The Weeknd já não é The Weeknd. Ou melhor, continua a ser The Weeknd, porque é esse o nome que levou dezenas de milhares de pessoas ao Passeio Marítimo de Algés, a um dia de semana (perdoem-nos o trocadilho infame), para ouvir de perto algumas das canções que mais marcaram a pop da última década. Mas é um nome que o seu autor quer matar, como admitiu à revista “W”, no mês passado. “Estou pronto para fechar o capítulo The Weeknd”, disse então. “Ainda farei música, talvez como Abel, talvez como The Weeknd, mas quero matar o The Weeknd. E assim farei”.
Em “Confissões de Uma Máscara”, a sua obra-prima, Yukio Mishima escreveu assim: «o que as pessoas consideravam como uma atitude era, em mim, na realidade, a expressão da necessidade de afirmar a minha verdadeira natureza». A natureza de The Weeknd, que começou por se apresentar am Algés com uma máscara, já teve várias peles: a do tipo que cantava sobre andar drogado e a sofrer de amores ('The Morning'), a do que assumia sem rodeios o seu egocentrismo ('Starboy', por exemplo), a do que brincava com o seu próprio estatuto (como num episódio de “American Dad”, em que troça do próprio conceito de The Weeknd como estrela/galã), a do que transforma esse estatuto em sociopatia (como na série de sua autoria, e a qual protagoniza, estreada recentemente: “The Idol”). Em tudo um lado comum: The Weeknd sempre se viu como uma estrela pop. Na sua natureza esteve sempre a suplantação, o erguer-se sobre os comuns mortais.
Daí que o seu regresso ao seu nome de baptismo, Abel Tesfaye, soe a algo estranho. É difícil dizer o que passará pela cabeça do canadiano: a fama já não é o que era? A julgar pelas primeiras reações a “The Idol”, onde a sua personagem tem sido descrita como o exemplo perfeito de toxicidade masculina, talvez assim seja. Já não é permitido às grandes estrelas serem mais que o normal: é-lhes agora exigido que partilhem da nossa batuta moral. Uns chamam-lhe cancel culture, outros chamam-lhe censura, outros ainda dizem que responsabilizar alguém pelos seus erros mais não é que senso comum.
Mas olhamos em volta, por toda a extensão de um Passeio Marítimo de Algés a rebentar pelas costuras, e perguntamo-nos, primeiro, se alguém olha de facto para The Weeknd / Abel Tesfaye como algo menos do que um ídolo e, segundo, se alguém o responsabiliza mais do que o perdoa.
A indumentária foi adotada por muitos dos presentes: vermelho e preto, as cores de “After Hours”, um dos discos que veio apresentar neste que foi o primeiro concerto da sua nova digressão europeia. Os gritos de entusiasmo também se fizeram ouvir. A cantoria comunitária, ficou talvez para segundo plano sempre que um tema mais antigo (como a supracitada 'The Morning', que o próprio descreveu como “um tema especial”, e que da zona onde nos encontrávamos poucos entoaram por desconhecimento) se fazia ouvir.
Os telemóveis, “um quintal de iPhones”, como disseram ao nosso lado, poucas vezes foram guardados. Ninguém foi sequer capaz de recorrer ao adjetivo “problemático” quando o canadiano se lançou a 'Hurricane', tema de um homem que, no último ano, destruiu por completo a sua carreira: Kanye West.
Porque haverá de querer The Weeknd, então, voltar a ser um “simples” Abel Tesfaye? Talvez por uma questão de controlo. Esse não foi o nome que ele escolheu como indivíduo, mas poderá ser o nome que ele escolhe para se mostrar ao mundo. The Weeknd era uma personagem, uma máscara: o seu rosto, a sua voz, a sua arte estão para além de tudo isso. No reformular da sua identidade encontramos o elã de uma verdadeira estrela. A perceção que temos dele é a perceção que ele quer que tenhamos dele. A história é escrita pelos vencedores, e no que toca à sua história, ele quer ser o único vencedor.
Esta tarde-noite só não foi uma vitória completa de The Weeknd / Abel Tesfaye pelo simples motivo de não ser em recinto ao ar livre que um espetáculo pop mais consegue marcar quem a ele assiste. Em sala fechada, tudo é diferente: o olhar está inteiramente colocado num palco que não dista mais que alguns metros do local onde nos encontramos. Num recinto como o Passeio Marítimo de Algés, tudo isso se perde; a estátua prateada que mandou construir não nos parece tão imponente como no Instagram, o rodopio dos seus bailarinos, em palco (entidades com o seu quê de fantasmagórico, vestidas do mesmo branco que ele), não parece tão talentoso, mesmo o próprio som acaba por se perder nas conversas alheias. Pior só para quem correu para o mais perto possível do palco, imaginando que iria observá-lo de perto; o músico passou a esmagadora maioria do concerto na língua, a uns bons metros de toda a estrutura, que simulava os destroços de uma grande cidade.
Claro que isso não significa que The Weeknd não se tenha esforçado por dar um bom espetáculo. Por diversas vezes, gritou os nomes de Lisboa e de Portugal, em busca daquele omnipresente orgulho patriótico. Por outras tantas garantiu amar os presentes, desdobrando-se em agradecimentos pela forma como o público o acolheu, chegando até a lembrar o concerto que ali deu (no NOS Alive, em 2017) e a sua estreia absoluta em Portugal (no NOS Primavera Sound, em 2012). Não faltaram canções por demais conhecidas como 'Can't Feel My Face', 'Starboy' ou 'Take My Breath', que abriu o concerto em modo Daft Punk. E existiu inclusive um momento de interação, através das pulseiras oferecidas à entrada: em três ou quatro canções, estas se acenderam de forma automática, levando ao espanto coletivo.
A incursão por 'House Of Balloons', canção presente no seu primeiro disco (e onde sampla Siouxsie Sioux, que foi madrasta de muito do trip-hop e de quem faz rap mais deprimido), serviu para deixar em êxtase os fãs da velha guarda, que é como quem diz, aqueles que já o conhecem desde 2010, ainda o TikTok não existia; 'Die For You', slow jam que a meio se transforma em coisa dançável, aqueceu corações; antes do encore, 'Blinding Lights', êxito que já bateu recordes, colocou todos a saltar, até que o músico optou por celebrar o presente: 'Double Fantasy', 'Creepin'' e 'Popular', esta última lançada há meros dias, assinalaram a despedida de The Weeknd de Algés.
Para trás ficaram quase quatro horas de música (contando com as primeiras partes, a cargo de Mike Dean e Kaytranada, e das quais poucos ou nenhuns quiseram saber), um concerto que poderia ter sido excecionalmente melhor noutro tipo de ambiente, e uma identidade por decidir: quem vais ser agora, Abel Tesfaye? Ninguém o saberá responder – mas se o assunto é The Weeknd todos saberão defini-lo. Como um motherfucking starboy, como o sempre quis ser.
Comentários