A militância fez desde cedo parte da vida de Telma Tvon. Não necessariamente partidária ou ideológica, mas uma militância de quem reclama por um lugar ao sol num país onde este — supostamente — deveria nascer para todos. Foi o que a levou a integrar a explosão do rap e da cultura hip-hop nos subúrbios de Lisboa na viragem dos anos 90 para os 2000 como uma das poucas mulheres integrantes desse movimento. E é o que a ainda a motiva no seu atual trabalho de prevenção do abandono escolar, em bairros sociais na Linha de Sintra.
Ao longo deste percurso, lançou um livro, "Um Preto Muito Português". Inicialmente publicado pela Chiado Editora em 2018, a falta de promoção e de exemplares fadou-o a um esquecimento que não se eternizou porque a Quetzal recuperou-o numa edição revista e cuidada neste ano. "Insistiram que tinha de sair esta edição e agora, vendo-o com esta capa e com toda a revisão e todo o trabalho que foi feito, e estando a receber outra vez feedback e a perceber que havia muitas pessoas interessadas no livro a quem a primeira edição não tinha chegado — porque não havia exemplares à venda — percebo que faz todo o sentido o 'Um Preto Muito Português' estar aqui", afirma Tvon ao SAPO24.
A conversa decorreu no restaurante Mambo, em Lisboa, que veste com orgulho as suas raízes africanas, tal como a escritora e rapper. Tendo deixado Angola em 1992 com a irmã devido à Guerra Civil, instalou-se em casa da avó na Linha de Sintra, onde desde cedo começou a observar a diferença de tratamento entre as populações branca e negra — mesmo, no que toca a este segundo grupo, quando se tratavam de cidadãos nascidos e criados em Portugal.
Budjurra, o protagonista deste romance que se multiplica em entradas como se de um diário se tratasse, é uma efígie dessas pessoas que Tvon viu ser-lhes negada a nacionalidade portuguesa por causa do tom de pele — cidadãos que, mesmo nascidos em Portugal, é lhes sempre questionada a proveniência. Quando estava a crescer, a autora via os seus amigos portugueses a reagir com relativa passividade. Hoje, porém, vê outra atitude por parte das gerações mais novas. "Já se sentem completamente revoltados, porque muitos deles já são os nossos filhos. Eles pensam 'se os meus pais nasceram aqui e ainda não são [portugueses], eu também não sou. Os meus avós já estão aqui há 30, 40 anos, quando é que nós vamos ser? Porque é que vocês não nos aceitam? Porque é que nós não somos iguais?'".
A problemática da sensação de ser um cidadão de segunda categoria é apenas um dos temas tratados em "Um Preto Muito Português". O racismo endémico, o colorismo entre cidadãos negros, a violência policial e as dinâmicas entre imigrantes e afrodescendentes são alguns dos tópicos explorados neste livro. Tvon, por ter vindo para Portugal já adolescente, frisa como a experiência retratada no seu protagonista não é bem a sua, mas há pontos de contacto.
"Terminar um curso, procurar trabalho e perceber que eu não sou 'o tipo', não tenho 'o perfil' que o mercado de trabalho procura. E não é porque eu não seja uma boa colaboradora, porque nem sequer chegam aí. É ir às entrevistas e ver mesmo que tudo o que eu tenho a dizer ou que a minha aparência não interessa", desabafa ao SAPO24 — isto, apesar de ter uma licenciatura em Estudos Africanos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e um mestrado em Serviço Social pelo ISCTE.
Além de ser uma forma de combater a invisibilidade a que tanta gente é votada em Portugal, Tvon quer que este livro abra pontes para que tanto negros como cidadãos de outras etnias e tons de pele se unam para lutar contra formas de discriminação que persistem. Isso vale para a forma como o colonialismo ainda é abordado no sistema educacional, como para a consciencialização quanto ao consumo da cultura negra, já que "há muitas pessoas que consomem os nossos produtos culturais, mas continuam a ser amplamente racistas e preconceitosas."
“Sou filho de cabo-verdianos que vivem há muito em Portugal. Sou neto de cabo-verdianos que nunca conheceram Portugal”. Nasceu em Lisboa mas é encarado como estrangeiro. Assim se apresenta Budjurra, o protagonista do romance. Quem é ele?
O Budjurra é basicamente uma figura em que me inspirei por causa dos meus amigos, é a história deles. Quase todas as pessoas com quem cresci tinham basicamente este “background”: nascidos em Portugal, sendo descendentes de africanos, e não reconhecidos pela sociedade precisamente por causa da cor da pele. Daí a existência do Budjurra, para dar voz, dar visibilidade, falar sobre a identidade destas pessoas.
Essa é a questão que encima todo este o projeto, dar visibilidade a um tipo de cidadão português — porque lá está, como é referido no título, é português — que é frequentemente considerado invisível, não é?
Sim, sem dúvida. A mim, como africana que veio de Angola com 13 ou 14 anos, isso incomodava-me muito mais do que às pessoas que tinham nascido aqui, que respondiam "ah, sou de Amadora, mas os meus pais são de Cabo Verde" ou "sou do Seixal, mas os meus pais são da Guiné", por exemplo. Eu, que vinha de fora, não entendia porque é que estas pessoas tinham de explicar isto tudo — e percebia que eles basicamente não existiam, porque era como se estivessem constantemente a negar quem eram. Lembrei-me há pouco tempo de uma vez que estava no comboio com um grupo de amigos e o senhor revisor — a quem chamávamos "o pica" (risos) — perguntou "de onde é que vocês vêm" ou "de onde é que vocês são". Uma coisa assim, estávamos a ter uma conversa. Eu respondi Angola e os meus amigos disseram Cabo Verde e Guiné. Eu fiquei "Cabo Verde e Guiné? Mas vocês são aqui da Linha de Sintra, porquê Cabo Verde e Guiné?" E eles responderam "ah, não, porque ele, na verdade, quer saber o nosso ‘background’, não quer saber de onde somos". Aquilo foi uma coisa que me incomodou a ponto de escrever uma letra — já que a ideia era fazer uma música de rap, não propriamente um romance. Mas foi algo que esteve sempre comigo, porque eu sempre achei estranhas as respostas que eles davam. Eu perguntava "mas vocês não se assumem?" e eles "a sociedade não quer que a gente se assuma como portugueses, não faz sentido para a sociedade portuguesa nós dizermos que somos portugueses". E quando vi que alguns realmente se assumiam [como portugueses], eram contrapostos logo com "sim, sim, mas e os teus pais?" Conheço, inclusive, outro caso engraçado: eu tenho uma amiga cuja mãe já nasceu cá e, mesmo assim, perguntaram-lhe de onde eram os avós. Há sempre essa questão de adiar ao máximo a pertença.
"Um miúdo disse-me uma vez 'eu seria português se jogasse bem a bola. Como não sei, o que é que sou? Eu vou ser cabo-verdiano a vida toda'. Eu fiquei boquiaberta, um miúdo de 15 anos a dizer isto, com este tipo de reflexão."
Cai-se no essencialismo, não é? Se a pessoa não é branca ou não parece ter proveniência europeia, pensa-se logo "ok, então vieste de algum lado".
É curioso porque o nosso grupo era muito diverso. Tínhamos pessoas com vários “backgrounds”, inclusive uma amiga muito loira, de olhos azuis, com o ar mais nórdico do mundo, mas ninguém lhe perguntava de onde é que ela era. Isso ainda nos saltava mais à vista, porque está aqui esta pessoa que também não corresponde, supostamente, ao padrão português, mas ninguém lhe pergunta de onde vem.
E depois o problema é que estas pessoas são condenadas a viver neste limbo de não serem nem totalmente portuguesas, nem totalmente estrangeiras. O próprio protagonista, que para todos os efeitos é considerado um estrangeiro na sua própria terra, quando conhece uma cabo-verdiana, esta diz-lhe "tu não és cabo-verdiano, tu não tens a sabura, tu és europeu".
Sim, é verdade. Isso acontece com muita gente, que durante muito tempo, devido a essa negação de serem portugueses, pensaram "então se vocês não querem que eu seja daqui, vou ser do país dos meus pais". Só que depois, em muitos casos, quando se deparam com esse país, também se apercebem que não são vistos como sendo nacionais. Eu conheço muitas pessoas que nasceram aqui, são filhos de cabo-verdianos, foram a Cabo Verde e lá as pessoas chamavam-lhes "tugas". E eles, quando voltaram, ficaram do tipo "por favor, arranjem um país para mim". É um lugar de ninguém, não é? Na verdade, é um não-lugar constante.
"Uma das fundações do preconceito passa muito pela ideia de que somos todos iguais, por essa generalização, essa mensagem ignorante de que pensamos todos da mesma maneira, como se fôssemos um organismo e uma célula única. E ao fazer isso, tentei exatamente quebrar com essa ideia."
São pessoas que se sentem apátridas, de certa maneira. Isso deixa marcas psicológicas?
Sem dúvida, tem a ver com essa busca. Algo que aconteceu com a minha geração é que até aos 20 ou 30 anos, não fazíamos essa pergunta, mas quando se começa a ter filhos, começa-se a questionar. As dúvidas estiveram lá sempre, mas a minha geração acho que se calava mais. Agora esta leva dos 13, 14, 15 anos, já se sentem completamente revoltados, porque muitos deles já são os nossos filhos. Eles pensam "se os meus pais nasceram aqui e ainda não são [portugueses], eu também não sou. Os meus avós já estão aqui há 30, 40 anos, quando é que nós vamos ser? Porque é que vocês não nos aceitam? Porque é que nós não somos iguais?" Isso cria vários problemas a nível mental, questões a nível psíquico que são graves, distúrbios — principalmente nessa fase, em que queremos tanto integrar-nos, queremos tanto ser recebidos de braços abertos. Sinto que muitos dos jovens, hoje em dia, muito do que enfrentam é precisamente também por causa disso. Eu falo com miúdos que me dizem coisas como "porque é que eu vou dar o meu melhor? Porque é que eu vou estudar? Eu não sou daqui mesmo, eu não sou ninguém. Mesmo que eu dê o meu melhor, não será reconhecido".
Faz-me lembrar um pouco, por exemplo, o papel ingrato dos atletas portugueses negros a representar Portugal: Quando ganham são portugueses, quando perdem são africanos.
Um miúdo disse-me uma vez "eu seria português se jogasse bem a bola. Como não sei, o que é que sou? Eu vou ser cabo-verdiano a vida toda". Eu fiquei boquiaberta, um miúdo de 15 anos a dizer isto, com este tipo de reflexão. É o tipo de coisa que até pode ter havido na minha geração, mas eu não senti muito isso. Antes dizia-se "sou cabo-verdiano", agora muitos nem isso, dizem. "eu não sou é nada" — o que não sei se não acaba por ser mais grave até.
Um dos temas recorrentes ao longo do livro é de ser sempre um “outro”, de viver com uma identidade imposta sobre si. Budjurra tem um irmão descrente de brancos e uma irmã que não gosta de negros — já ele assume-se como problemático porque não encaixa em nenhum estereótipo do negro. Quão importante foi criar uma personagem mais ambígua?
Foi para representar todo o tipo de pessoas que eu conheço: pessoas como o Budjurra, que acho que são a maioria, mas também pessoas como a Sandra e como o Carlos. Então achei que fazia todo o sentido criar estas duas personagens com personalidades tão distintas para também representar outros espectros. Nem toda a gente é como o Budjurra, como é óbvio, e temos muita gente a pensar como o Carlos e como a Sandra. Quis explorar como é que é possível lidar com estas três personagens.
Há episódios — como aquele em que a família da ex-namorada angolana rejeita Budjurra por não ter a pele clara o suficiente — que demonstram que não há uma forma única de pensamento entre imigrantes africanos e afrodescendentes. Essa polaridade de opiniões foi um objetivo também para o livro?
Sim, porque eu queria também retratar essa nossa humanidade. Uma das fundações do preconceito passa muito pela ideia de que somos todos iguais, por essa generalização, essa mensagem ignorante de que pensamos todos da mesma maneira, como se fôssemos um organismo e uma célula única. E, ao fazer isso, tentei exatamente quebrar com essa ideia.
Há uma frase que reflete bem essa questão, que "a generalização é a mãe de toda a gratuita ignorância". Ele sente isso quando lhe dizem que "até é porreiro, ao contrário dos outros miúdos negros que moram ao pé dele.
O "até" é um bocado a história das nossas vidas enquanto negros. Já vimos muito isso. "Tu até és isto, tu até és diferente, tu não és muito igual até" — é algo que muitas das vezes nós engolimos em seco e rimos porque não queremos [conflito]. Porque contrariamente ao que as pessoas pensam, este é um assunto extremamente difícil para nós. Há muita gente a dizer "lá vêm eles com o 'mimimi', lá vêm eles sacar, como dizem os americanos, do 'race card'", não é? É muito cansativo. Nós não queríamos fazer isto, não queríamos ter de falar disto, mas é algo que nos afeta diariamente. É por isso que temos de falar, não temos qualquer prazer nisso. É um assunto que nos aflige e atinge a vários níveis, constantemente. Muitas das vezes, dependendo também do carácter de cada pessoa, há quem ouça e siga, não liga. Mas há outras pessoas que têm de retorquir, mesmo que seja muito cansativo estar a combater a toda a hora, a dizer "não, não digas isso", a tentar educar. Há tanta informação, temos a internet, fantástica e maravilhosa, e é preciso perceber não só essa informação, como também a questão da empatia. Gostarias que te fizessem estas questões constantemente? É porque é sempre, é durante anos, é super cansativo.
"Conheces aquela piada de que um branco a correr é desporto e um negro a correr é assalto? (risos) Pronto, acho que isso resume muito como a maior parte das pessoas se sente em relação a essa situação. Todos, não só os brancos, mas inclusive nós, negros, fomos educados a ter medo uns dos outros."
Essa questão do "mimimi" leva-me a pensar na questão das microagressões, e de que há pessoas que se focam no "micro", esquecendo-se que não deixam de ser agressões. Parece-me evidente que ninguém que se sinta insultado dessa maneira vai equivalê-lo a ser agredido ou espancado, mas não deixa de ser uma agressão, não é?
E as pessoas depois escudam-se numa coisa que, neste caso, é extremamente terrível, que é o humor. Dizem "eu estava só a brincar contigo", só que o que pode ser brincadeira para ti, não é para mim, principalmente quando eu estou sempre a ouvir isso. Deixa de o ser. E eu, não sei se por ter ouvido esse tipo de piadas várias vezes, tenho zero sensibilidade para essas brincadeiras — e isso serve para piadas de loiras, piadas de mulheres no geral, piadas de magros e de gordos. Sinceramente, espero muito mais do humor e não consigo perceber, além das generalizações, o porquê de uma piada que incida em gozar com características do outro. Não consigo, não sei se é do meu “background” e do que me foi acontecendo, mas eu não acho graça. Há tanta outra coisa por aí para fazer piadas que realmente tem graça, não é? Mas há maneiras diferentes de reagir. Há pessoas que são muito mais tranquilas quanto a isso e há outras que reagem de uma forma mais agressiva. Só que cada uma tem um problema: os que reagem de maneira tranquila, [incentivam a que] quem diz estas coisas depois continue e continue e não se cale; já quem reage de forma um pouco mais agressiva, aliás, mais assertiva, é considerado um agressor, um chato que não tem piada nem sentido de humor, que não entende e voltamos outra vez à história do 'mimimi'.
Quanto à questão das microagressões, o Bujurra assume-se como um “bom homem, esculpido pelas amostras do mal mas que reside no bem”. Apesar de tentar manter uma mundivisão aberta e não radicalizada, também há momentos de rutura e trauma — como a situação em que se vê envolvido no falso arrastão de 2005. Quão importantes são estas marcas?
Isso, para mim, é um resgate da nossa narrativa. Porque quando isso aconteceu, de uma maneira geral, não tivemos voz sobre o assunto. Só mais tarde, com um documentário da Diana Andringa, é que foi desmistificada esta ideia do arrastão. Mas durante muito tempo, eu lembro-me das pessoas ficarem apavoradas de nos verem andar em grupo, literalmente. Quando escrevi esse episódio, foi com a intenção de demonstrar "então, e o nosso lado? O que é que nós temos a dizer sobre isso? O que é que nós sentimos?" Eu até soube mais tarde de pessoas que conhecia que tinham estado na praia e que nem se aperceberam do que aconteceu. Essas pessoas também ficaram horrorizadas, até porque da maneira como a notícia foi veiculada, podiam facilmente fazer parte dos 500 que estavam na praia — e que quando viram a confusão, também começaram a correr. Foi nesse sentido que foi importante para mim relatar este tipo de episódio que marca toda uma história — principalmente por ter acontecido no dia de Portugal! Imagina, foi num feriado de 10 de junho na praia de Carcavelos! É importante relatar a nossa versão porque esse episódio ajuda a criar construções no imaginário da sociedade branca portuguesa de que nós somos indivíduos a evitar e perigosos. E essa é uma narrativa que prevalece — estamos em 2024, isso aconteceu em 2005 e continuas a ter muitos grupos a dizer o quão nocivos somos para a sociedade, ou que não devíamos estar aqui, que devíamos para de onde nós viemos.
"Eu tenho muitos miúdos que já me disseram que queriam desistir da escola porque a história que lhes é dada fê-los sentir como se eles não fossem nada. Porque é dada ainda numa perspetiva de 'nós levámos as civilizações, eles não eram nada, eram uns selvagens'. Tu, com 11, 12, 13 anos , ao ouvir isso, só queres enfiar-te num buraco e desaparecer."
Parece-me que parte tem a ver com a responsabilidade de quem ajuda a criar essa perceção coletiva — ou seja, há pessoas que querem impor essa narrativa. Mas outra parte também advém do que consideramos "racismo estrutural", ou não? A ideia de que um corpo negro desenvolto a correr em nossa direção é um sinónimo de perigo.
Conheces aquela piada de que um branco a correr é desporto e um negro a correr é assalto? (risos) Pronto, acho que isso resume muito como a maior parte das pessoas se sente em relação a essa situação. Todos, não só os brancos, mas inclusive nós negros, pretos, fomos educados a ter medo uns dos outros. Não fomos nós que criámos a questão do colorismo, foi-nos imposta, mas vivemo-la de forma intensa, por assim dizer. É um grande problema dentro das nossas comunidades e é algo que muitas das vezes não temos tempo para resolver, porque estamos mais ocupados a tentar provar que o racismo existe quando ele está aí, na cara do mundo.
É também isso que leva alguns atores a justificar racismo entre brancos e negros, dizendo que os negros são tão ou mais racistas entre si?
Sim, é isso e a tal idiotice do "racismo inverso" também, que é outra coisa que dá para ver perfeitamente que as pessoas estão a usar termos que nem sequer sabem o que são. Usam-nos porque os ouviram e não investigaram, não percebem nada. O racismo de que estamos a falar é macro, é institucional, é estrutural, é educacional, é dado nas escolas. Eu tenho muitos miúdos que já me disseram que queriam desistir da escola porque a história que lhes é dada fê-los sentir como se eles não fossem nada. Porque é dada ainda numa perspetiva de "nós levámos as civilizações, eles não eram nada, eram uns selvagens". Tu, com 11, 12, 13 anos , ao ouvir isso, só queres enfiar-te num buraco e desaparecer. E depois isso, por um lado, cria também uma data de preconceitos e estigmas sociais, questões de fraca autoestima coletiva junto de muitos dos jovens negros, e por outro cria uma ideia de de superioridade nos jovens brancos. Porque há a questão da glória nos ditos "descobrimentos" — hoje muito se diz, e diz-se bem, que a glória para uns é desgraça e genocídio para outros.
A tua história é até mais próxima dos pais de Budjurra, que são ambos imigrantes, do que propriamente dele, Vieste de Luanda — como já referiste, aos 13 ou 14 anos — e instalaste-te na linha de Sintra. Quanto de ti está nesta história?
Essa é uma boa pergunta... De mim... não sei dizer muito, porque a minha experiência foi muito diferente... Aliás, não, sei dizer sim. Está na entrada no mercado de trabalho: terminar um curso, procurar trabalho e perceber que eu não sou "o tipo", não tenho "o perfil" que o mercado de trabalho procura. E não é porque eu não seja uma boa colaboradora, porque nem sequer chegam aí. É ir às entrevistas e ver mesmo que tudo o que eu tenho a dizer ou que a minha aparência não interessa. É isso. Nesse aspeto, consigo relacionar-me com o Budjurra. Mas, por exemplo, quando falas de quando vim de Angola e comecei a estudar em Portugal, a minha integração na escola foi tranquilíssima. Tive muita sorte na escola onde calhei, fui estudar para a Stuart Carvalhais, em Massamá, que no início, nos primeiros anos, até não tinha muitos alunos negros, éramos pouquíssimos, mas depois foi tendo mais. Mas mesmo nesse primeiro e segundo anos, posso dizer que me dava muito bem com toda a gente, sentia que as pessoas também queriam ser minhas amigas. Não me senti muito afrontada, sinceramente. Falo com pessoas que têm mega traumas na escola, que foram vítimas de bullying — bullying racial, entre outras coisas. Não senti isso, fiz muitos amigos, alguns que conservo até hoje. Foi uma escola que dou graças em ter calhado, tendo em conta a maneira como vim, a fugir de uma guerra civil. Se tivesse ido para uma escola que tivesse ainda esta questão [o racismo], se calhar teria sido muito complicado. Claro que há sempre aqueles episódios, mas tu também, como és mais nova e não consegues reconhecer logo, não ligas tanto.
Portanto, é seguro dizer que a tua relação com esta personagem é sobretudo mais intelectual, não é? Ou seja, colocaste-te no papel de como um jovem português afrodescendente se sentiria a crescer em Portugal.
Sim, porque muitas das histórias que conto no livro — como quando Budjurra está na escola e a professora diz que ele tem de se sentar junto dos outros negros, mesmo que não tenha nada a ver com eles —, isso são coisas que efetivamente acontecem, e que aconteceram com pessoas que conheço. Haver professores e educadores a assumirem que, porque têm a mesma cor de pele, têm mais a ver e vão se identificar uns com os outros alunos negros.
Às vezes, nem é o facto de terem o mesmo tom de pele, é "parecido". Uma pessoa cujos pais sejam oriundos de Cabo Verde dificilmente tem a mesma tez que uma pessoa que venha da Guiné-Bissau. Até aí há uma generalização abusiva.
Sim, mais isso até. Obviamente há níveis diferentes, pessoas mais claras e mais escuras entre os negros, da mesma maneira que entre as pessoas brancas há mais morenas ou mais pálidas, por assim dizer. Há essa diversidade toda. Mas, voltando à questão das generalizações, o que eu exponho aqui é como são todos postos no mesmo saco — mesmo quando se sentem tão diferentes. Principalmente quando estão a crescer, porque os miúdos, de uma forma geral, sentem-se especiais à sua maneira.
"tendo em conta que escrevi isto a pensar nos jovens afrodescendentes, nos jovens negros em Portugal, ouço muitas pessoas do Brasil e pessoas brancas portuguesas dizer que sentem o mesmo quanto a muitos dos aspetos em que Budjurra se foca. Ou seja, isto acaba por ser bem mais transversal do que nós possamos pensar também"
E dá-se esse choque de realidade quando alguém lhes diz, mesmo que indireta ou involuntariamente, "tu não és especial, tu és como os outros".
Sim, na verdade há o discurso direto e há o indireto. O indireto acaba por ser subliminar mas eu já soube de situações que as coisas eram ditas de forma mesmo direta. Inclusive, dissuadindo pessoas que queriam, por exemplo, seguir Direito ou Química ou Biologia. "Porque é que achas que vais ser diferente? Todos os outros vão para Mecânica ou ser serralheiros, porque é que achas que contigo vai ser melhor? Essa é a história da tua comunidade". Conheço "n" pessoas a quem aconteceu isto. Ou então pegar no background dos pais e amputar logo o percurso dos filhos, dizendo "a tua mãe é empregada doméstica, o teu pai trabalha na construção, porque é que tu achas que vais ser veterinário?" E tu ficas "uau, um professor disse-me isto, de facto". E dizem.
“Um Preto Muito Português” lê-se mais como um diário ficcional do que como um romance de estrutura tradicional. Sentiste que este formato fazia mais sentido para o tipo de história que querias contar?
Fazia, porque à medida que fui começando a escrever e a pensar no romance, achei que se escrevesse dessa forma, as pessoas iam identificar-se mais. Que ia criar pontos de identificação superiores. Se calhar podia haver outras estratégias, outra forma de contar, mas para mim fez mais sentido assim.
E também porque dá esta sensação de que estamos a perscutar a intimidade de uma pessoa que nos abriu a sua casa e a mostrar-nos a sua vida.
E as suas vulnerabilidades. Acho que, mais do que uma pessoa estipular regras, é com alguém a mostrar as suas falhas que faz mais sentido e com quem nos identificamos mais. Começamos a refletir mais do que se for alguém a dizer "isto tem de ser assim, é preciso fazer assim e quando eu quero". E também porque eu queria mesmo só falar de sensibilidades. Claro que depois entraram nuances que acabam por resvalar para outros campos, mas era de sensibilidades que queria escrever.
"Não nos podemos esquecer que durante muito tempo, os fundadores do rap — e continua a haver pessoas a fazê-lo hoje — simplesmente acolheram os jovens dos seus bairros, retiraram-nos da rua, deram-lhes um propósito, uma identidade, e fizeram com que eles questionassem os seus direitos também. Portanto, acho que só nessa questão de nós existirmos, de estarmos aqui e criarmos qualquer coisa que de repente é consumida pelo mundo inteiro, quando supostamente não éramos nada, não fazíamos nada, estávamos à margem, então isso é político por si só."
Esse é um ponto-chave, porque este não é propriamente um romance com um enredo do género "personagem A foi fazer B e conheceu C". É mais quase que um conjunto de vinhetas que nos deixam conhecer a vida desta personagem, ou não?
Sim, uma das coisas que também acho interessante hoje em dia é que, tendo em conta que escrevi isto a pensar nos jovens afrodescendentes, nos jovens negros em Portugal, ouço muitas pessoas do Brasil e pessoas brancas portuguesas dizer que sentem o mesmo quanto a muitos dos aspetos em que Budjurra se foca. Ou seja, isto acaba por ser bem mais transversal do que nós possamos pensar também, não é? Se calhar é como se costuma dizer, somos mais parecidos do que queremos assumir e andamos todos a lutar contra as nossas diferenças.
Budjurra tem um despertar para a realidade negra em Portugal (e não só) com o hip-hop, especialmente o mais politizado. É muitas vezes atribuído ao rap esse papel como motor de consciencialização, mas os estudos na área indicam-nos que, na prática, a sua capacidade de transformação política é limitada. Há quem defenda que não se pode exigir mais de um género musical, há quem defenda que o rap é político apenas por existir como plataforma. Enquanto escritora e rapper negra, qual é a tua opinião quanto ao tema?
Eu vou pela segunda opção. Eu acho que o rap é político, por mais que haja aí várias tentativas de retirar-lhe esse teor e esse cunho político. Se formos a ver bem, a indústria faz de tudo para pegar em todas as outras faces que existem também no rap — a questão dos gangues, do sexo, dos rappers masculinos serem misóginos — para fazer críticas, ignorando o outro trabalho que é feito, não é? Não nos podemos esquecer que durante muito tempo, os fundadores do rap — e continua a haver pessoas a fazê-lo hoje — simplesmente acolheram os jovens dos seus bairros, retiraram-nos da rua, deram-lhes um propósito, uma identidade, e fizeram com que eles questionassem os seus direitos também. Portanto, acho que só nessa questão de nós existirmos, de estarmos aqui e criarmos qualquer coisa que de repente é consumida pelo mundo inteiro, quando supostamente não éramos nada, não fazíamos nada, estávamos à margem, então isso é político por si só. É político quando alguém como o Chullage ou como o Maze consegue chegar a jovens com os problemas que referi e dar-lhes a ideia de que são capazes de fazer melhor. É político nesse sentido, é transformativo.
A minha pergunta também vem no sentido em que, suponhamos, um rapper mainstream cuja temática das letras seja gangs, materialismo, sexo e consumo, continua a ser um sujeito político em si mesmo, ou não? Nem que seja um sujeito mediatizado porque o rap permitiu-lhe sair de um meio desfavorável e criar uma carreira a partir daí também.
Eu acho que é inconscientemente político, porque ele acaba por criar uma rutura com a ideia que as pessoas têm do que deve ser politicamente correto, mostra-se como ele é e como vivem as suas gentes. Mas depois também há a questão, que muita gente critica hoje em dia, de que alguns rappers fazem apenas isso e acabou, não se é interventivo. Mas também, na verdade, não têm de ser. É um bocadinho injusto estar sempre a pôr esse peso nos jovens.
Como se os rappers tivessem sempre de ser conscientes, mas as bandas de rock não, por exemplo.
Sim, o que eu acho é que até podemos ter essa consciência, mas muitos deles não a têm. Porque é que estamos a exigir que a tenham? É o que me parece injusto e fico muitas vezes confusa, porque nós estamos a lidar com pessoas que só têm “isto” [música] para dar — e não o digo de forma pejorativa. Agora, posso é exigir essa entrega a alguém que já entra num fórum mais político. "Vieste até aqui, fizeste e aconteceste, mas em que sentido? Andaste a falar em política, em intervenção social, em mudança, em controlo também, e agora, de repente, recuas? Se calhar não, agora aí também vamos querer mais e vamos querer que tu estejas na linha da frente". Portanto, lá está. Acho que é um bocado nem tanto ao mar nem tanto à terra.
"Eu acho que as expressões culturais dos negros vendem, vendem muito. Dão muito dinheiro à sociedade. E perceberam isso, porque desde os sneakers aos caps, à postura, tudo isso é uma máquina de fazer dinheiro. Mas, para aquilo que nos toca, para o que nos interessa em termos de igualdade e equidade, não fez nada, não fez mossa. Porque há muitas pessoas que consomem os nossos produtos culturais, mas continuam a ser amplamente racistas e preconceitosas."
Tu vieste daquela explosão do rap português e já não manténs uma atividade assim tão ativa, mas, a título de exemplo, participaste no “Samba de Guerrilha” de Luca Argel em 2021. Isso não só denota vontade de ligação à música, como também militância ativista com outras comunidades de língua portuguesa. É uma coisa que ainda manténs presente?
Sem dúvida. Acho que posso falar não só por mim, como também pelas raparigas que também eram do meu grupo e por mais pessoas, no geral, dentro da cultura hip-hop, mas durante muito tempo sentimos que estávamos circunscritos àquele meio e não nos víamos a fazer outras coisas. E eu acho que a maturidade e o tempo também nos dão isso. É possível juntar-te a pessoas que têm a mesma cabeça, a mesma visão e querem fazer mais ou menos o que tu fazes, mas que não precisam ter a mesma sonoridade. Quanto a isso, trabalhar com o Luca foi incrível. E também trabalhei com os Fado Bicha por causa da campanha da Joacine Katar Moreira, que também foi uma experiência fantástica. Acho que aprendi e cresci muito com essas colaborações, e hoje em dia faz-me todo sentido. Se me perguntasses o mesmo há, sei lá, 20 anos, eu era capaz de responder "não, não, eu continuo aqui, 'boom bap for life!'" (risos) Não haveria cá misturas. Mas, entretanto, até me lembro de uma coisa muito curiosa. Nós éramos tão fechados nesse sentido que, até mesmo dentro da nossa cultura, era considerado uma coisa muito negativa fazer kizomba.
Isso é um bocadinho a lógica dos puristas.
Durante muito tempo foi assim. Aliás o problema não era só fazer — isso ainda é —, mas tão somente ouvir [kizomba]. A dado momento da minha vida, fiquei a pensar "então, mas, se faz parte da nossa cultura, se faz parte das nossas tradições, isso não faz muito sentido". Quero dizer, por um lado não podes ouvir kizomba porque senão és fake, mas por outro podes ouvir funaná? Uma música tradicional pode ser mas outra não? Estas são as nossas bases! Em muitas casas, nós crescemos a ouvir essas músicas com os nossos pais, porque é que vamos retirar isso? Acho que agora, felizmente, isso já não existe muito. Estas novas gerações já bebem tudo e estão super tranquilas com isso. Nós é que éramos muito mais [fechados], mas também faz todo sentido, tendo em conta a maneira como durante muito tempo sentimos-nos guardiões e protetores da nossa cultura e como ela era vista de uma maneira super marginal. Lembro-me de estar em Queluz com calças largas e as pessoas literalmente mudavam de passeio, ficavam escandalizadas.
Sentiam-se sitiados? Se calhar não é o termo mais correto, mas era como se fosse uma situação de "nós contra eles"?
Era mesmo isso. Como dizias há pouco, o ser purista envolve a ideia de preservação de todas as formas, não havendo qualquer tipo de contaminação, seja de quem for. E muitas das vezes até o éramos contra nós mesmos. contra estas nossas origens tão importantes e tão preciosas. Mas hoje uma pessoa tem essa noção.
É preciso haver pessoas brancas a falar com pessoas brancas, porque eu sinto que muitas das coisas que nós, negros, dizemos às pessoas brancas caem em saco roto precisamente porque vão pensar "lá estão eles outra vez".
Há um momento no início do livro em que Budjurra lembra que na sua infância “ser preto não estava na moda”. Desde então a cultura negra disseminou-se e comercializou-se perante diferentes públicos, particularmente o branco ocidental ou o branco europeu. Como analisas essa mudança?
Eu acho que as expressões culturais dos negros vendem, vendem muito. Dão muito dinheiro à sociedade. E perceberam isso, porque desde os sneakers aos caps, à postura, tudo isso é uma máquina de fazer dinheiro. Mas, para aquilo que nos toca, para o que nos interessa em termos de igualdade e equidade, não fez nada, não fez mossa. Porque há muitas pessoas que consomem os nossos produtos culturais, mas continuam a ser amplamente racistas e preconceitosas. Não se educaram. É só o produto — e o produto é fixe, não é? Não nos está a dar nada. Para mim, nesse sentido, não nos está a dar nada. Não está a educar, não está a acontecer nada.
Sem desprimor para os seus autores, popularizou-se o termo "Nova Lisboa" para refletir esta ideia de uma sociedade mais multicultural e aberta, especialmente quanto às influências dos PALOP. Mas essa abertura depois coexiste com casos como o do homicídio de Bruno Candé. Portanto, quanto desta mudança foi cosmético e quanto é que foi realmente efetivo?
Percebo perfeitamente a intenção deles ao fazerem isto. Louvo a intenção, porque é precisamente neste na lógica de "em vez de serem outros a fazer estas coisas por nós, fazemos nós. Vamos resgatar isso para nós". Todavia, isso não está a resultar. Inclusive, eu estive num evento do Lisboa Mistura, e, no final, assisti a uma conversa que me deixou escandalizada. Fui para casa a pensar "esta pessoa esteve aqui e não aprendeu efetivamente nada, não viu nada e não olhou para nós como pessoas como ela". Porque houve uma discussão onde essa pessoa, que estava no nosso meio, revelou-se extremamente preconceituosa. E, no entanto, estava lá. Por mais que se crie esse tipo de eventos, por mais que se fale dessa Lisboa nova, dessa Lisboa misturada, dessa Lisboa da diversidade, existe quem, na verdade, não esteja sequer disposto a desconstruir-se, porque já está num lugar onde pensa "eu aceito a mistura, está tudo bem, eu sempre fui assim, eu até tenho amigos pretos, eu até como cachupa, eu até venho aqui ao Mambo". Não vai desconstruir nada, por mais que participe nesses eventos, por mais que o Dino [D'Santiago] ou Kalaf [Epalanga] escrevam ou cantem. Tem de ser algo bem mais fundo, passa pelas escolas, programas de televisão, programas de rádio. É preciso haver pessoas brancas a falar com pessoas brancas, porque eu sinto que muitas das coisas que nós, negros, dizemos às pessoas brancas caem em saco roto precisamente porque vão pensar "lá estão eles outra vez".
estas eleições e a tomada de posição de vários grupos quanto ao Presidente ter falado em reparações, a forma como reagiram, mostram como é necessário livros como este, literatura assim. E é também um apelo que faço às pessoas que possam ter ideias de escrever: são necessárias, cada vez mais necessárias, porque vão trazer estas questões a debate.
"Lá estão eles a tentar evangelizar-nos" É porque as pessoas acham que não é uma conversa natural? Sentem que lhes estão a querer enfiar mensagens pela cabeça?
Exatamente, por isso eu acho que isto também passa muito por uma conversa das pessoas a quem os americanos chamam "aliados". Pessoas brancas, que são os nossos aliados, a falar com os seus — principalmente muitas conversas de família. Porque às vezes falo com amigas brancas e uma delas vem com "ah, o meu pai disse isto". E tu disseste o quê? "Ah, não sabia o que devia dizer, é o meu pai". Não, é com o teu pai e com a tua mãe que tu tens de começar esta educação antirracista. Porque se tu pensas assim, falando comigo, com as pessoas brancas tens de fazer o mesmo. Reforço, principalmente com essas pessoas.
"Um Preto Muito Português" foi lançado originalmente em 2017, mas parece ainda mais pertinente em 2024, especialmente depois dos resultados das legislativas de março. O que pensas quanto a este timing de lançamento?
É muito engraçado porque eu, de certa forma, não é que já tivesse desistido do livro, mas a primeira edição, que saiu em 2017 por outra editora, teve alguns erros e eu já estava um bocadinho a pensar... "mas porque é que querem lançar isto outra vez?" Acho que a Quetzal viu a pertinência do livro, como o seu tema é sempre atual, infelizmente para nós. Na verdade, não passou tanto tempo assim, nós é que queremos que as coisas andem de forma mais rápida. Se as coisas não mudaram em 30, 40 anos, porque é que haveriam de mudar em 5 ou 6? Mas eles [Quetzal] insistiram que tinha de sair esta edição e agora, vendo-o com esta capa e com toda a revisão e todo o trabalho que foi feito, e estando a receber outra vez feedback e a perceber que havia muitas pessoas interessadas no livro a quem a primeira edição não tinha chegado — porque não havia exemplares à venda — percebo que faz todo o sentido o "Um Preto Muito Português" estar aqui. E, como referiste e bem, estas eleições e a tomada de posição de vários grupos quanto ao Presidente ter falado em reparações, a forma como reagiram, mostram como é necessário livros como este, literatura assim. E é também um apelo que faço às pessoas que possam ter ideias de escrever: são necessárias, cada vez mais necessárias, porque vão trazer estas questões a debate.
Esse tem sido um tema quente nos últimos meses, a questão das reparações para com as ex-colónias...
... que, dentro das nossas comunidades, já existe há muito tempo. Só que como o Presidente trouxe-a à baila, tornou-se realmente quente para todo o resto.
O facto de ser uma questão tão sensível parece denotar como o país tem dificuldade em encarar a sua história. O que falta fazer?
Completamente. Enquanto nós acreditarmos que ainda somos os heróis do mar — e quando digo nós, obviamente não estou a falar de mim (risos), nem estou a falar das pessoas como eu, e quero acreditar que também não estou a falar de ti (risos) —, dificilmente vamos conseguir lidar com este tipo de questões numa perspectiva do olhar do outro. O que é que o outro pode ter sentido? Até que ponto influenciou-nos a nós — e repara que aqui já estou a usar o nós. É engraçado, porque as pessoas recusam-se a aceitar estas questões, como estamos a falar, das reparações e não só, mas no entanto têm um orgulho desse passado e ainda nos mandam para a nossa terra, esquecendo que esse passado trouxe-nos até aqui. Então, há aqui, nitidamente, uma falta de entendimento histórico coletivo, mesmo ao nível das pessoas apenas raciocinarem o que é que isto efetivamente trouxe para Portugal e para nós. Sinceramente, não fui das pessoas que ficaram chocadas com as reações tão violentas às declarações do Presidente, porque eu já estava à espera disso.
Já existiam. Faltava só quem as destapasse e as normalizasse.
De repente estas pessoas têm voz e essa é uma grande franja da sociedade portuguesa. Eu já ouvi de pessoas de 22 ou 23 anos que, para mim, seria expectável que soubessem mais, coisas como "eu tenho muito orgulho no passado do meu país". E eu, às vezes, paro e digo "põe-te numa situação ao contrário. Vocês muitas das vezes, não gostam dos espanhóis devido a uma história comum que todos conhecemos. Então, imagina como nos sentimos e em relação a vocês e à vossa história connosco". E as pessoas aí, de uma maneira geral, calam-se. Mas depois continuama reverberar isto com outros agentes.
Correndo o risco de contaminar um pouco a conversa, às tantas não é sequer uma questão de orgulho ou vergonha, não é? É uma questão de encarar o que aconteceu e qual é o caminho mais produtivo para ter agora em concreto, ou não?
Sim, o que é que podemos fazer a partir daqui? A questão é precisamente essa. Há estas feridas, vamos assumi-las. Mas para ser sincera, eu pessoalmente, da maneira como sou e sem paninhos quentes, acho que a etapa da vergonha é necessária. Porque, da mesma maneira que em várias situações das nossas vidas, temos de passar por várias fases de luto, da culpa e de tudo isso, temos também de passar pela fase da vergonha até chegar à fase de "o que é que eu posso fazer a partir daqui?".
Passar por uma expiação, no fundo.
Voilà! Estás a ver? Nesse sentido, eu acho que é necessário. E é precisamente também para não voltar a acontecer. Hoje em dia, com as guerras que estão a curso, com o imperialismo, com a situação entre a Palestina e Israel, fala-se muito da expiação das culpas do passado. Mas não nos podemos esquecer que muitas das gerações que, por exemplo, que estão "do lado de Israel", por assim dizer, neste conflito, já nem se lembram do que aconteceu no passado. Se tu fores a ter uma conversa mais a fundo, não sabem nada. Então é importante relembrar estas coisas todas também. É de extrema importância passar efetivamente por essas fases e falar sobre isto, num sentido de não voltar a acontecer. Quanto à questão da reparação, esta também deve ser tida num sentido de reconhecimento, de que isto aconteceu. Então, se aconteceu e fez-se o que não deveria ter sido feito e já não há volta a dar, agora temos de ver como tentar reparar — e isso é também às gerações vindouras de que isto não está certo, de que não se repete, porque vai ficar documentado. "Eles fizeram isto, mas depois tiveram de pagar. Querem fazer exatamente a mesma coisa? Querem ficar do lado errado da história?" É passar essa mensagem também. É importante.
Terminando a conversa como começámos, com uma citação, lê-se às tantas no livro "as más pessoas não falam, agem — e como agem". Há a ideia de que aos gritos dos maus não basta o silêncio dos bons, de que não chega ser solidário, é preciso ser assertivo. Aos aliados, como referiste, o que falta fazer?
Terem mais voz. Falarem mais sobre estes assuntos. Não deixarem, por exemplo, o Presidente sozinho. Ele levantou esse véu e, entretanto, se formos a ver bem, houve mais vozes de discordância do que concordância. Outra coisa curiosa é que há muitas pessoas que, em conversas de café, até corroboram, mas depois, quando é para vir a público dizer que concordam plenamente, calam-se. É nesse sentido que tem de se dizer "estamos aí, queremos trabalhar no sentido de isso acontecer, estamos prontos, estamos preparados". Há pouco tempo, uma jornalista fez um documentário sobre o passado escravocrata da sua família — confesso que não me lembro do nome dela ["Debaixo do Tapete", de Catarina Demony]. Acho também que esse tipo de iniciativas é extremamente importante e interessante nesta luta, das pessoas perceberem de onde é que veio o seu privilégio. "Porque é que estou aqui e o meu colega, por exemplo, que veio da Guiné-Bissau não está?" Porque as pessoas facilmente abrem a boca para dizer "ah, estás a reclamar da situação. Se estás mal, muda-te. Mas o teu país também não está muito melhor". Então, mas porquê que o meu país não está muito melhor? O que é que aconteceu para o meu país não estar muito melhor? Ir a fundo nessas questões é uma tarefa para todos, mas essencialmente para esses aliados.
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