No domingo, o ‘Jornal de Notícias’ trouxe a história para o centro da discussão. Dois juízes do Tribunal da Relação do Porto assinavam um acórdão, fundamentando a sua decisão com a Bíblia, o Código Penal de 1886 e as perceções que a sociedade tem dos comportamentos sexuais de uma mulher.
No acórdão da Relação do Porto, datado de 11 de outubro, o juiz relator faz censura moral a uma mulher de Felgueiras vítima de violência doméstica, minimizando este crime pelo facto de ela ter cometido adultério.
A história já havia sido contada pelo canal europeu Euronews, que falou com Frederico Moyano Marques, da APAV e dá conta da denúncia de movimentos pelos direitos das mulheres, que dizem não ser este um caso isolado.
Esta terça-feira, porém, a história ganhou uma maior amplitude, depois de ter sido relatada pela agência britânica Reuters. O texto foi depois replicado pelo ‘Guardian’ um dos principais jornais britânicos, que no título dá conta da revolta em Portugal com a decisão dos juízes.
"A patriarquia ultraortodoxa - um dos pilares da ditadura fascista de António Salazar até à revolução de 1974 - ainda sobrevive em partes de Portugal", escreve a agência.
Também ontem, a Amnistia Internacional Portugal considerava que o acórdão judicial do Tribunal da Relação do Porto que minimiza a violência doméstica contra uma mulher, alicerçado em censura moral, “viola” as obrigações internacionais a que Portugal está vinculado.
“A Amnistia Internacional Portugal defende a ausência de considerações de caráter religioso como fundamentação jurídica em nome do respeito do princípio da laicidade e em nome da igualdade e do respeito por todas as religiões”, realçou a associação em comunicado.
E acrescentou: “o Código Penal Português de 1886, citado no acórdão do tribunal da Relação do Porto, foi revogado pelo Código Penal de 1982, revisto pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de março. Assim, o Código Penal de 1886, citado no acórdão, não é fonte de direito português, não podendo ser utilizado pelos tribunais. A sua utilização revela a ineficácia da justiça portuguesa”.
A amnistia diz-se “preocupada” não só pela atuação dos juízes desembargadores ao “arrepio” dos preceitos legais e constitucionais, mas pelo espelhar de uma cultura e justiça promotora de "misoginia", sem ter em conta os direitos das mulheres e à compreensão do uso de violência para vingar a honra e a dignidade.
Lembrou também que Portugal está vinculado não só aos tratados internacionais de direitos humanos dos quais é signatário, mas também se encontra vinculado, desde 01 de agosto de 2014, às obrigações previstas na Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, comummente conhecida como Convenção de Istambul.
Outras associações têm vindo a mostrar repúdio pela decisão dos juízes portuenses.
Em reação, o Conselho Superior da Magistratura (CSM), diz em comunicado que os tribunais "são independentes e os juízes nas suas decisões apenas devem obediência à Constituição e à lei, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso pelos tribunais superiores", não podendo o CSM, por isso, intervir.
O CSM alerta, contudo, que as sentenças dos tribunais devem "espelhar" essa fonte de legitimidade, "realizando a justiça do caso concreto sem obediência ou expressão de posições ideológicas e filosóficas claramente contrastantes com o sentimento jurídico da sociedade em cada momento, expresso, em primeira linha, na Constituição e Leis da República, aqui se incluindo, tipicamente, os princípios da igualdade de género e da laicidade do Estado".
Mais de 5 mil pessoas assinaram entretanto uma petição que apela à tomada de posição do Conselho Superior de Magistratura (CSM) e do Provedor de Justiça sobre a argumentação de um juiz da Relação do Porto num caso de violência doméstica.
Os signatários da petição, que pelas 08:30, segundo a página da internet Petição Publica, já reunia 5.019 assinaturas, dizem-se “chocados com a argumentação” apresentada, manifestam repúdio, pedem ao CSM e ao Provedor de Justiça que tomem posição e apelam a uma "reflexão urgente e séria" sobre a necessidade de alterar o sistema de e/ou avaliação dos juízes, "para que casos como este sejam evitados no futuro".
[Notícia atualizada às 13:09]
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