Antes do início do NOS Primavera Sound, havia quem se queixasse da ausência de grandes (ou médias) bandas rock, esquecidas e/ou trocadas por artistas mais ligados à música eletrónica e ao hip-hop. O que não quer dizer que o rock n' roll, o eterno rock n' roll, não estivesse também presente no festival. Um dos seus filhos mais aclamados, nos dias que correm, dá pelo nome de Unknown Mortal Orchestra, projeto do neozelandês – radicado nos Estados Unidos – Ruban Nielson, que conta com ajuda preciosa de mais três elementos na concretização de uma sonoridade psicadélica, onde o riff é força motora para a abertura mental a outros estados de alma.
Nem sempre foi assim. Discos como o homónimo, de estreia (editado em 2011), ou II, o segundo (2013) contêm canções pop/rock delicodoces, gravadas em regime de baixa fidelidade. E tanto um como o outro são “casa” para duas das canções mais bonitas que as agências de marketing de todo o mundo nunca adaptaram para um qualquer anúncio (tanto quanto se sabe): “Ffunny Ffrends” e “So Good At Being In Trouble”, ambas representativas de uma graça adolescente e narcótica. Foi com estas duas canções e estes dois discos que começámos a prestar atenção aos Unknown Mortal Orchestra, até chegarmos a Sex & Food e à cavalgada stoner de “American Guilt”, single que tem rodado incessantemente nas rádios.
Uma piada pateta inspirada pelo nome da banda, que tem sido repetida ad nauseam por trolls da internet, é a de que eles nem sequer são uma orquestra. E, a julgar pelas palavras de Nielson, nunca o serão. Mas poderiam ter sido. Ele próprio admite fazer piadas sobre isso, a toda a hora. “A banda começou sendo um trio, e neste álbum tornou-se um quarteto”, brinca. Mas quase passou para quinteto – o que acabou por não se verificar. Tivesse essa mudança acontecido de facto e o vocalista e guitarrista começaria a pensar em tornar os Unknown Mortal Orchestra “num sexteto, num septeto...”, ou até mesmo numa clássica big band americana, como as que vemos no campo do jazz.
Antes dos Unknown Mortal Orchestra, ou UMO para abreviar, Ruban Nielson era peça numa outra engrenagem, a dos Mint Chicks, banda punk neozelandesa com uma reputação para uns terrível, para outros fabulosa: a de partir tudo quanto se encontrava em palco, de o atacar com motoserras, até o de rasgar um bracinho ou uma perninha com uma faca. Esses momentos ficaram (por agora...) no passado – até porque Nielson está mais velho. Passou a escutar outro tipo de sonoridades e procurou juntar mais cores à sua paleta sonora. “Os Mint Chicks faziam as pessoas sentirem-se alienadas. Era uma energia excitante, mas negativa. O mundo tornou-se tão niilista que não quero contribuir mais para isso”, diz. “A minha mãe é do Havai; o que eu quero [hoje em dia] é dar um aloha! às pessoas”.
Mesmo que o músico nos diga não querer contribuir para o estado atual de coisas com mais negatividade, não podemos deixar de pensar que algum desse niilismo antigo passou para “American Guilt” [“Culpa Americana”, em tradução literal], nem que seja apenas para o seu título. “Talvez tenha”, admite. Essa canção, diz, é “uma coisa mais pessoal”, na qual Nielson não está “a tentar criticar outras pessoas”. A culpa, aliás, “poderá ser de todo o mundo ocidental”, sendo que nenhum de nós sabe “o que fazer com ela”. “Mas sou um romântico no que toca ao nosso potencial para a evolução. Muitas das pessoas que mais respeito estão a começar a dizer que as coisas estão más, de momento, porque vão mudar. Vai ser doloroso, mas irão mudar”, comenta. “É assim que me quero sentir, é essa a realidade que quero”.
Uma realidade que, para muitos, se tornou ainda mais triste com a morte de alguém que vivia tão intensamente a vida e que procurava, de facto, mudar o que pudesse: Anthony Bourdain. Sendo o título do novo álbum dos UMO Sex & Food, que era grosso modo também a filosofia do chef de cozinha e autor norte-americano, não pudemos deixar de perguntar a Nielson: como será o mundo depois de Bourdain?
“Acho que é uma das poucas pessoas cuja importância desconhecias até à morte dele”, afirma. O que é verdade: Bourdain não foi só importante para o mundo da culinária e dos foodies, mas também para o do jornalismo, o da música, o do turismo. “A primeira vez que ouvi falar dele foi através de um amigo meu, que era vocalista de uma banda de punk hardcore e também chef de cozinha. Ele tentou explicar-me como a vida na cozinha era agitada, comparando-a com a música”.
Ruban Nielson era conhecedor da obra de Bourdain, e revela ter adorado Kitchen Confidential, livro onde o autor documenta aquilo que se passava nas cozinhas dos restaurantes nova-iorquinos nos anos 80 e 90, longe dos olhares dos clientes quando era mais novo. Um livro honesto, que pouco deixa por dizer e que revela tudo de uma forma direta, sem rodeios, e de forma feroz. “Ele [Anthony] era um punk. Ao lê-lo, aprendi várias coisas sobre comida que desconhecia. Para muita gente, fez da comida e da cozinha algo excitante”, diz.
Essa excitação em torno da comida e da vida em geral passou para os UMO, segundo Ruban Nielson. “Quando nós viajamos, somos influenciados pela sua própria visão - experimentamos de tudo, vamos a países desconhecidos, provamos as suas comidas... Ele mudou a cultura. As pessoas são mais aventureiras por causa dele”, remata. A morte de Bourdain é, por isso, uma ferida que nem a banda, nem o mundo conseguirão sarar tão depressa. “Eu não consegui acreditar: porque é que ele se matou? Tinha a melhor vida possível... Vamos sentir a sua falta, não haverá substituto para ele”.
O chef gravou vários episódios em Portugal, país que Nielson também admira, tendo já cá estado com a sua banda por oito vezes: Paredes de Coura (2013 e 2016), Casa da Música (2013), Optimus! Alive (2014), Super Bock Super Rock, Armazém F e Hard Club (2015) e este mesmo NOS Primavera Sound. Nem o mau tempo o impediu de se passear pela cidade do Porto, ao longo do dia, e a degustação de um bom vinho do Porto também não faltou. Foi difícil destacar um momento preferido em Portugal, mas Nielson não esqueceu Paredes de Coura: “nadei no rio e vi os Alabama Shakes a tocar, quando nem sabia quem eles eram. Foi fixe”, conta. No entanto, alguém o terá enganado – ou terá sido ele próprio quem se enganou? “Da primeira vez que fui à praia, aqui no Porto, disseram-me que o Hemingway viveu junto à costa. É verdade?”. Não, Ruban Nielson, não é. Mas que importa isso se também o Porto é literatura?
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