Era uma vez uma banda chamada Oasis. Ao contrário de todas as histórias que começam com “era uma vez”, esta acabou mal: os Oasis chatearam-se, dois irmãos deixaram de se falar e os fãs ficaram órfãos da música que mais os entusiasmou quando jovens, tendo passado boa parte da última década a rezar pela paz entre os homens de boa vontade. Que é como quem diz, Liam e Noel Gallagher, a dupla à frente do conjunto que mais marcou os anos 90 pós-grunge, autores de canções tão emblemáticas, cantaroláveis e/ou especiais como 'Wonderwall' (um tema omnipresente em karaokes de todo o mundo), 'Champagne Supernova', 'Don't Look Back In Anger', 'She's Electric' ou, se se for fã à séria, 'The Masterplan'.
Apesar da crença, quase a roçar o fanatismo, de que os Oasis um dia regressarão aos palcos para salvar o que quer que precise de ser salvo, a verdade é que pelo menos uma das partes – Noel – não parece estar tão interessada quanto isso numa eventual reunião. Liam, o mais novo e o mais desbocado dos Gallagher, não tem feito a coisa por menos. Ao longo destes últimos anos, insultou e implorou ao irmão, em quantidades exatas, tanto na imprensa como nas redes sociais, para que deixem as tricas de parte e voltem a fazer música. Nada feito. Neste deserto não há um oásis e, como tal, há que continuar a ganhar a vida.
Daí que o Liam que tenhamos visto no Palco Mundo do Rock In Rio tenha sido um misto. Há aquele que procura seguir futuro adentro, compondo discos a solo (o último, “C'mon You Know”, foi lançado no final de maio), e aquele que não se consegue descolar do passado, nomeadamente dos Oasis (os “seus” Beady Eye, através de 'Soul Love', também fizeram uma perninha no alinhamento, mas sejamos sinceros: quem é que quer saber dos Beady Eye?). Das canções que se escutaram neste primeiro dia de festival, as que obtinham uma reação mais efusiva por parte do público eram, de longe, as do grupo que lhe deu fama. Pelo que a pergunta que Liam fez a dada altura, sobre se haveria fãs dos Oasis presentes no recinto, foi provavelmente a pergunta mais hipotética da história das perguntas hipotéticas.
Tal como Liam, os fãs também não conseguem largar os Oasis. Mas, e há que o salientar, do mesmo modo não o largam a ele, e por bons motivos: já há poucos frontman como ele, oriundos da classe operária britânica, gente que da vida só quer um bocado de rock n' roll e mandar pastar tudo o resto. Entre canções, o sotaque mancuniano dificultava, muitas vezes, a compreensão do que se escutava, mas do alto da sua semi-misantropia (quer isto dizer: Liam odeia a humanidade, exceto a parcela da humanidade que gosta dele) pudemos ouvir elogios a “São Bernardo Silva” e a Ruben Dias, jogadores do clube do coração, o Manchester City («ainda gosto mais do Ruben Dias agora», disse, numa referência ao facto de o pai do defesa central português ter dado uma cabeçada ao irmão Noel durante os festejos do título). Sem contar com as várias bocas que mandou à organização, perto do final do espetáculo, de apenas uma hora («alguém está a olhar para o relógio...»), à música techno, e a qualquer outra coisa que lhe tivesse chamado a atenção (o sotaque dificultava mesmo muito).
Em 'Hello', tema com que abriu o concerto, já era possível ver copos a voar, atirados pelos mais fiéis entre os britânicos que vieram a Lisboa ver um dos seus, e que eram facilmente identificáveis por entre a audiência: Fred Perry, pele tornada vermelha e a capacidade extraordinária de transportar seis cervejas sem entornar uma gota. Uma tocha, habitual em jogos de futebol mas não em concertos, sucedeu-lhe. Em palco, Liam na sua postura habitual, braços atrás das costas e corpo projetado para a frente, demonstrando que apesar de ter mudado em termos de rosto (chama-se “envelhecer”), não mudou no que toca à voz, exatamente igual à do Liam que conhecíamos dos Oasis. A nostalgia passou ainda por 'Wonderwall', entoada a plenos pulmões pelos presentes, 'Rock n' Roll Star', a magnífica 'Slide Away' e, ainda, canções a solo como 'Everything's Electric' ou 'Diamond in the Dark'. Porque o relógio da organização estava avariado, ainda regressou ao palco para cantar 'Cigarettes & Alcohol' e provocar adeptos do rival Liverpool, para gáudio dos que ainda rezam. O City pode ter-se sagrado campeão, mas quem merece o troféu é ele.
Fiéis são, também, os fãs dos National. Há alguns anos, seria impensável ver uma banda commumente associada ao indie rock tocar no Rock In Rio, assim como o Rock In Rio seria anátema para muitos desses fãs de indie rock. Porque os tempos mudaram e o gosto musical já não é uma questão de classe, foram vários os que se iam vislumbrando pela audiência, entoando alto e bom som canções como 'Bloodbuzz Ohio', 'The System Only Dreams in Total Darkness', 'I Need My Girl' ou 'The Day I Die', onde a literatura – as letras intelectuais, mas nunca pretensiosas, de Matt Berninger – se eleva sobre o próprio som das guitarras e da bateria.
O vocalista, que por várias vezes desceu para junto do seu público, aproveitando o enorme espaço que tinha à sua frente e dos lados, confessou a dada altura «também ter tido saudades» (apontando para o cartaz erguido por um fã), antes de fazer uma referência «aos anjos» que iam deslizando pelo slide e que, confessou, o estavam a «assustar». 'Light Years' providenciou um dos momentos mais bonitos da noite, com o erguer das lanternas dos telemóveis a parecer tê-lo deixado siderado, antes de se lançar a 'England', 'Graceless', a belíssima 'Fake Empire' e a explosão de 'Mr. November', o género de canção pela qual nos apaixonámos aos 20 anos e que só compreendemos verdadeiramente aos 40. Naquele que foi o 18º concerto dos National em Portugal, difícil seria ter saído desiludido.
Contratados para substituir os Foo Fighters, cuja presença no Rock In Rio não tinha como não ser cancelada após a morte do baterista Taylor Hawkins, os Muse mostraram-se enérgicos, quase como se não tivessem entrado no festival como suplentes e sim como o ponta-de-lança que joga os noventa minutos da partida. Subindo ao palco com escassos oito minutos de atraso, o trio britânico abriu as hostilidades com o vídeo para 'Will of the People', o tal tema novo que tem um refrão que parece ter sido sacado a 'The Beautiful People', de Marilyn Manson (sendo que o resto da cantiga parece ter sido sacada a 'Summertime Blues', de Eddie Cochran). As máscaras iniciais usadas pelo grupo, que faziam lembrar as dos vilões de “Squid Game”, são depressa descartadas para que o vasto público possa olhar-lhes nos olhos ao entoar 'Hysteria' a plenos pulmões, antes de trocar a garganta pelas pernas e levantar a poeira que se exigia com 'Psycho'.
Ainda que nada no concerto dos Muse tenha ficado mais na memória que em vindas anteriores a Portugal – espera-se que o álbum novo mude o paradigma do seu espetáculo ao vivo –, a verdade é que Matt Bellamy continua a ser impressionante de se ver: nele, a guitarra é quase como que um terceiro membro, sendo através das suas cordas e das descargas de eletricidade que delas emanam que ele vai comunicando com o público, acrescentando-lhes uma dose saudável de “obrigados” entre canções. Nem a chuva que a dada altura se fez sentir demoveu os fãs de dançar com 'Compliance', toda ela Daft Punk e serpentinas presas no slide, de ondular os braços em 'Madness' e de gritar com 'Plug In Baby' como se fora a primeira vez. A 'Uprising', de punho erguido, sucederam-se os cumprimentos em 'Starlight' e um encore marcado por problemas de som: 'Kill Or Be Killed' mal se ouviu e 'Knights of Cydonia', apesar do fogo-de-artifício que a acompanhou, já soou melhor.
Com a inclusão da chamada “Rock Street”, o Rock In Rio tem desde há alguns anos para cá apostado também em artistas que se colocam à margem daquilo que o festival, grosso modo, representa: uma espécie de Disneylândia para quem gosta, não de música, mas do espetáculo que existe à sua volta. Não querendo entrar na velha discussão do artifício versus autenticidade (até porque Dua Lipa a alimentou melhor), há que dizer que Bombino, homem da guitarra oriundo do longínquo Níger, se afigurou como o artista mais verdadeiro deste primeiro dia de Rock In Rio. Cantando na sua língua nativa, o tamashek (falada por povos berberes), foi através das seis cordas que o músico melhor conseguiu comunicar, num misto de Jimi Hendrix do deserto e Bob Marley do oásis, blues elétrico e ritmo dançável que conseguiu conquistar muitos dos que iam passando e olhando com curiosidade para o que se desenrolava naquele pequeno palco. O tradutor de serviço, um baixista impressionante (aquele slapping, caramba!), aproveitou para agradecer a presença no festival, lembrou que o primeiro grande concerto de Bombino na Europa foi em Portugal (o que não conseguimos confirmar), e mostrou-se confuso com a diferença entre obrigado e obrigada (para quê distinguir?, perguntou). O final, majestoso, contou com um solo de baixo e um de bateria só para provar que o mundo não é feito apenas dos artistas grandes: também há os que são grandes artistas.
Coube aos Xutos & Pontapés a honra de abrir o Palco Mundo do festival. A celebrar 40 anos do lançamento do seu álbum de estreia, "1978-1982", a mais mítica das bandas rock portuguesas deu um concerto coeso perante uma plateia ainda longe da sua melhor forma (o volume, por aquela altura, mostrava-se mais cheio que o recinto, exceção feita à tradicional fila para os pufes da operadora que patrocina o evento). 'Negras Como a Noite', canção que durante a pandemia ganhou um novo significado - culpa do verso 'vai ficar tudo bem' -, acabou com o desejo de Tim de que «isto fique mais direitinho», numa referência à guerra na Ucrânia; pouco depois, 'Homem do Leme', primeiro em modo 'slow' e depois mais acelerada, trouxe os grandes clássicos que o público português conhece ao recinto do Rock In Rio.
O Rock In Rio prossegue este domingo, com concertos dos Black Eyed Peas, Ellie Goulding, Ivete Sangalo, David Carreira, Bárbara Tinoco, Bruno Pernadas e Toy, entre muitos outros.
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