PRÓLOGO
Todas as pessoas da minha família mataram alguém. Alguns de nós, os de elevado desempenho, mataram mais do que uma.
Não estou a tentar ser dramático, mas é a verdade, e quando me defrontei com a missão de registar os factos por escrito, por difícil que seja fazê-lo só com uma mão, dei-me conta de que contar a verdade seria a única maneira de o fazer. Embora pareça óbvio, os romances policiais modernos esquecem-no por vezes. Passaram a ser mais sobre os truques que o autor ou a autora podem utilizar: o que têm na manga em vez do que está na sua mão. A honestidade é o que faz destacar aqueles a que chamamos romances policiais da «Idade de Ouro»: os Christies, os Chestertons. Sei-o, porque escrevo livros sobre como escrever livros. O facto é que existem regras. Um sujeito chamado Ronald Knox pertencia ao gangue e redigiu em tempos uma lista de regras, embora lhes tenha chamado os seus «Mandamentos». Encontram-se no princípio deste livro, na epígrafe que os leitores saltam sempre, mas, confiem em mim, vale a pena voltar atrás. De facto, deviam dobrar o canto da página. Não os maçarei com os pormenores aqui, mas resume-se ao seguinte: a Regra de Ouro da Idade de Ouro é jogo limpo.
É claro, este livro não é um romance. Tudo isto me aconteceu. No entanto, não deixa de se me deparar um caso de homicídio por resolver. Vários, de facto. Mas estou a precipitar-me.
A questão é que eu leio muitos romances policiais. E sei que, nos dias que correm, a maioria desse tipo de livros tem o que é conhecido como um «narrador não-confiável», em que a pessoa que conta a história está de facto a mentir na maior parte do tempo. Sei igualmente que ao contar estes acontecimentos poderei ser estereotipado dessa forma. Portanto, esforçar-me-ei por fazer o oposto. Podem chamar-me um narrador confiável. Tudo o que contar será a verdade, ou, pelo menos, a verdade tal como a conhecia na altura em que julgava conhecê-la. Podem tomar nota das minhas palavras.
Tudo isto está conforme ao oitavo e ao nono mandamentos de Knox, porque sou simultaneamente Watson e Detetive neste livro, onde desempenho ao mesmo tempo o papel de escritor e o de detetive, e portanto sou obrigado a descobrir pistas e a não ocultar os meus pensamentos. Em suma: jogo limpo.
De facto, prová-lo-ei. Se só estão aqui para os detalhes sanguinolentos, as mortes neste livro acontecem ou anuncia-se que aconteceram nas páginas 27, 62, 81, duas pelo preço de uma na página 93, e três seguidas na página 101. Depois, há um intervalo, mas retoma-se na página 202, por volta da página 240, na página 251, na 261, na 285, algures entre a página 278 e a página 285 (é difícil dizer ao certo), na página 298 e na página 399. Juro que é a verdade, a não ser que o tipógrafo baralhe as páginas. Existe apenas um buraco no enredo, um buraco por onde podia passar uma carrinha grande. Tenho tendência para estragar as coisas. Não há cenas de sexo.
E que mais?
Suponho que seria útil saberem o meu nome. Chamo-me Ernest Cunningham. Como o meu nome próprio é um pouco antiquado, as pessoas chamam-me Ern ou Ernie. Devia ter começado por aí, mas prometi ser confiável, não competente.
Tendo em consideração o que vos disse, é complicado saber por onde começar. Quando digo todas as pessoas, limitemos a aplicação dessa declaração ao meu ramo da árvore genealógica. Embora a minha sobrinha Amy tenha levado uma vez uma sanduíche de manteiga de amendoim proibida para um piquenique da empresa e o representante dos Recursos Humanos quase tenha batido a bota, não a incluirei no cartão do bingo.
Atenção, não somos uma família de psicopatas. Alguns de nós são bons, outros são maus e outros ainda são simplesmente azarados. A que grupo pertenço? Ainda não descobri. É claro que existe igualmente a pequena questão de um assassino em série conhecido como o Língua Preta, que está envolvido em tudo isto, e de 267 mil dólares em notas, mas lá chegaremos. Sei que devem estar a perguntar-se mais outra coisa neste momento. De facto, eu disse todas as pessoas. E prometi que não haveria truques.
Matei alguém? Sim. Matei. Quem?
Comecemos.
O MEU IRMÃO
CAPÍTULO 1
Um só feixe de luz em rotação visto através das cortinas indicou-me que o meu irmão acabara de virar para o caminho da minha casa. Quando saí, a primeira coisa em que reparei foi que o farol esquerdo do carro do Michael estava partido. A segunda coisa em que reparei foi no sangue.
A Lua tinha desaparecido, o Sol ainda não nascera, mas, mesmo nas trevas, eu sabia exatamente o que eram os pontos escuros que salpicavam o farol estilhaçado e manchavam uma amolgadela substancial no arco da roda.
Não costumo ser noctívago, mas o Michael telefonara-me meia hora antes. Foi um daqueles telefonemas em que, quando com olhos de sono vemos que horas são, adivinhamos que não é para a pessoa nos dizer que ganhou a lotaria. Tenho amigos que, ocasionalmente, me telefonam do Uber com uma história mirabolante de uma bela saída à noite. O Michael não se inclui nesse grupo.
Acabei de escrever uma mentira. Eu não seria amigo de pessoas que me telefonassem depois da meia-noite.
– Preciso de te ver. Agora.
O Michael respirava pesadamente. A chamada era de um número não identificado, de um telefone público. Ou de um bar. Passei a meia hora seguinte a tremer, mesmo com um casaco grosso vestido, a limpar círculos de condensação na vidraça da janela da frente, para ver melhor a chegada dele. Já tinha desistido do meu posto de sentinela e retirara-me para o sofá quando o farol dianteiro do carro dele tremeluziu, vermelho, na parte interna das minhas pálpebras.
Ouvi um rosnado quando ele parou e de seguida desligou o motor, mas não a parte elétrica. Abri os olhos, apreciei o teto por um instante, como se soubesse que quando me levantasse do sofá a minha vida mudaria, e fui até lá fora. O Michael estava sentado dentro do carro, com a cabeça pousada no volante. Cortei a meio o solitário foco de luz quando passei à frente do capô do carro para bater na janela do lado do condutor. O Michael saiu do carro. O seu rosto estava da cor da cinza.
– Tiveste sorte – disse eu, acenando com a cabeça na direção do farol partido. – Os cangurus podem dar cabo de uma pessoa.
– Atropelei alguém.
– Hã-hã.
Como estava meio a dormir, quase não me apercebi de que ele dissera alguém e não alguma coisa. Não sabia o que se diz nessas situações, portanto pensei que, provavelmente, seria boa ideia concordar com ele.
– Um tipo. Atropelei-o. Está lá atrás.
Fiquei desperto. Lá atrás?
– Que diabo queres dizer com lá atrás? – perguntei.
– Está morto.
– Está no banco de trás ou na mala?
– O que é que isso importa?
– Estiveste a beber?
– Não muito. – Hesitou. – Talvez. Um pouco.
– No banco de trás? – Dei um passo e estendi a mão para a porta, mas o Michael deitou o braço de fora. Parei de andar, disse: – Temos de o levar ao hospital.
– Está morto.
– Não posso crer que estamos a discutir sobre isto. – Passei a mão pelo cabelo. – Michael, vá lá. Tens a certeza?
– Nada de hospitais. O pescoço dele torceu-se como um cano. Tem metade do crânio virado do avesso.
– Preferia ouvir isso da boca de um médico. Podemos telefonar à Sof...
– A Lucy ia ficar a saber – disse o Michael, interrompendo-me.
O nome dela, dito de um modo tão desesperado, tornava claro o subtexto: A Lucy deixava-me.
– Vai correr tudo bem.
– Estive a beber.
– Só um pouco – recordei-lhe.
– Pois. – A pausa prolongou-se. – Só um pouco.
– Tenho a certeza de que a polícia vai compr... – comecei a dizer, mas ambos sabíamos que o apelido Cunningham dito em voz alta numa esquadra de polícia praticamente abalava as paredes com os espíritos que convocava. A última vez que eu e ele tínhamos estado numa sala cheia de polícias fora num funeral, entre um mar de uniformes azuis. Eu já tinha altura suficiente para me enroscar à volta do antebraço da minha mãe, mas era suficientemente novo para permanecer colado a ela todo o dia. Imaginei por breves momentos o que a Audrey pensaria de nós agora, encolhidos na manhã gélida a discutir sobre a vida de alguém, mas arredei esse pensamento.
– Ele não morreu por eu o ter atropelado. Alguém lhe deu um tiro, só depois é que o atropelei.
– Hã-hã.
Tentei dar a impressão de que acreditava nele, mas há uma razão para o meu currículo teatral consistir maioritariamente em papéis mudos nas peças da escola: animais da quinta, vítimas de homicídio, arbustos. Estendi a mão para o puxador da porta mais uma vez, mas o Michael mantinha-a bloqueada.
– Limitei-me a pegar nele. Pensei... não sei, que era melhor do que deixá-lo na rua. E depois não consegui pensar no que fazer a seguir, e acabei por vir para cá.
Não disse nada, apenas acenei com a cabeça. A família é força da gravidade.
O Michael esfregou a boca com as mãos e falou por trás delas. O volante deixara-lhe uma pequena amolgadela vermelha na testa.
– Não vai importar aonde o levemos – disse, por fim.
– OK.
– Devíamos enterrá-lo.
– OK.
– Para de dizer isso.
– Está bem.
– Queria dizer que parasses de concordar comigo.
– Devíamos levá-lo ao hospital, então.
– Estás do meu lado ou não? – disse o Michael. Lançou um olhar ao assento traseiro, voltou a meter-se no carro e ligou o motor. – Eu resolvo as coisas. Entra.
Eu já sabia que entraria no carro. Não sei realmente porquê. Suponho que parte de mim calculava que, se estivesse no carro, podia fazer-lhe ver a razão. Porém, tudo o que sabia realmente era que o meu irmão mais velho estava ali à minha frente a dizer-me que tudo ia ficar bem, e, seja qual for a idade que se tenha – cinco anos ou trinta e cinco –, se o nosso irmão mais velho nos diz que vai resolver as coisas, nós acreditamos. Gravidade.
Um breve esclarecimento: de facto, tenho trinta e oito anos nesta parte da história, quarenta e um quando chegarmos ao momento presente, mas pensei que tirar um par de anos à minha idade podia ajudar a minha editora a propor o livro a um ator de renome.
Entrei no carro. Havia um saco de desporto da Nike, aberto, no chão do lugar do passageiro. Estava cheio de notas, não atadas em maços com pequenos elásticos ou cintas de papel como nos filmes, mas todas amontoadas, a transbordarem para o chão. Dava uma sensação estranha simplesmente pousar os pés em cima do dinheiro, porque havia muito e, presumivelmente, o homem que se encontrava no assento traseiro morrera por causa dele. Não olhei pelo espelho retrovisor. OK, disparei uns olhares, mas só vi um vulto negro de uma sombra que parecia mais um buraco no mundo do que um corpo, e acobardei-me de cada vez que a imagem ameaçava ficar nítida.
O Michael ligou o motor e saiu do caminho da casa em marcha-atrás. Um copo de shot ou algo do género deslizou a tilintar pelo tabliê e rolou para debaixo do assento. Havia um vago cheiro a uísque. Por uma vez, senti-me contente por o meu irmão gostar de fumar umas ganzas, porque o fumo da erva entranhado nos estofos mascarava o cheiro da morte. A mala fez barulho, com o fecho estragado, quando o carro galgou a berma do passeio.
Um pensamento horrível cruzou-me a mente. Ele tinha um farol estilhaçado e a mala estragada: como se tivesse atingido algo duas vezes.
– Aonde vamos? – perguntei.
– O quê?
– Sabes aonde vamos?
– Oh. Ao parque nacional. À floresta.
Michael olhou para mim, mas, como não conseguiu sustentar o meu olhar, lançou um olhar furtivo ao banco traseiro, pareceu arrepender-se e decidiu fitar o espaço à sua frente. Começara a tremer.
– Sei lá. Nunca enterrei um corpo.
Já viajávamos há mais de duas horas quando o Michael decidiu que tínhamos seguido por um número suficiente de estradas de terra batida e virou o seu carro ciclópico e ruidoso para uma clareira. Saíramos de uma estrada florestal alguns quilómetros atrás e tínhamos avançado a corta-mato desde então. O Sol ameaçava nascer. O chão estava coberto com uma neve cintilante e macia.
– Aqui serve – disse o Michael. – Estás bem?
Acenei com a cabeça. Ou, pelo menos, pensei que acenara. Não devo ter-me mexido, porque o Michael estalou os dedos em frente ao meu rosto, forçando-me a concentrar-me. Consegui fazer o aceno de cabeça mais fraco da história da humanidade, como se as minhas vértebras fossem grilhetas enferrujadas. Foi o suficiente para o Michael.
– Não saias – disse ele.
Deixei-me ficar a olhar em frente. Ouvi-o abrir a porta de trás e mover-se por ali arrastando o homem – um buraco no mundo – para fora do carro. O meu cérebro gritava-me que fizesse alguma coisa, mas o meu corpo era um traidor. Não conseguia mexer-me.
Ao fim de uns minutos, o Michael voltou, transpirado, com terra na testa, e inclinou-se sobre o volante.
– Vem ajudar-me a cavar.
As minhas pernas destravaram-se com a ordem dele. Contava que o solo estivesse frio, esperava ouvir o estalido do gelo matinal, mas o meu pé enfiou-se pelo tapete branco até ao tornozelo. Olhei mais atentamente. O solo não estava coberto de neve, mas de um manto de teias de aranha. As teias estavam penduradas entre ervas altas e rígidas, a uns trinta centímetros do chão, cruzadas umas por cima das outras tão densamente e de um branco tão puro que pareciam sólidas. O que eu julgara ser gelo cintilante era o brilho de fios finos à luz. Os passos do Michael tinham furado a teia gigante como buracos em pó. As teias cobriam toda a clareira. Era majestoso, sereno. Tentei ignorar o vulto irregular no meio da clareira atapetada a teias, onde terminavam as pegadas do Michael. Segui o meu irmão, e foi como avançar por um nevoeiro levitante. Conduziu-me na direção oposta à do corpo, presumivelmente para eu não me ir abaixo.
O Michael tinha uma pá pequena, mas fez-me usar as mãos. Não sei porque aceitei cavar. Viera toda a viagem a pensar que o medo do Michael, aquele pequeno acesso de tremores que ele tivera quando partimos, o dominaria. Devia haver um momento em que ele se aperceberia daquilo em que estava metido até ao pescoço e daria meia-volta. Mas foi o contrário. Ao sair da cidade, a caminho da madrugada, tornara-se mais calmo, estoico.
O Michael tapara a maior parte do corpo com uma toalha velha, mas eu via um cotovelo branco, espetado como um ramo caído acima das teias de aranha.
– Não olhes – dizia o Michael, sempre que eu lançava um olhar na direção do corpo.
Continuámos a cavar durante mais quinze minutos, em silêncio, até eu parar.
– Continua a cavar – disse o Michael.
– Ele está-se a mexer.
– O quê?
– Ele está-se a mexer! Olha. Espera.
Era verdade, a superfície rendilhada estava a estremecer. Mais significativamente do que o efeito do vento soprando pela clareira. A impressão alterara-se de neve sólida para um oceano branco com ondas. Quase o sentia através dos fios, como se eu fosse a aranha que tecera a teia, o nervo central.
O Michael parou de cavar e olhou para cima.
– Volta para o carro.
– Não.
O Michael dirigiu-se para o corpo e retirou a toalha. Segui-o, e vi o corpo na sua totalidade pela primeira vez. Havia uma mancha escura brilhante acima da anca. Alguém lhe deu um tiro, depois atropelei-o, dissera o Michael. Eu não tinha a certeza; só tinha visto disparos de tiros em filmes. No pescoço do homem havia um chumaço, como se ele tivesse engolido uma bola de golfe. Trazia uma balaclava preta, mas ela não tinha a forma normal. Havia saliências nos sítios errados do tecido. Quando eu era pequeno, um bully da minha escola costumava meter duas bolas de críquete numa meia e arremessá-la a mim. Era o que parecia a balaclava. Deu-me a sensação de que o tecido era a única coisa que mantinha a cabeça numa peça só. A balaclava tinha três buracos, dois para os olhos, que estavam fechados, e um para a boca. Havia pequenas bolhas vermelhas acumuladas nos seus lábios, a pulsarem. A espuma das bolhas estava a aumentar, derramando-se pelo queixo do homem.
Embora não conseguisse ver-lhe as feições, adivinhava pelos seus braços manchados e com a pele estragada pelo sol e pelas veias salientes nas costas das suas mãos que era pelo menos vinte anos mais velho do que o Michael.
Ajoelhei-me, entrelacei os dedos e fiz um par de compressões rudimentares. O peito do homem abaulou-se de uma maneira que eu sabia que não era normal, ao longo do esterno, e, por um momento, só consegui pensar que o peito dele era como o saco com dinheiro, aberto na parte do meio.
– Estás a magoá-lo – disse o Michael, pondo a mão por baixo do meu braço e puxando-me para cima antes de me afastar dali.
– Temos de o levar ao hospital – disse eu, tomando uma última posição, de súplica.
– Ele não chega lá.
– Pode ser que sim.
– Não chega.
– Temos de tentar.
– Não posso ir ao hospital.
– A Lucy vai compreender.
– Não.
– Já deves estar sóbrio.
– Talvez.
– Não o mataste. Disseste que ele apanhou um tiro. O dinheiro é dele?
O Michael grunhiu.
– Claramente, ele roubou-o. Isto faz sentido. Tu vais ficar bem.
– São duzentos e sessenta mil paus.
Os leitores e eu já sabemos que, de facto, eram duzentos e sessenta e sete mil dólares, mas na altura não deixei de notar que, embora ele não tivesse tido tempo para chamar uma ambulância, tivera tempo para contar o dinheiro por alto. Caso contrário, teria dito duzentos e cinquenta, um número redondo, se se tivesse deitado a adivinhar. Dissera-o também como uma espécie de apelo. Não consegui compreender pelo seu tom de voz se estava a oferecer-me algum ou simplesmente a declarar um facto que considerava importante para a decisão.
– Ouve, Ern, o dinheiro é nosso... – disse ele, começando a implorar.
Então, sempre estava a oferecer.
– Não podemos simplesmente deixá-lo aqui neste estado – disse eu. E depois, com mais firmeza do que alguma vez na minha vida usara para falar com ele, acrescentei: – Não faço isso.
O Michael pensou por um minuto. Acenou com a cabeça.
– Eu vou ver como ele está – disse.
Aproximou-se do corpo e acocorou-se junto a ele. Esteve ali durante uns dois minutos. Senti-me contente por ter vindo; ainda acredito que isso foi bom. Um irmão mais velho não dá ouvidos com muita facilidade ao seu irmão mais novo, mas ele precisara de mim ali. E eu remediara a coisa. Afinal, o homem estava vivo e nós íamos levá-lo ao hospital. Não via grande coisa, porque o Michael é alto, mas via-lhe as costas curvadas e os braços, estendidos na direção da cabeça do homem, porque sabia que devia segurar-lhe o pescoço para o caso de ele ter alguma lesão na coluna. Os braços magros do Michael moviam-se para cima e para baixo. RCP, a tentar ligar o homem como se ele fosse um corta-relvas. Eu via as pernas do homem. Reparei que não tinha um dos sapatos. O Michael já ali estava há muito tempo. Passava-se algo de errado. Estamos na página 27.
O Michael levantou-se e voltou para junto de mim.
– Já podemos enterrá-lo – disse.
Não era o que se esperava que dissesse. Não. Não. Aquilo estava errado. Recuei a cambalear e tombei em cima do rabo. Uns fios pegajosos enredaram-se nos meus braços.
– O que aconteceu?
– Ele simplesmente parou de respirar.
– Ele simplesmente parou de respirar?
– Simplesmente parou.
– Está morto?
– Está.
– Tens a certeza?
– Tenho.
– Como?
– Simplesmente parou de respirar. Vai esperar no carro.
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