Na era gourmet que vivemos, o acto de comer e beber tornou-se uma espécie de ritual que vai além da necessidade básica que cada um dos verbos encerra. Já não basta saber bem. Sabe melhor se soubermos mais sobre de onde vem o que comemos e bebemos, como é feito, que truques são usados para apurar o sabor ou escolher melhor. Mas foi a pensar nuns e noutros que a organização da prova achou boa ideia ter um espaço para um mestre cortador.
Cortador de quê? De presunto.
Onde? Na Volvo Ocean Race, competição que até ao próximo domingo assenta arraiais em terras portuguesas, mais concretamente em Lisboa, na Doca de Pedrouços.
Mas então uma competição de vela não apela mais a sabores do mar?
Depende. Depende sobretudo de experimentar o presunto e depois logo diz de sua justiça.
O presunto que nos é servido no espaço "O Mar que nos Une", local com uma vista privilegiada na "village" da Volvo Ocean Race é espanhol, mas a probabilidade de ser feito de porco português é não apenas real como plausível. Não se alegrem os espíritos mais nacionalistas com o pensamento que a jóia da coroa da gastronomia espanhola - que é disso que se trata quando falamos de presunto espanhol - é afinal made in Portugal. Na sua maioria não será, mas algumas tapas serão de porco criado em pasto nacional, isso é tão certo quanto o facto de mais de 90% do porco ibérico ou de raça alentejana como por cá lhe chamamos ou mais comum e simplesmente porco preto ser exportado de Portugal com destino a Espanha.
“Geneticamente são iguais”, explica Jaques Abreu da Costa, “o português é mais puro porque sofreu menos cruzamentos com outras raças”. Mas é Espanha que tem tradição. Como se pode aferir pela marca deste presunto que Jaques corta sem esforço de seu nome Carrasco, de Guijuelo, ganadeiros com 120 anos de história. O que não significa que em Portugal não tenha história, sublinha, enquanto conta que já em 1513, no Foral de Nodar, terra a 15 quilómetros de Barrancos, o rei D. Manuel assinalava a importância da bolota naqueles pastos.
Essa bolota que vem dos tempos quinhentistas continua a ser hoje o segredo de uma carne que se diferencia pelo sabor - ou pelos sabores como veremos mais à frente. O porco ibérico é a única raça capaz de converter o que come com esta métrica: se comer 10 quilos de bolota por dia, engorda um quilo por dia. E atenção: bolota descascada pelo próprio, o porco bem-entendido, que na boca se desembaraça da casca. Da bolota, rica em ácido oleico, vem a “boa” gordura deste presunto que é 60% constituído por este elemento.
Apesar deste outono de candeias às avessas com o clima natural da época, esta é a época do bom pasto - ou o período da montanheira como é designado. O porco ibérico de produção extensiva, o mesmo e dizer criado ao ar livre e alimentado no pasto, anda por dia 10 a 15 quilómetros. Anda muito e come bem. E é assim que chegará a fevereiro com 80 ou 90 quilos de peso, quando acaba a bolota. Uma história bem diferente do “primo” porco branco também dito “porco de aviário”, alimentado a ração industrial e confinado a um espaço de dois metros quadrados.
A fileira de produção de porco preto começou tarde em Portugal, comparando com a tradição espanhola. Apenas em 1991 se começou a organizar e, nas palavras de Jaques, ainda há trabalho a fazer, nomeadamente na certificação dos produtos. O “Carrasco” que corta enquanto fala connosco tem o selo vermelho com que são identificados em Espanha os produtos originários de um certo tipo de porco ibérico (neste caso do cruzamento de duas raças). Esse selo diz mais, sublinha, do que aquilo que em Portugal nos habituámos a assumir como denominação “pata negra”. Este presunto espanhol tem a unha negra que lhe confere o cognome de “pata negra”, mas, afirma o mestre cortador, o selo permite saber mais sobre a sua origem e com mais garantia.
Sobre o sabor do que nos chega ao prato, é altura do rigor. Não é um sabor, são cinco. “O presunto tem cinco sabores distintos apesar de semelhantes entre si”, garante, acrescentando inclusive que um desses sabores, o mais perto do osso, é o mais doce. Se não notou ainda, é questão de degustar melhor. Uma vez ingerido, é aos 30º na boca de quem o prova que o presunto atinge o ponto de fusão, aquele em que a tal gordura boa se desfaz e permite saborear em pleno. E para quem gosta de se aventurar no corte, Jaques Abreu da Costa tem três recomendações: “cortar fatias finas, com a proporção de gordura certa e distribuir o corte ao longo da perna”. Para quem observa, é de registar que alguns pedaços que parecem inofensivos são retirados sem usar. “Não sabem mal, mas não correspondem ao sabor em pleno que uma peça destas pode oferecer”.
Uma peça destas resulta da perna de um porco ibérico curada durante 36 meses. Três anos. Parte do sabor apurado vem da espera, como em quase tudo. Uma peça destas custa entre 400 e 500 euros que não há bela sem senão e o sabor apurado do pasto até à mesa tem um preço.
Para concluir esta história, falta contar a do mestre cortador, ou mestre presunteiro como Jaques diz a brincar, cuja profissão não é propriamente uma profissão em Portugal. Como é que um setubalense que já foi comercial, já trabalhou nas relações públicas de uma marca de motos de luxo e já esteve desempregado se torna então em algo que não existia? “Tenho dois momentos que me recordo. O primeiro foi nos anos 90, quando o produto surgiu em Portugal, em que me lembro de ter gostado logo. O segundo momento aconteceu mais tarde, quando estava a pensar mudar de vida e me perguntaram o que é gostava mais de fazer, porque isso é a melhor forma de sermos felizes com o nosso trabalho.”
Não é difícil adivinhar a resposta e desde então já trabalhou em duas empresas do setor, já fez o curso de mestre cortador na Escola Internacional de Cortadores de Jamon, e hoje dedica-se a fazer eventos, dar formação e também a escolher e vender alguns produtos. E ter um espaço próprio? “Talvez um dia, ainda é cedo”. A julgar pelas vezes que se ouviu "onde é que está o presunto" enquanto conversávamos, talvez não seja bem assim.
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