“Quanto mais olho para o mundo, menos vejo.” Quanto mais olharmos para ‘Le mas grand chose’ (Coisa Pouca, em português) que o francês Johann Le Guillerm apresenta esta sexta-feira no Porto, menos saberemos aquilo que estamos a ver. É uma ‘performance’, uma aula, uma conferência que navega entre as coincidências proto-místicas dos números e os curiosos fenómenos da física, da osmose à gravidade.
‘Le pas grand chose’, com estreia nacional no Rivoli, repete no sábado, e abre o Festival Internacional de Marionetas do Porto (FIMP). É uma peça, um evento onde, mais do que figuras e objetos animados, há pensamentos reanimados.
No palco, monta uma caranguejola cheia de gavetas de conhecimento. Uma ardósia serve de tampo e duas câmaras vão ampliando, para um ecrã montado no topo do palco, as conclusões da “conferência patafísica lúdica”. O objetivo é encontrar o mundo sem passar pelos “cientifilhos”, os filhos da ciência que enformam o pensamento. A aula tem números, mas não tem matemática. Pelo contrário, concentra-se nas formas dos algarismos, reduzindo-os ao seu valor como imagem e não como número.
Johann explica ao SAPO24 que o objetivo é partilhar. “Partilhar as minhas pesquisas e principalmente dar a minha opinião sobre as minhas pesquisas ao público.” A apresentação nasce, também, dessa investigação: “nesta pesquisa surgiu a ideia de fazer um balanço das minhas crenças e conhecimentos e principalmente fazê-lo sem passar pelo conhecimento estabelecido, pelo conhecimento clássico, mas apenas pelo meu próprio ponto de vista.”
Com essa observação, chega a ideia de que é capaz de entender de que é feito o mínimo de qualquer coisa. Sabendo-o, “inevitavelmente”, é capaz de encontrar esse ponto mínimo em qualquer coisa complexa e, a partir daí, ter “uma ideia melhor para entender o mundo” e o próprio ponto de vista e erros.
“Quando olhamos para um ponto, encontramos a matemática, porque ao fim de algum tempo, vemos dois pontos, depois três pontos, depois quatro pontos. E aí encontramos aquilo a que chamamos matemática. Então, quando dispomos esses pontos no espaço, encontramos aquilo a que chamamos geometria. Quando rodamos esse ponto, deparamo-nos com a topografia.”
Pega, então, numa garrafa de água: “se eu partilhar o meu ponto de vista com alguém que estiver à minha frente [do lado de lá do fundo da garrafa], que me diga que ele é azul [a rolha], e eu discordo, temos a filosofia ou a política.”
Ou seja, cada mutação — acrescento, rotação, inversão — do ponto dá-lhe novas perspetivas. E o trabalho de Johann é pôr em evidência essas perspetivas que se somam infinitamente para formar o mundo real. É como se, em vez de reduzir objetos aos átomos que os compõem, toda a conferência fosse uma enorme ampliação das pequenas lógicas por trás da sociedade ocidental, deformando a verdade de tal maneira que parece uma sucessão de surrealismos
“Também mostra que o homem tem a capacidade de dobrar o mundo aos seus fantasmas para contar qualquer coisa”, acrescenta, alertando, porém, que “a visão oposta à minha tem um valor que pode ser equivalente.”
“E isso é difícil de admitir numa sociedade que, há muito, pede para escolher o seu campo e a reprimir o outro, aquele que é diferente daquele que é contrário do seu pensamento.”
Este confronto é, até, um confronto com o trabalho habitual de Johann Le Guillerm. Mais do que mostrar, na arte plástica e física, o seu trabalho — um produto final —, aqui o francês procura mostrar qual é o seu ponto de vista sobre esse mesmo produto, em vez de deixar ao espectador o papel de interpretar a obra.
Johann aparece engravatado num palco negro. Anuncia: “procuro o caminho que não vai dar a Roma”, como quem avisa logo no princípio que a próxima hora não cabe nas expectativas. Se todos os caminhos vão dar à cidade eterna, o francês, que vem do novo circo, está aqui para trilhar os caminhos ao contrário, fugir do óbvio e mostrar as ligações invisíveis entre as coisas.
Não se trata de uma discussão entre a verdade e a não verdade: “do ponto de vista pessoal, a fronteira entre a verdade e a não verdade pode mover-se de um dia para o outro”, explica o artista. “A dado tempo, era verdade que a Terra era plana. Hoje, é verdade que ela é redonda. Só para alguns é plana.”
Com metáforas visuais e retorções lógicas, “Le pas grand chose” navega entre o cómico e o académico, como uma aula de sinapses a olhar para elas próprias.
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“Le pas grand chose”, de Johann Le Guillerm, estreou esta sexta-feira, no Teatro Municipal do Porto - Rivoli, e repete este sábado, às 17:00. É integralmente em língua francesa, com legendagem. Este é o espetáculo de abertura do Festival Internacional de Marionetas do Porto (FIMP), que se prolonga até 24 de outubro, com 21 espetáculos de oito países em várias salas do Porto.
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