“Só mais uma voltinha...”. Avisa uma voz nasalada. A música dos carrosséis abafa o néon dos “carrinhos” de choque. No ar, o cheiro a algodão doce, pipocas e farturas. A pressão de ar aponta à lata que esconde o peluche reclamado pelo benjamim da família. O som de um polvo pneumático que sobe e desce, os gritos de alegria extasiante de um bungee jumping ou o silêncio que a vista consegue alcançar no topo de uma roda gigante, são sensações e emoções que voltaram à estrada depois de quase quatro meses a ganhar pó.

As feiras de diversão itinerante plantam-se, aos poucos, nos locais por onde costumam andar. Famílias inteiras, três gerações, avós, pais e netos, que vivem desta e para esta vida, regressaram, de forma intermitente, à atividade que sempre conheceram.

O Estado de Emergência está lá atrás. O confinamento e a proibição também. Quem está à frente das empresas itinerantes regressou para fazer o que sempre fez. O governo criou, entretanto, uma linha de apoio a retoma da atividade. Dependendo da aceitação dos municípios, as pequenas cidades de diversão destinadas a crianças e adultos começam a assentar arrais de Norte a Sul do país.

No barlavento algarvio, em Lagos, num espaço entalado entre a Marina e a Sopromar, centro náutico, o Summer Family Park Lagos enterrou as estacas até 27 de setembro. A funcionar das 18h00 às 24h00 é uma das feiras autorizadas. Das primeiras a regressar no ativo.

Fomos atraídos ao recinto pelas luzes noturnas do dia anterior à nossa visita, concretizada em plena hora do calor.

“Francisco Ramiro”. Solta o nome enquanto levanta, lentamente, o chapéu, numa apresentação a seco. É a resposta ao “bom dia, posso entrar, chamo-me Miguel Morgado e sou jornalista do SAPO24”. Ele, e a mulher, fazem o obséquio de abrir um pedaço de vedação de arame que delimita o espaço.

Estão junto à barraca com o letreiro “Madeira”. É a porta de entrada do recinto localizado junto à Marina de Lagos.

A mulher não se apresenta. De mão a amparar o queixo, limita-se aos cumprimentos iniciais e recolhe-se ao sítio que vende bolo do caco.

Sente-se a implementação do regulamento da Direção-Geral de Saúde e as medidas gerais para a pandemia da Covid-19: sinalética para o distanciamento social, utensílios para a desinfeção de mãos (desinfeção extensível aos espaços e equipamentos) e obrigatoriedade do uso de máscaras. Não podia ser de outra forma. Só assim podem funcionar.

Uma vida que começa dentro de um carrossel. Por causa dos avós e dos pais  

“Os meus pais, quando nasci já andavam nesta vida”, recorda, uma vida que também ele abraçou, assim como os filhos e netos. “Tive três filhos. Uma filha já morreu. O meu filho e outra filha estão também neste negócio”, explica Francisco. “O meu filho está aqui, tal como meu neto”, atira. “A minha filha está parada. Não conseguiu ter uma feira para trabalhar por causa dessa coisa do Covid”, encolhe os ombros e baixa os olhos (perceptível debaixo dos óculos escuros) em jeito de lamento.

“Já nascemos aqui e assim vivemos”, reforça. O “aqui” é itinerante. É viverem em caravanas (ou camiões) e acordarem num local, noutro e voltar a dormir, meses depois, no ponto de partida. Em casa. Em Setúbal, onde nasceu “há 85 anos”, diz, com o dedo em riste.

“Somos descendentes dos nossos avós e pais que escolheram andar de um lado para o outro. A nossa vida é esta”. Alfredo Azevedo, 58 anos, também ele natural da cidade banhada pelo Rio Sado, interrompe a conversa.

Com a propriedade de quem anda com os equipamentos de diversão às costas “desde os 12”, acrescenta um contributo valioso. “O senhor Francisco é das pessoas mais antigas nas feiras”. A concorrência a esse posto vem de outra pessoa quase da mesma idade. “O senhor Henrique, do Poço da Morte (equipamento imortalizado na Feira Popular, em Lisboa)”, anota.

Conversamos às voltas. Como se estivéssemos num carrossel. Saltamos de sombra em sombra; sombra essa proporcionada pelos equipamentos do parque de diversões.

Parámos junto à Roda Gigante. “Esta é a maior roda em Portugal. 38 metros. Há outra, no Norte, mas só tem 30”, compara Francisco Ramiro. Com o recurso ao “olhómetro”, tentámos medir até à cadeira mais perto do céu.

“A maior roda gigante de Portugal”. O anúncio é claro; vimo-lo nas redes sociais à posteriori.

A pergunta sai fácil. “O senhor Francisco deve ter milhares de quilómetros na roda”, questionámos, meio a sério, meio a brincar. “Eu? Não senhor. Tenho medo das alturas e nunca andei”, surpreende na confidência. “Mas gosto de carrinhos de choque”, retorque.

O trabalho sustenta famílias inteiras. Meio ano de labuta garante o orçamento do resto do calendário. “Fazemos a zona sul, diria que há 30 anos. Começamos em maio, vamos até finais outubro. E, já me esquecia, ainda temos o mês do natal”, resume. “O resto do ano fazemos reparações”, anuncia numa voz rouca e gasta pelo tempo.

O “Dono Disto Tudo” que passou o testemunho

Um armazém entre Setúbal e Palmela é o quartel-general dos “16 equipamentos”. O neto, também ele Francisco, 30 anos, depois de ter andado pela escola até “aos 16” leva a outra metade da vida passada em cima de “carrinhos” de choque e carrosséis. Pai de duas filhas de tenra idade, trabalha, tal como o resto do agregado, onde os outros se divertem. Está de tronco nu por causa do calor. A marca de manga à cava deixa antever dias e tardes ao sol.

Explica que a “maior parte dos equipamentos estão parados”, porque o recinto da feira, desenhado para os tempos que se vivem, não conseguia recebê-los.

“Estivemos 15 dias a montar o parque e por tudo em condições por causa da Covid”. Vão além do básico exigível. Quem anda neste negócio deve, hoje, aplicar medidas adicionais de prevenção e controlo da infeção. Sabem-no disso. E levam a sério essa indicação.

Avô e neto são homens de poucas palavras. Debitam-nas a conta-gotas. Estranham o nosso interesse na vida que levam.

Nova interrupção. Um elemento estranho (SAPO24), à hora de ida a banhos na praia, a deambular entre uma piscina de água com bolas à superfície e a pista de carros para crianças desperta a atenção de quem ali dá uns retoques antes de abrir ao público.

Dois homens fazem umas reparações numas luzes. Um deles, está empoleirado numa escada. O outro, ampara os degraus e conversa. Tem uma chave de fendas à mão de semear, caso seja necessário. Apresenta-se como cunhado do jovem Francisco. Desinibido, pergunta se quer que lhe façamos umas perguntas sobre as suas diversões.

Explicámos que estávamos a falar com “o Dono Disto Tudo”, o tal empresário cuja idade e propriedade lhe permite ser apelidado como tal.

“Eu não sou o dono disto tudo”, garante, de imediato, o Francisco mais velho, a rir. “Quem é o dono é o meu filho. A maior parte destas coisas já foram os meus filhos que compraram”, frisa, apontando para a Roda e para o Polvo.

“Podemos falar com o seu filho?”, questionámos. “O meu pai está a fazer umas reparações e agora não pode”, respondeu a terceira geração. “Tem 52 anos e sempre fez isto”, desvenda, para saciar a nossa curiosidade.

Francisco Ramiro passou o testemunho, mas continua ligado às máquinas de diversão. “O meu filho quer que ande por aqui e aqui ando com a minha mulher... Estou cansado, mas em casa estou pior”, assevera.

E nem a pandemia o afasta. “Não tenho medo. Ando sempre com a máscara. Bom, por acaso não tenho agora, tinha aqui no bolso, mas devo tê-la pousado em algum lado antes de falarmos”, assegura.

Calcorreámos, às voltas, o chão de areias e gravilha. Estamos, de novo, debaixo da caravana com a inscrição “Madeira”. Sentimos que é hora da despedida. “Agora, se não se importa, vou descansar. Venha logo à noite se puder”.

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