibaldi, depois com os confrades mações do Palazzo Giustiniani, depois com os generais dissidentes; com todos eles se falou de uma mão-cheia de assaltantes, de ações coordenadas, de espingardas da Checoslováquia, mas, no fim, um após outro, constatando com cínico bom senso a delirante inconsistência do projeto – o país não os seguiria, o eco da tragédia de Matteotti, infelizmente, só ressoava nos corações de uns poucos velhos militantes –, um após outro, todos o largaram.

E, contudo, deixado sozinho naquele quarto do Hotel Dragoni, abandonado por todos, o deputado Zaniboni não se rendeu. Os outros, é verdade, falharam-lhe por mil razões não imputáveis a ninguém: irá, portanto, sozinho ao encontro do seu destino. Às vezes, basta um só homem de combate para salvar da vergonha todo um país. Às vezes, basta opor violência à violência. Basta alinhar bem o olhar com a mira da arma na antiga linha de fé que junge a ideia ao olho e o olho ao dedo que aperta o gatilho.

*

Às nove em ponto, muito antes de Benito Mussolini assomar à varanda, o comissário Guido Bellone irrompe no quarto do quinto andar, precedido por um punhado de  agentes. Todos os movimentos de Tito Zaniboni são vigiados há mais de um ano. Quem informou detalhadamente as autoridades sobre o atentado foi Carlo Quaglia, estudante e membro da organização católica juvenil, único conjurado que permaneceu ao lado do deputado socialista, que se tornou informador, primeiro, de Roberto Farinacci e, depois, do chefe da polícia, Francesco Crispo Moncada, por causa de dívidas de jogo, contraídas para pagar o seu outro vício: mulheres de costumes fáceis. Ambos, Farinacci e Crispo Moncada, deixaram a conjura crescer. O primeiro, dir-se-á, na esperança de que o seu êxito, eliminado Mussolini, lhe aplanasse o caminho da sucessão, o segundo a fim de que o seu fracasso, orquestrado no último instante, obtivesse o efeito oposto.

Detido Zaniboni às nove em ponto, em grande segredo, às dez da manhã, segundo o que está previsto no programa do dia, o Duce do fascismo, incólume, arenga da varanda do Palazzo Chigi a uma multidão de antigos combatentes e mutilados que não sabem de nada. Nessa mesma manhã, o presidente do Conselho participa também nas comemorações em honra dos caídos na Igreja de Santa Maria dos Anjos. Também nesta circunstância se comporta como se nada tivesse acontecido.

A notícia só é filtrada no dia seguinte em jornais amigos. A 5 de novembro à noite, quando já Zaniboni, de uma cela de prisão, assumiu plena e exclusiva responsabilidade pelo atentado falhado, um comunicado do Ministério do Interior confirma-o à nação, incluindo entre os conjurados o general Capello, mação de alto grau e controverso herói da Grande Guerra.

De imediato, um arrepio de horror e repulsa percorre a Itália. A condenação popular, encabeçada por membros da família real, parece quase unânime, os telegramas de congratulações pelo perigo evitado chegam do mundo inteiro, entoam-se em centenas de igrejas Te Deum de agradecimento e pede-se de muitos lados a aplicação da pena capital. É uma onda de emoção semelhante àquela que sacudiu o país quinze meses antes, quando se encontrou o cadáver estropiado de Matteotti. De diferente, só há aquele sentimento de alívio que assinala sempre a ligeira vantagem da vida sobre a morte. Agora, graças a Tito Zaniboni, a partida com Giacomo Matteotti está verdadeiramente concluída.

Às 18:00 horas de 5 de novembro de 1925, Benito Mussolini fala à multidão da mesma varanda na qual devia ter morrido na véspera. São milhares a ouvi-lo, devotos, furiosos, comovidos.

O Duce do fascismo dirige-se àquela multidão em delírio como se falasse com uma só pessoa:

– Sentes que, se eu tivesse sido atingido nesta balaustrada, teria sido atingido não um tirano, mas o servidor do povo italiano.

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Há algum tempo que a polícia tinha informações, informações muito confidenciais, de que se estava a preparar um atentado contra a pessoa de S. E. o presidente do Conselho.

Nestes últimos dias obteve-se a confirmação de que o atentado ocorreria durante uma das cerimónias do dia 4 de novembro para celebrar a vitória […].

De facto, ontem, às nove horas, irrompendo-se num dos quartos do Hotel Dragoni, foi surpreendido e detido o ex-deputado da oposição Zaniboni, no momento em que tinha aprestado todos os meios idóneos para levar a cabo o ato criminoso.

Comunicado oficial da Presidência do Conselho, 5 de novembro de 1925

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Exigimos o fuzilamento imediato de todos os responsáveis diretos e indiretos do atentado! com esta providência os fascistas se podem dar por satisfeitos!

Il Popolo di Parma, novembro de 1925

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CRIMINALIDADE ADVERSÁRIOS FASCISMO E TRAIDORES À PÁTRIA IMPÕE CASTIGO EXEMPLAR CULPADOS. OFEREÇO-ME COMO CARRASCO PARA DECAPITAR OS PRESOS.

Telegrama de Arconovaldo Bonaccorsi, esquadrista bolonhês, para Mussolini, 9 de novembro de 1925

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ESTOU DE ACORDO CONTIGO: TAMBÉM ME OFEREÇO COMO CARRASCO!

Telegrama de Balbino Giuliano, filósofo e ex-subsecretário da Instrução Pública, para Arconovaldo Bonaccorsi

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Todo o Aventino deve ser considerado moralmente, senão mesmo materialmente, responsável.

Roberto Farinacci, secretário nacional do PNF

Cremona Nuova, 6 de novembro de 1925

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O período do antifascismo acabou, como acabou toda a sua gente, a quem não resta senão desaparecer.

Enrico Corradini, «Epitáfio»,

Il Popolo d’Italia, 12 de novembro de 1925

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Mussolini é sinónimo de Itália.

The Times,

Londres, novembro de 1925


Benito Mussolini
Benito Mussolini Fotografia não datada de Benito Mussolini créditos: AFP

Benito Mussolini Milão, 28 de dezembro de 1925

– Dai-ma! Se não ma dão, tenho aqui seis tiros: um para ela, os outros cinco para mim.

Ela era filha da nova mulher do seu pai. Ele queria-a. Desejava com furor aquela camponesa de dezoito anos semianalfabeta, última de cinco irmãs, cheia como um ovo maciço, que, tendo a mãe ficado viúva, passara a infância na miséria. Queria-a, de modo que agarrou por um braço a sua promessa de um gozo infinito, arrastou-a a Forlì, via Giove Tonante, até diante do balcão da taberna que Alessandro Mussolini e Anna Guidi mantinham e, puxando de um velho revólver, exigiu que lha dessem, sob a ameaça de a matar e suicidar-se a seguir. Os pais, o pai dele e a mãe dela, aceitaram. Ele, triunfante, levou-a para um modesto apartamento na via Merenda, número 1, e possuiu-a tantas vezes quantas lhe apeteceu, de dia e de noite. Agora, era sua. Sem formalidades, sem papéis passados, sem limites. Sem qualquer Deus. Nenhum casamento, nenhum padre, nenhum registo civil para dois socialistas anarcóides como eles. Só amor livre. Só ardor.

Passados nove meses, Rachele deu à luz a sua primeira filha, a filha da miséria. Batizaram-na com o nome de Edda e, também neste caso, o ídolo dos socialistas revolucionários da federação de Forlì se recusou a contrair matrimónio legal, por amor da filha, não querendo, com isto, reconhecer a autoridade do Estado burguês. Pouco importava que a pequena Edda passasse por desamparada aos olhos do velho mundo decrépito. Ele, Benito Mussolini, sabia, no seu coração e em nome de um futuro melhor, que Edda, como Rachele, era sua.

Depois vieram os anos de Milão, quando, chamado a dirigir o Avanti!, a estrela nascente do socialismo italiano reduzira voluntariamente o seu ordenado e se instalara, com a filha e a companheira, em duas pobres divisões da via Castel Morrone. E os anos da guerra, quando, decaído poucos meses depois de se ter passado para a frente intervencionista, expulso do jornal, banido do partido, repudiado pelos velhos companheiros, ferido pela explosão de um morteiro, o rapaz ardente que tinha ameaçado matar-se se não lhe dessem a camponesazinha procaz, envelhecido de repente no confronto com a morte, com o corpo martirizado por dezenas de estilhaços de ferro galvanizado, atingido por um ataque de febre tifoide, durante a convalescença num hospital de Treviglio, localidade rural da região de Bérgamo, se casou com a sua Rachele, numa cerimónia civil.

M - Mussolini - O Homem da Providência
M - Mussolini - O Homem da Providência créditos: Edições Asa

Livro: “M - Mussolini - O Homem da Providência”

Autor: Antonio Scurati

Editora: Asa

Data de lançamento: 19 de outubro

Preço: 24,75 €

É certo que passou tempo, desde então, mas, pensando bem, não foi assim tanto. Passaram apenas quinze anos desde aquele rapto romântico e menos de uma dezena desde aquele matrimónio dramático e, contudo, na manhã de 28 de dezembro de 1925, Benito Mussolini e Rachele Guidi, perto de se casarem diante de Deus, depois de já se terem casado diante do amor em 1910 e diante dos homens em 1915, teriam dificuldade em reconhecer o homem e a mulher das núpcias precedentes.

Rachele e Benito têm agora três filhos, vivem num apartamento de seis divisões na via Mario Pagano, ela tem motorista e ele é primo do rei, chefe do governo e Duce do fascismo. O seu casamento religioso, se bem que celebrado de forma privada, na presença de duas únicas testemunhas, o irmão Arnaldo e o chefe de gabinete do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Giacomo Paulucci di Calboli, e oficiado sem nenhuma pompa por monsenhor Magnaghi, pároco da vizinha igreja de San Pietro in Sala, é objeto de conjeturas em todo o país. Alguns consideram que, não obstante o seu passado de mata-frades, Mussolini consentiu no rito religioso na esperança de favorecer a reconciliação entre Estado e Igreja, ferozmente divorciados desde os tempos da reunificação nacional. Com este objetivo já Mussolini teria batizado e crismado os três filhos, obtendo, todavia, um mísero resultado, visto que, nas vésperas das núpcias, o papa Pio XI rejeitou os dois projetos de lei para a regulamentação da Igreja em Itália, elaborados em dez meses e trinta e cinco sessões de uma comissão governamental. Outros sustentam que o Duce foi impelido a este passo pelo mesmo motivo que o impeliu ao casamento civil em 1915: o agravamento da úlcera ter-lhe-ia de novo apresentado a perspetiva da morte.

A morte… que disparate! Um medo infundado, a sobrevivência de antigas crenças, uma superstição para espíritos ofuscados. Uma metáfora abusiva. A dor que nos afasta de nós próprios, a fenda que nos parte em duas metades, proibindo-nos absolutamente de nos reconciliarmos com a nossa vida, essa que, sim, é uma certeza. E, efetivamente, ele passou o domingo inteiro na cama da amante no seu palácio do corso Venezia e, agora, na manhã de segunda-feira, bem fresco, casa-se com a sua mulher diante de um padre, no apartamento deles, na via Pagano. Segunda-feira com a mulher e domingo com a amante, mas em ambos os casos num leito de dor.

No domingo, 27 de setembro de 1925, Benito Mussolini sofreu de facto nada menos que cinco crises estomacais. Margherita Sarfatti, em cujo leito se tinha refugiado para escapar ao tédio da casa de família, desesperada, chamou de urgência o Dr. Puccinelli e, depois, desesperou ainda mais, porque a luminária não achou necessário examinar outra vez o vómito produzido por aqueles cinco ataques. Dispôs antes que fosse lançado na latrina, depois de uma simples olhadela. Margherita, então, chamou também o Dr. Cesa Bianchi, o qual se queixou muito de só poder examinar os poucos restos do vómito que ficaram na toalha, mas, concluiu, mesmo assim, concordando com Pescarolo, que era preciso operar, operar de urgência. «É como se caminhasse num fio de aço, continuamente esticado à altura de quatro andares. Com o vazio por baixo.» Nesta imagem, textual, terá o médico plasmado a condição do doente.

Eis, finalmente, uma imagem com a qual se pode viver! Um fio de aço, esticado à altura de quatro andares e o vazio por baixo. A vida é assim… Não existe refúgio, em parte nenhuma, não existe corpo perfeitamente são. É óbvio, então, que um espírito indómito, prisioneiro de um corpo perenemente doente, decida apropriar-se daquela imagem vital, alçar-se à altura do funâmbulo. Confiaremos na boa estrela, na grande estrela que nunca nos abandonou. Na boa estrela e no atentado.

Desde que aquele pobre demente do Tito Zaniboni lhe apontou uma espingarda, Benito Mussolini, com úlcera ou sem ela, está, de facto, restabelecido. A mira telescópica da arma austríaca teve um efeito taumatúrgico. Desde o dia seguinte ao atentado que começou em todo o país uma verdadeira corrida de apoio ao fascismo. Quase toda a classe política burguesa, o mundo económico e o da burocracia, desde que Farinacci gritou o seu ultimato – «Ou connosco ou contra nós!» –, saltou para o carro do sobrevivente. A superioridade do fascismo é total, a política é um estado de guerra permanente, travar uma guerra significa abater os inimigos e ele – Duce do fascismo – possui agora toda a força necessária.

Já em 18 de novembro, na onda de desconcerto pelo atentado, fez apresentar na Câmara uma lei sobre as novas atribuições e prerrogativas do chefe do governo. Prevê que o presidente do Conselho fique investido da soberania do Estado a título parelho ao do rei e que o Parlamento se subordine totalmente ao executivo. Outro passo decisivo para a ditadura. Na véspera de Natal, a Câmara aprovou-a sem discussão e só no Senado se levantaram algumas vozes de desacordo. No mesmo dia, o Duce fez aprovar a lei sobre a dispensa de serviço dos funcionários públicos que não aderissem às diretivas políticas do governo fascista. No entretanto, a imprensa fora definitivamente subjugada pela expulsão dos Albertini do Corriere della Sera e a conversão em lei dos decretos liberticidas do ano anterior; a maçonaria fora esmagada; o Partido Socialista Unitário, dissolvido, e os sindicatos eliminados do mapa, transferindo-se o monopólio da representação dos trabalhadores para a Confederação das Corporações Fascistas. Os industriais, por fim, já desde o acordo do Palazzo Vidoni, firmado a 2 de outubro, se tinham definitivamente enquadrado nas fileiras do regime. O futuro, o futuro iminente, nunca foi tão prometedor para Benito Mussolini. E tudo graças a uma única espingarda que nem sequer disparou.

A oposição cai sob os golpes de uma enxada que os próprios condenados dão na terra, para cavar a sua sepultura. A burocracia obedecerá às ordens de não conspirar abertamente contra o regime, para continuar a fazê-lo às escondidas. A imprensa, de modo mais simples, deixar-se-á amordaçar para continuar a falar sem ter nada para dizer. O trabalho de parto do Estado fascista está prestes a terminar. O seu parteiro, de uma absoluta competência jurídica, é Alfredo Rocco, líder nacionalista desapiedadamente conservador. Foi a ele que Mussolini confiou a redação das leis liberticidas. Está pronta a derrocada do Estado liberal: já não é o indivíduo que cede parte da sua liberdade ao Estado para, em troca, receber dele proteção e cuidados, mas o Estado que outorga, a uma taxa de juro exorbitante, na medida e dentro dos limites estabelecidos em cada momento, o benefício das liberdades públicas. Quanto ao resto: identidade entre fascismo, pátria e cidadania; supressão de toda a crítica; disciplina de obediência absoluta; repressão severa de qualquer desobediência; poder despótico do Duce. É a sua vida, aliás, que os terroristas queriam e a ele compete, por conseguinte, o comando. Agora o terreno está finalmente desobstruído, o corte com o passado é nítido, a batalha do ano 1925 termina com vantagem.

Ele disse-o com clareza, na retoma dos trabalhos parlamentares: agora pretende falar ao mundo. Graças a ele, ao fim de séculos, a Itália está de novo no palco mundial e o mundo divide-se em torno de uma ideia italiana. Essa ideia é o fascismo.

Entretanto, na via Mario Pagano, em Milão, perante testemunhas, o padre Magnaghi perguntou-lhe se quer de facto uma coisa. Monsenhor espera a resposta. Também a espera Rachele, a mulher raptada quinze anos antes, com a encenação de propósitos suicidas, e que lhe deu três filhos, desde então. Benito Mussolini não hesita um segundo:

– Sim, quero!

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Em 28 de outubro de 1922 aconteceu em Itália um coisa muito grave e muito decisiva para a história de Itália […] uma mudança de regime, ou seja, não de método de governo, mas de mentalidade, de espírito político, de conceção do Estado […]. O entendimento que moveu o governo a propor toda esta série de reformas legislativas é, principalmente, o de constituir uma nova legalidade, para regressar à legalidade.

Alfredo Rocco, jurista, ministro da Justiça, discurso no Senado,

14 de dezembro de 1925

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Esta lei assinala uma viragem, uma viragem brusca e, para mim, assustadora no curso de toda a nossa vida pública. Aqui, hoje, ao votar esta lei, marca-se verdadeiramente o ponto de rutura de um regime e do surgimento de outro.

Francesco Ruffini, historiador e jurista liberal, discurso no Senado,

15 de dezembro de 1925

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Já mencionei que, desta vez, falaria com uma certa emoção, porque estamos a assistir, digamo-lo com toda a sinceridade, às exéquias de uma forma de governo; nunca pensei ser o único a fazer o elogio fúnebre do regime parlamentar.

Gaetano Mosca, jurista antifascista, discurso no Senado,

19 de dezembro de 1925

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Mas quem é que percebe alguma coisa? Não se encontra um antifascista nem pago a peso de ouro.

Carta de Italo Balbo a Cornelio Di Marzio,

25 de dezembro de 1925