Pensemos nas grandes potências que dominam o mundo da música. No topo, os inevitáveis Estados Unidos, de onde saíram os blues e o rock n' roll, onde Coltrane e Miles Davis ultrapassaram limites, onde Jimi Hendrix alimentou revoluções, onde o rap nasceu e onde Madonna e Beyoncé fizeram da pop uma arte. Segue-se o Reino Unido, de onde os Beatles e os Rolling Stones partiram à conquista do mundo, onde o punk tomou forma, onde a eletrónica se fez rave. Há ainda o Brasil irmão, terra de samba e bossa nova, a Alemanha do rock ácido e repetitivo e da destruição pelas mãos dos Einstürzende Neubauten, e a França, essa eterna França que se faz poema e romance, onde despontou Serge Gainsbourg, onde os Air sonharam com o espaço, onde os Daft Punk levaram o house às massas.
Os anglo-saxónicos muito gostam de troçar da França. Os estereótipos são mais que muitos: um país em constante rendição, de baguette ao ombro e boina na cabeça, de vinho e queijo no goto, de filmes intelectuais e bizarros. Descrições que partem de uma rivalidade com centenas de anos e – quem sabe? — de alguma inveja. Porque os anglo-saxónicos nunca conseguirão ser românticos; nunca conseguirão suspirar a sua língua de forma tão lânguida quanto os franceses, nunca produzirão vinhos icónicos, nunca verão nascer um poeta pop como Gainsbourg (alguns equiparáveis, mas nunca semelhantes).
E a França, a quase-vizinha França, que também é feita de milhares de portugueses, desceu esta noite até ao ocidente europeu para conquistar o Super Bock Super Rock. Se se menciona o apelido Gainsbourg por mais do que uma vez, é porque também ele aqui esteve entre nós. Parte dele, pelo menos: a filha Charlotte, fruto da sua relação com Jane Birkin, que se estreou em Portugal e no festival quase 33 anos após o lançamento do seu primeiro álbum, “Charlotte For Ever”, editado quando tinha apenas 15 (!) anos.
Ninguém teria dado pela passagem do tempo se não o soubesse. E há quem não saiba. Ao nosso lado, a informação de que Charlotte tem 47 anos e não meros 35 surpreende. Assim como surpreende o jogo de luzes que a cantora trouxe ao Meco, com um alinhamento construído a partir de todos os seus álbuns de estúdio. Uma batida digital dá o mote, antes de a cantora se sentar em frente ao teclado, levantando-se pouco depois para interpretar (e dançar) temas entre o disco e o funk de sotaque francês, onde os sintetizadores faziam por vezes lembrar o mestre Giorgio Moroder. 'Sylvia Says' foi um bom exemplo disso, todo ele explosão e luz – a mesma que, em palco, por vezes ofuscava.
Munida de vários trunfos, como 'Sylvia Says', 'Paradisco', a fenomenal 'Deadly Valentine' e ainda 'Lemon Incest' (tema gravado com o pai quando tinha apenas 13 anos e que, à altura, foi tão escandaloso quanto bem-sucedido em França), com o qual terminou o concerto, Charlotte mostrou que há identidade para além da família. Não são os seus pais quem a define, e sim a sensualidade soft da sua voz, o rasgo das suas canções e a sua postura tão indiferente, tão tipicamente francesa (nonchalance, é assim que se diz), em palco. Agora que se estreou, pode regressar rapidamente. Por favor.
Com menos luz mas com muito mais cor, os Phoenix trouxeram ao Super Bock Super Rock um espetáculo coeso, feito a partir de rock mas também de música de dança, o ritmo coexistindo com a melodia numa fusão efusiva. Logo a abrir, a banda de Versailles bem tentou fazer com que a corte diante de si entoasse bem alto os versos de 'Lisztomania', infelizmente sem sucesso; apesar de se ter verificado alguma enchente (e existiam dúvidas de que isso pudesse suceder, inicialmente, já que os Phoenix não são propriamente um nome na ponta da língua das grandes massas), poucos foram os que os acompanharam nessa demanda, mas ninguém deixou de fazer girar o corpo.
Numa noite que se pretendia especial, já que este foi o último concerto da sua atual digressão, os Phoenix trouxeram ainda consigo 'Trying To Be Cool', canção para todos os outsiders românticos deste mundo, 'Ti Amo', tema que dá título ao seu último álbum (2017) e ainda 'Rome', que foi dedicado ao amigo Philippe Zdar (da dupla Cassius), “um génio” recentemente falecido. No final, uma batida constante permite ao vocalista Thomas Mars empoleirar-se pelo público, surripiar umas cervejas e dedicar-se ao bom e velho crowdsurf. Um final perfeito, e agora já podem ir de férias.
Outsider foi também Héloïse Letissier, conhecida no mundo da música como Christine and the Queens. A cantora, nascida em Nantes, trouxe ao Super Bock Super Rock uma lição pop muito bem estudada: filas de dançarinos, eletrónica eighties que seguia todos os parâmetros (melodia, batida, efusividade), faíscas em palco e mensagens positivas para um mundo cada vez mais negro. “Este é um espaço seguro”, garantiu a dada altura. “Tudo é possível. Só quero ver o suor nas vossas testas”.
Munida de dois discos apenas (aos quais aludiu durante o concerto), Héloïse foi pulando por tudo o que era palco, sorrindo em barda, ameaçando um beijo a uma das dançarinas em 'iT' e levando desmedida euforia às filas da frente, onde se encontravam os seus indefectíveis. Quem mais assistiu, não conseguiu não se animar com a sua pujança em palco, mesmo que a dada altura tudo só soasse a uma remistura interminável da 'Club Tropicana', dos Wham!. Valeu 'Tilted', canção – cá está – para outsiders.
Não foi só da França, evidentemente, que se fez o segundo dia de Super Bock Super Rock. Os britânicos Shame trouxeram ao palco principal uma dose muito esperada de punk, ideal para todos aqueles que já suspiravam por guitarras num festival que tem “rock” no seu nome. Lamentavelmente, foram poucos aqueles que os receberam, ao final da tarde. À descarga elétrica sucederam-se os elogios do vocalista, Charlie Steen (“vocês parecem perfeitos”, disse ele), que começou por apresentar-se em modo Ian Curtis (camisinha dentro das calças e gestos espasmódicos) e acabou de tronco nu, como um qualquer conterrâneo nos Algarves. A música, furiosa, fez suspirar por mais.
Antes, um registo mais suave: o do cruzamento entre os Calexico e Sam Beam, vulgo Iron & Wine. Munidos de um manancial de instrumentos, os dois projetos trouxeram ao Super Bock Super Rock alguma folk misturada com country, destacando-se canções como 'Father Mountain' (uma espécie de ode vaqueiro-indie), o órgão que ia elevando o som a patamares celestiais e os sopros, que ora traziam a introspeção necessária ora alimentavam alguma da dança que se ia cumprindo. Ninguém diria que tocaram após os Conjunto Corona, grupo hip-hop do Porto que bebe da cidade, das suas personagens e das suas expressões para a construção de temas onde o contexto é a chave. Para um sulista, tudo parecerá infinitamente divertido (a figura do Homem do Robe, ser místico que distribui hidromel pelos crentes, a isso ajuda); alguém da região do Porto perceberá todas as referências, linguajares e derivados e encarará aquela música de um modo mais sério. Os beats são narcóticos, os versos são entoados em coro e não faltaram, como habitualmente nos seus concertos, os muitos gritos por Gondomar (é uma piada privada, mas a ideia é torná-la pública). Sempre os mesmos, sempre geniais.
O Super Bock Super Rock termina este sábado, com concertos de Migos, Janelle Monáe, Masego e Superorganism, entre outros.
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