Ainda não tinha sido “oficialmente” aberta, já a 92ª edição da Feira do Livro de Lisboa estava a decorrer, com centenas de pessoas a subir e descer o Parque Eduardo VII, de livros na mão ou em volumosos sacos, sozinhas, aos pares, em grupos e até acompanhadas pelos seus cães.

Essa afluência nas primeiras horas da Feira terá certamente provocado regozijo a Pedro Sobral, o presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), entidade que organiza o evento. Foi a si que coube a responsabilidade de tomar o pódio na cerimónia de inauguração, às 18:00.

Ladeado por pelo Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, pela Secretária de Estado da Cultura, Isabel Cordeiro, e pelo presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas — e tendo à sua frente sentado o Ministro da Educação, João Costa — Pedro Sobral ainda estava a iniciar os agradecimentos quando surge uma interlocução inesperada.

“Há tantos burros mandando em homens de inteligência, que às vezes fico pensando que a burrice é uma ciência”, ouve-se soar da zona do público em pé, citação de António Aleixo, seguido de um “abaixo a corrupção”. Não se fez caso disso, e o presidente da APEL continuou a discursar.

Aproveitando a oportunidade para sinalizar os desafios que o setor editorial enfrenta em Portugal, Pedro Sobral disse ser preciso continuar o trabalho de promover "mais e melhores índices de leitura em Portugal". Com a admissão de que devia “ser mais otimista e menos cético” quanto a saúde do setor, o presidente da APEL deixou um elogio aos editores e livreiros, que "promovem diariamente os hábitos de leitura".

"Num país onde se lê tão pouco, é preciso de facto ser otimista e resiliente para fazer livros, é a base que permite a tantos editores e livreiros que trabalhem com os seus autores para chegarem a novos públicos e perceber aquilo que as novas gerações procuram, enquanto concorrem com outras formas mais imediatas de consumir conteúdos", afirmou.

A Secretária de Estado da Cultura alinhou pela mesma bitola, lembrando os resultados do barómetro da cultura deste ano, promovido pela plataforma Gerador, referindo que “os dados indicam claramente que os portugueses têm cada vez mais vontade de ler livros [88,4% dos inquiridos], mas não o fazem principalmente por falta de tempo [49,4% dos inquiridos].

“Aqui chegamos a uma das questões centrais do estilo de vida contemporâneo. A exiguidade do tempo livre, daquela pequena parcela que dedicamos aos nossos prazeres”, lamentou Isabel Cordeiro, destacando que “o contacto com o livro deve ser estabelecido nos primeiros anos de vida” e que “os hábitos culturais, e muito significativamente o hábito de leitura, enriquecem as pessoas enquanto cidadãos”. “Tornam-nos mais atentos, mais esclarecidos e mais preparados para enfrentar os desafios”, frisou.

O que fazer então? No que toca à APEL, Pedro Sobral relembrou que entidade irá “estudar e avaliar com o Ministério da Cultura” medidas apresentadas pela associação, entre as quais “a criação de um cheque livro anual no valor de 100 euros para jovens de 18 anos, uma taxa reduzida ou híper reduzida de IVA [para os livros] e a classificação do livro como bem e serviço essencial”. Além disso, pediu mais políticas públicas para o livro e uma maior articulação com os ministérios da Cultura e da Educação para atualizar os currículos escolares.

O recado de Marcelo a Medina e o zelo de Moedas pela Ucrânia

A lembrança de Pedro Sobral da necessidade de aplicar novas políticas públicas de apoio ao livro foi a deixa para munir Marcelo Rebelo de Sousa do material para lançar um recado ao Ministro das Finanças, Fernando Medina.

Depois de lembrar as polémicas da pandemia quanto ao livro — a definição do livro como bem essencial, a sua presença ou não nas grandes superfícies, as dúvidas entre a abertura com restrições das livrarias e a chamada venda ao postigo, tudo temas que hoje “parecem pré-históricos” — Marcelo frisou que “falta ainda fazer muito". A começar pela “óbvia qualificação [dos livros] como bens essenciais, que também é a mais fácil de adotar, apesar de tudo, porque não envolve as Finanças", atirou o Presidente da República.

"São necessárias as medidas legislativas da proteção do livro”, continuou. “Felizmente que é hoje ministro das Finanças o antigo presidente da Câmara Municipal de Lisboa e que aqui sempre defendeu — abertura após abertura da Feira do Livro — , a defesa do livro e a proteção da edição. Portanto, já sabemos com o que contamos”, lembrou Marcelo.

Se o incumbente do Terreiro do Paço deve ter ficado com as orelhas a arder, o seu sucessor, sentado ao lado do Presidente da República, também não escapou a um aviso, ainda que indireto, do chefe de Estado.

"Continuam a ser necessárias, no caso das livrarias, medidas relacionadas com as rendas, que nas grandes cidades afetam a viabilidade de muitas livrarias e praticamente matam os alfarrabistas. Qualquer dia passeamos por Lisboa, Porto, Braga ou Viseu e não encontramos senão ex-alfarrabistas, que são membros essenciais de uma cultura do livro digna desse nome", avisou Marcelo.

Considerando-se um otimista por natureza, o Presidente da República concedeu, porém, que “nenhum otimismo pode esconder factos inquietantes”, como os “frágeis índices de leitura” que “não eram famosos, quebraram com a pandemia e recuperaram parcialmente”. No entanto, para Marcelo, se há setor capaz de dar a volta é o editorial.

"Se os tempos que vivemos recentemente, revelaram ou acentuaram dificuldades, debilidades, urgências a solucionar, também mostraram o que alguns terão julgado uma inesperada resistência. Em quase nenhum setor isso foi mais notório do que no do livro. Nos últimos três anos, se houve projetos editoriais que terminaram, livrarias que fecharam portas, em muitos dos casos isso teve a ver com questões pré-pandemia e que a pandemia agravou, mas não determinou”, afirmou o chefe de estado.

Não querendo minimizar “os desafios sérios que enfrenta o livro”, o Presidente da República quis “sublinhar a capacidade de enfrentar tempos difíceis que este setor demonstrou" e de "de mobilizar leitores, mas também autores, contra as sucessivas vagas da pandemia" — e aí a Feira do Livro de Lisboa, no seu entender, teve um papel fundamental, especialmente atendendo ao “sucesso que foram as Feiras do Livro pós-confinamento".

Marcelo Rebelo de Sousa salientou ainda, nesta edição da feira, as melhorias “não só estéticas ou logísticas, mas ecológicas” dos pavilhões, e prometeu voltar “com o carrinho de compras”. “É a minha 67.ª feira, estava a fazer as contas e parou-se-me o coração, ainda era na Avenida da Liberdade”, recordou, dizendo ter esperança de ainda cumprir a sua 92.ª feira, o número de edições que se assinalam este ano. “Não é provável, mas não é impossível”, considerou.

Já Carlos Moedas, apesar de ter passado “aqui a vida como lisboeta no dia a dia desta feira”, não escondeu o entusiasmo de comparecer na primeira edição enquanto Presidente da Câmara de Lisboa. Esta Feira, a seu ver, é “muito mais do que uma oportunidade comercial, é uma referência da vida cultural do país e da cidade”.

“Inaugurar a Feira neste momento e neste formato é uma manifestação de esperança perante um período de instabilidade e incerteza”, continuou, virando as suas atenções para a ainda embaixadora da Ucrânia, Inna Ohnivets, presente no evento porque o seu país foi o convidado para esta edição.

“Sim, senhora embaixadora, algo que nós nunca pensámos que seria possível está a acontecer no seu país. Uma guerra onde os nossos valores estão em jogo. E é por isso que estamos muito contentes que a Ucrânia hoje esteja aqui como país convidado”, dirigiu Moedas à diplomata.

Dispondo a Ucrânia de um espaço exclusivo com obras de escritores ucranianos, Moedas disse que o seu intuito é o de "promover a sua literatura, a sua cultura e também a sua luta pela liberdade", arrancando aplausos da audiência. “A cidade de Lisboa estará sempre do lado da liberdade, contra a agressão, a barbárie e a tirania, e que mais autêntica demonstração de liberdade humana temos senão o livro”, continuou.

Lembrando o escritor soviético dissidente Alexander Soljenítsin numa alusão à agressão russa, o Presidente da Câmara de Lisboa mencionou ainda outro autor, Salman Rushdie, para agradecer a Alberto Manguel — também sentado na audiência — a escolha de mudar-se para Portugal e trazer consigo a sua extensa biblioteca pessoal. “Salman Rushdie dizia ‘a biblioteca de Alberto Manguel é uma das maravilhas do mundo''', citou Moedas. “É uma sorte ter Alberto Manguel e a sua biblioteca em Lisboa”, completou, aludindo ao futuro Espaço Atlântida, a inaugurar em 2023, pela mão do intelectual argentino-canadiano.

Editoras estão “otimistas”, mas o futuro traz mais desafios

“Ao entrar nesta feira hoje, com 52 anos, lembrava-me de Almada Negreiros. "’Tanto livro para tão pouco tempo que tenho’", lamentou Carlos Moedas no final do seu discurso. Talvez para engrossar ainda mais essa biblioteca, o autarca acompanhou o Presidente da República após o fim da cerimónia de inauguração. O que era suposto ser uma curta volta à feira, estendeu-se por mais de uma hora, com paragem em todos os pavilhões do primeiro corredor, onde Marcelo ia cumprimentado os funcionários.

De acordo com a agência Lusa, o Presidente ainda comprou três livros, avaliou os preços de outros – “ainda não refletem os aumentos dos custos” — e deu um conselho ao autarca de Lisboa. “A melhor hora para vir é à hora do jantar ou de um jogo de futebol”, confidenciou. Entre muitos pedidos de ‘selfies’, sempre atendidos, o chefe de Estado cruzou-se com escritores, como Alice Vieira, ou antigos políticos como Adolfo Mesquita Nunes, prometendo voltar “mais umas três ou quatro vezes”.

Enquanto tudo isto acontecia, o SAPO24 foi perguntar a editores na Feira o que esperam desta edição, a primeira desde 2019 sem restrições motivadas pela pandemia — em 2020 e 2021, recorde-se, era necessário andar de máscara em todo o recinto e havia um número limitado de pessoas que podiam lá estar, havendo controlos nas entradas.

Para Joana Branco, do Grupo Porto Editora, nutre-se a esperança “que a atratividade da Feira, não só com os preços que tem, mas também com o contacto direto com os autores e outros eventos, permita aproximar leitores dos livros”. “Acreditamos que as pessoas estão claramente a regressar e a aderir a diferentes eventos com acalmar da pandemia. Para nós, faz todo o sentido, dá significado ao nosso trabalho diário no âmbito da edição de livros”, adianta.

Da parte de Inês Mourão, diretora de comunicação do Grupo Presença, há um entendimento similar. “Uma maior afluência de leitores é aquilo que esperamos em linha com a maior edição da Feira de sempre”, diz. Com o refrear das restrições, não só “os autores já não precisam de usar máscara, o que permite um contacto direto em que visualmente tudo flui”, como é possível “retomar a programação cultural, ter as Horas do Conto e animações no espaço da Presença, que, por excelência, é muito direcionado para o público infantil. Juntando a atratividade para os mais novos à oferta para os mais velhos, estão “todas as condições reunidas para voltar a sentir o pulso à feira como era pré-pandemia”, afirma.

Na Porto Editora, a diversificação de atividades e pontos de interesse é também um ponto-chave durante a Feira. Disso são exemplos o mural de 200 metros quadrados desenhado pela artista plástica Ana Aragão nos expositores ou a inclusão de língua gestual portuguesa na sessões de histórias contadas às crianças, diz Joana Branco. “A importância da Feira, muito para lá do aspeto comercial, é chamar novos públicos, gente nova. Daí que tenhamos muito eventos infantis”, assume, referindo ainda os “fenómenos nas redes sociais que estão a tornar os livros mais atrativos” como a ação de influencers e bloggers.

Do lado comercial, todavia, há um outro aspeto crucial a ter em conta. Se nos últimos tempos o número de vendas dos Grupos Porto Editora e BertrandCírculo “aumentou”, no futuro “o setor poderá passar por dificuldades como estamos todos a passar, fruto das circunstâncias da pandemia e da guerra na Ucrânia”, diz Joana Branco. “O setor livreiro não é nenhuma exceção ou uma ilha no meio do país, e deverá sentir esse impacto” da perda de poder de compra dos consumidores. “Porque se os preços dos livros não se alterarem, as famílias e a sociedade portuguesa vão começar a olhar para o consumo de uma forma um bocadinho diferente”, alerta.

Apesar das circunstâncias, Joana Branco diz-se “otimista” quanto ao futuro, tal como Inês Mourão, que refere que os próximos tempos requererão “trabalho duro e resiliência” mas encara-os com confiança. Para já, durante estas três semanas, o que interessa é desfrutar da Feira. “É um momento único na vida editorial anual”.

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