O ponto de partida de “O riso dos necrófagos” é um acontecimento da história recente de São Tomé e Príncipe, o Massacre de Batepá, ocorrido a 03 de fevereiro de 1953, após uma revolta de trabalhadores locais contra a exploração dos colonos portugueses nas roças de cacau e café.
Na repressão desta revolta, ordenada pelo ex-governador Carlos Gorgulho, morreram 1.032 pessoas, na versão são-tomense, e entre uma e duas centenas, na versão portuguesa da época. Atualmente, este acontecimento é assinalado em São Tomé e Príncipe como o Dia dos Mártires da Liberdade e é feriado nacional.
“O acontecimento de 1953 é um pretexto para este espetáculo e é o ponto de partida. Ninguém vem aqui para conhecer a história”, adverte Zia Soares, diretora artística do Teatro Griot, em declarações à Lusa num final de um ensaio geral.
“O riso dos necrófagos” parte de materiais que a encenadora e o músico Xullaji recolheram na ilha africana, relacionados com o massacre: “Não fui à procura de uma narrativa histórica e cronológica, mas do que é que tinha ficado, que relatos tinham ficado, que gestuários, que sons é que a aquela ilha tem, como é que aquelas pessoas se movimentam”.
Em palco, onde estão nove intérpretes, o ambiente é de estrangulamento e de morte, segundo palavras da encenadora: “Todo o espetáculo transita numa atmosfera de asfixia, durante uma hora e tal, e essa asfixia faz parte de um gestuário de violência colonial e mantém-se até hoje. Até hoje, pessoas negras são asfixiadas todos os dias no mundo, seja aqui em Portugal, seja nos Estados Unidos”.
Metade do espetáculo é feito sobretudo de performance coreografada, sem texto, por Benvindo Fonseca, Binete Undonque, Daniel Martinho, Lucília Raimundo, Mick Trovoada, Neusa Trovoada, Vera Cruz, Xullaji e Zia Soares.
O texto é coassinado pela encenadora com a escritora são-tomense Conceição Lima e com a inclusão de registos da autora são-tomense Alda Espírito Santo, contemporânea dos acontecimentos de 1950, e que morreu em 2010 aos 84 anos.
“Há um ambiente de morte e de violência constante, mas há um pensamento, uma reflexão desse estado de morte que não é um estado de derrota, mas de transformação, de ir para outro lugar”, explicou Zia Soares.
Zia Soares considera que “a História tem várias faces”, mas só algumas pessoas a puderam contar.
“O que estamos a fazer é produzir memória, porque a nossa memória foi interrompida, de uma forma violenta, imposta. Houve uma narrativa [dos povos africanos colonizados] que foi interrompida e houve uma narrativa que foi imposta pelo colonizador. A minha memória certamente é muito mais curta do que a tua e por isso mesmo eu tenho uma necessidade maior de produzir memória no presente para o futuro. É disto também que este espetáculo trata”, disse.
“O riso dos necrófagos” estará em cena até ao dia 23 e assinala a reabertura das artes de palco da Culturgest, seguindo o plano de desconfinamento em contexto de pandemia.
Em paralelo à peça, a Culturgest organiza ainda dois debates: O do dia 23 intitula-se “Utupia Machim – Resistência no lugar dos tempos”, com António Pinto-Ribeiro, Inocência Mata, Miguel de Barros e Beatriz Gomes Dias, e o do dia 27, “Que ritual entre a vida e a morte?”, é preconizado por Zia Soares e Raquel Lima.
O Teatro Griot, composto maioritariamente por atores negros, trabalha neste espetáculo desde julho de 2020, contou com apoio financeiro da DGArtes e da Culturgest, que coproduz, e espera apresentá-lo ainda noutros palcos portugueses e também em São Tomé, Cabo Verde e Angola.
Por causa do novo confinamento, do encerramento das salas e adiamento de espetáculos, a companhia teve de estender o tempo de ensaios e trabalho dedicado à performance.
“Estamos a trabalhar mais dois meses e tal e o orçamento não alargou. Felizmente esta equipa está dedicada a levar o espetáculo até ao fim e tem a possibilidade de poder continuar a trabalhar nele apesar de não estar a ser remunerada”, sublinhou Zia Soares.
Este ano irão iniciar trabalho de uma nova produção que deverá estrear-se em janeiro de 2022 no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa.
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