Enquanto conversa o telefone toca na sua secretária - há sempre uma chamada urgente para fazer ou para atender. Desta vez é um convite para estar presente em mais um dos mil eventos para que é convidado todos os dias. Tapa o bocal do telemóvel e diz: "Está a ver? Querem que vá porque sim. O que não percebem é que eu já estou morto" [ri]. Mas não está, e a genica e a lucidez dos seus já noventa e muitos aquando deste episódio fazem inveja a qualquer miúdo de 25.

Adriano Moreira completa hoje 100 anos e não atende o telefone. Esteve com Covid, que lhe afetou a audição, por isso, por enquanto, deve resguardar-se. Mas foi ali, na Academia das Ciências de Lisboa, que passou muitas manhãs até há bem pouco tempo.

Quando foi presidente daquela instituição pública percebeu que todos os dias, quando chegava, havia nos corredores uns embrulhos em papel pardo cada vez mais perto da porta. Todos tinham a chave e era fácil entrar e sair a qualquer hora, podendo levar bens que pertenciam à Academia. Um dia foi falar com o ministro da Administração Interna, Miguel Macedo na altura, a pedir para instalar alarmes porque não tinha verba. "O senhor doutor não tem verbas e eu não tenho polícias", respondeu o ministro.

Lá se instalaram os alarmes, na certeza de que, "sem inventário, com maus registo e falta de conservadores, muita coisa se perdeu".

A Academia das Ciências é anterior ao terramoto e quando a Câmara Municipal de Lisboa fez o parque de estacionamento, por baixo da igreja (o edifício era um convento), descobriu-se que o local foi vala comum e também se encontraram indícios de antropofagia. O professor contava estas coisa encantado.

Da janela do seu gabinete, na sala Abade Correa da Serra, vê-se o Liceu Passos Manuel, que frequentou e para onde ia a pé. Nunca se esqueceu de quando viu João de Barros descer as escadas do liceu tão depressa que deixou cair o monóculo, que se espatifou ao cair no chão. "Ele nem parou. Meteu a mão no colete e tirou outro, que colocou no olho".

As histórias que conta não têm fim. Tantas vividas por si, muitas narradas por terceiros, algumas anedotas para ilustrar. Como aquela do banqueiro snob, que convida para jantar em sua casa um empresário riquíssimo, a quem vai mostrando os quadros pendurados na parede: "Este era o meu bisavô, grão-duque de tal, este era o meu tio, marquês de xis, este era o meu avô, conde de ípsilon". Ao que o convidado responde: "Tem graça, por mais um lance no leilão e o seu avô era o meu".

Adriano Moreira nasceu numa aldeia pobre, Grijó de Vale Benfeito, em Macedo de Cavaleiros, no seio de uma família ao nível da aldeia. "Não havia dinheiro, as pessoas acertavam as contas na época das colheitas". E cita os versos de Guerra Junqueiro, “os pobres dos pobres são pobrezinhos” para explicar que a aldeia era assim, "tão pobre que quem tivesse de pedir ia pedir fora".

O avô paterno, que não conheceu, "era empregado de um moinho, mas todos os filhos fizeram a instrução primária". 

O avô materno teve oito filhos e enterrou cinco, sobretudo por causa da tuberculose. "Teve grande influência em mim, vivia melhor, mas ao nível da aldeia, num tempo de pobreza, analfabetismo, más comunicações".

O pai veio para Lisboa fazer o serviço militar e ficou. "Era um homem muito tranquilo. A minha mãe tinha muita fé, era muito religiosa. Estamos no séc. XIX: como é que um homem que vai para Lisboa, primeiro para a Polícia de Segurança Pública e depois para o Porto de Lisboa, e uma mulher que trabalha imenso para fora, a fazer trabalhos de costura, decidem que os dois filhos têm de ter um curso superior? E conseguiram".

A irmã, mais nova, formou-se em Medicina, Adriano Moreira - que se gaba de ter sido o último dos dois a usar bengala -, licenciou-se em Direito, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ao 21 anos e, a este propósito, lembra um episódio curioso.

"Marcello [Caetano], quando chegou ao poder, já estava gasto. Percebe isso se eu lhe disser o seguinte: quando entrei para faculdade, teria 16 anos, o curso era cinco de anos, o meu professor de História do Direito, o Pedro Martins, morreu e teve de ser substituído. Mas numa das suas aulas, na altura havia quatro ou cinco raparigas, não havia mais, ele pôs-se a chamar: "Rosa", chamou. E a rapariga, moita. Repetiu: "Rosa". Nada. "A aluna 25, levante-se. Já a chamei duas vezes". "Eu não me chamo Rosa, senhor doutor". "Não se chama Rosa, então como é que se chama?" "Rosalinda". "Ah, desculpe, só tinha reparado na primeira parte" [dá uma gargalhada]. Mas esta é a história dentro da história, porque era aqui que Adriano Moreira queria chegar: "Quando o professor morreu, veio Marcello Caetano substitui-lo. E vieram logo dizer-nos: vocês agora vão ter como professor Marcello Caetano, que é o sucessor de Salazar. Ora isto só viria a acontecer 30 anos depois".

Voltando aos seus pais, "sempre fiquei subordinado pela admiração". Viviam em Campolide, "que nesse tempo era uma espécie de aldeia, onde não havia igreja. A igreja era em São Sebastião da Pedreira, mas era preciso ir a pé, não havia meios e transporte disponíveis ou acessíveis", recorda.

Nunca perdeu a ligação a Trás-os-Montes e, ao contrário do que recomendava o avô - "vocês emigram, mas quando estiverem com muita gente não digam que são transmontanos, os outros podem não ser e ficam incomodados" - sempre fez questão de falar nas suas origens.

Era lá que passava os três meses das férias grandes. "Era uma aventura ir para lá, porque apanhava-se aqui o comboio em terceira classe, por volta das 8h ou das 8h30, e chegava-se a casa do meu avô no outro dia às oito da noite, a cavalo num burro, porque a estação ficava longe da aldeia".

Adriano Moreira licenciou-se cedo e casou tarde. Com a passagem dos anos os pais começaram a sentir necessidade de regressar à aldeia. E foi preciso "organizar a vida de maneira a que os sentimentos de toda a gente fossem satisfeitos.

"Casei tão tarde, fundamentalmente, porque à medida que a minha vida ia melhorando não me sentia com força para deixar o meu pai e a minha mãe. Queria que eles fossem recompensados pelo apoio, pelo amor dedicado. Foi isso". Divertido, conta que "eles próprios empenhavam-se em que eu arranjasse família".

Arranjou. Uma família numerosa e sempre a crescer: seis filhos, três rapazes e três raparigas, e 14 netos, "que agora vão sendo mais porque há os namoros". "De vez em quando até penso que preciso de eleger uma junta de freguesia para organizar a família [risos]".

Como o pai, alguns dos filhos envolveram-se na política. Nuno Lima Mayer Moreira era dirigente do CDS, autarca na freguesia da Ajuda, e morreu em 2020, um duro golpe, aos 47 anos. Isabel Moreira, deputada do Partido Socialista, é filha mais nova, nascida ainda no exílio, no Brasil. Adriano Moreira tem por ela, antes de mais, "um afecto imenso". Mas torce o nariz quando a ouve defender algumas teorias: "Creio que é a única que não é católica". Apesar da diferença de pensamento, defende o respeito pela liberdade de opiniões, "de maneira que não me afeta nada que tenha ideias diferentes. Sou um democrata cristão". De resto, "se eu tiver uma dor de cabeça, ela vem a correr".

Na família, "são todos muito solidários e a juventude tem sempre uma alegria à sua volta, isso ajuda a enfrentar a vida conforme ela vai passando. Por outro lado, é uma coisa que exige esforço - e esse esforço não depende só de nós, talvez a ajuda de Deus seja importante nisso. Por isso, é importante nunca parar com a atividade, ter sempre interesses por que se bater. E aos desgostos com a situação em que está o mundo, se não se contrapuser uma certa alegria, é mais difícil".

Hoje já quase não lê, mas gosta de poesia - e inspira-se nela -, sobretudo a da sua infância. O avô sabia Guerra Junqueiro de cor, sabia tudo de João de Deus, de Antero de Quental, e assim foi aprendendo. "Ainda fiquei com um caixotinho pequenino de livros dele".

Gosta de Fernando Pessoa, "como toda a gente", mas gosta muito de Sophia de Mello Breyner – "uma vez num tribunal plenário, ainda exerci, foi fazer um depoimento, era uma jovem, e quando acabou levantaram-se todos, uma coisa de respeito" -, e também de Alexandre O'Neill. E dos brasileiros, ou não tivesse vivido dois anos no Brasil: "ficamos subordinados à poesia brasileira".

Foi por causa de um livro que conheceu Mário Soares, um amigo improvável. Um dia Adriano Moreira foi, a pedido do advogado António Ribeiro, seu superior hierárquico, ao Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos, para tratar do caso de um oficial do Exército, Celso Magalhães, que estava lá preso.

Depois de um habeas corpus e alguns reveses que agora não vêm ao caso, Adriano Moreira acabaria por ser preso também, ainda que por pouco tempo. Foi então, na camarata, que conheceu Mário Soares, também ali preso. "Eu estava a ler "Filosofia da História", de Hegel, e ele chega-se ao pé de mim e diz: "Mas você só lê coisas reacionárias?!" E eu respondi: estou a fazer curso para miguelista". O início de uma grande amizade.

Escrever é outra coisa que teima em fazer, sempre à mão, mas "a minha caligrafia não é das melhores. É "do tempo em que o primeiro avanço é a máquina de escrever", teve duas ou três, mas nunca se habituou, porque não refletiam o seu "estilo". Quando vieram os computadores "já os meus dedos estavam deformados. De vez em quando doem-me".

Adriano Moreira
créditos: Paulo Rascão|MadreMedia

Os traumas do mundo

Afirmou diversas vezes que "a minha geração não fez tudo o que podia ter feito para não chegarmos onde estamos hoje". Diz que ainda "não encontrámos uma governança para o globalismo", mas acredita que as novas gerações estão mais conscientes: "Vão ser capazes de construir melhor a vida que já não vamos viver".

Cresceu num mundo em que os heróis do mar tinham grande passado,  numa altura em que se ensinava que a fronteira, regada pelo sangue dos valentes, é sagrada e o patriotismo fundamental. Os valores e os hábitos da grande maioria da população eram os da Igreja Católica. "A nacionalidade era uma identificação fantástica, até os que emigravam iam agarrados à terra". Mas isso mudou.

Adriano Moreira conta que assistiu a duas quedas do mundo - talvez assista a uma terceira. A primeira foi quando o então ministro almirante Sarmento Rodrigues lhe pediu, porque lecionava essas matérias, para fazer a reforma do sistema prisional do Ultramar. "Tive de visitar as nossas colónias e percebi que uma coisa é o que dizem as leis, outra é o que se faz na prática".

A segunda queda foi já como delegado nas Nações Unidas, quando percebeu que a Carta da ONU foi escrita exclusivamente por ocidentais, que mandavam no resto do mundo, a que chamavam terceiro mundo. "Isso influenciou muito a minha maneira de olhar para o mundo, tão diferente de Grijó".

"Penso que os objetivos frustrados, e que estavam na grandeza dos estadistas que fizeram as Nações Unidas, são talvez redutíveis a isto: primeiro lugar, substituir a tolerância pelo respeito. Segundo, substituir os conflitos violentos pelo diálogo. Cada um deve ceder o necessário para que o essencial seja salvaguardado". Uma lição que continua atual.

Com a investigação que fez, o professor escreveu um livro, prémio da Academia das Ciências, e entregou o cheque de 80 contos à mãe para se fazer a reconstrução da capela da terra. Nos 60 anos da obra, a aldeia fez um almoço para 200 pessoas e convidou Adriano Moreira, para depois se queixar dos livros que deu à biblioteca de Bragança e não à biblioteca local. Era o único sítio com ensino superior na região e "a biblioteca não é para enfeitar", respondeu.

Voltando à ordem mundial, ela mudou. E continua a mudar. Adriano Moreira considera que hoje não há estadistas com a dimensão daqueles que encontrou quando era jovem. E preocupa-se com as guerras. "Quem fornece as armas são os grandes países que têm complexos militares industriais muito desenvolvidos. Não é nenhum exagero poético dizer que o equipamento que sustenta estas atitudes, em valor, chegava para acabar com o problema das dívidas soberanas. No entanto, está a crescer a área dos deserdados. Chegámos a uma situação de tal complexidade que me ocorre algumas vezes que nos falta capacidade de prever”. Falta visão.

Já há muito que Adriano Moreira falava no problema de a memória sobreviver para lá dos tratados. "Fui algumas vezes a reuniões da NATO. Tínhamos acabado com o regime colonial e começou a fazer-se a diferença entre os países do Norte e os países do Sul. Os Estados Unidos mandaram a embaixadora, vestida com uma linda capeline, com esta mensagem: os EUA não podem estar numa organização em que quem paga não manda e quem manda não paga".

Entretanto, "Putin fez um discurso preocupante a dizer que estava inquieto com a guerra de valores. Lembrou-se que quando os turcos invadiram a Europa, a Igreja Ortodoxa Russa fez uma declaração: a primeira Roma caiu, a segunda Roma caiu, a terceira Roma não cairá. Na terceira vez, estávamos a ver a Ucrânia na Europa, e Putin avisou: a minha fronteira de interesses é superior à fronteira física - julgo que terá ido à missa a seguir".

Portugal também tem os seus traumas. "Populismo é uma saudade de outros tempos", costuma dizer. Mas o hábito é falar muito e agir pouco (ou devagar). Adriano Moreira foi ministro do Ultramar entre 1961 e 1963 e sabe disso melhor que ninguém.

É conhecida a história da sua demissão, pelo menos a versão de Adriano Moreira. "Salazar mandou-me chamar ao forte e disse: "Quando o convidei, disse-lhe que apoiava as reformas todas. Tenho cumprido ou não?" "Até agora, tem". "Mas as suas reformas são tão avançadas que a reação é má, e eu, se continuo a apoiar isso, não sei se posso continuar a ser presidente do Conselho. Temos de mudar de política". Espontaneamente, talvez aquilo a que Torga chama "o espírito santo da aldeia", eu disse: "O senhor presidente acaba de mudar de ministro". "Já esperava a resposta", disse ele. Vim-me embora, aquilo era no primeiro andar, desci a escada - ele era muito bem educado, vinha até à porta, ajudava a vestir o casaco e ficava até a visita desaparecer: "Senhor professor?" "Faz favor, senhor presidente". "Não podemos discutir isso segunda-feira?" E eu disse: "Pode, com o próximo ministro".

Adriano Moreira revogou o regime do indigenato, fazendo desaparecer o estatuto de portugueses e primeira e portugueses de segunda, extinguiu as culturas agrícolas obrigatórias, institucionalizou as universidades de Angola e de Moçambique, entre outras reformas.

Estas reformas valeram-lhe a demissão e também uma saia justa num jantar oficial no Palácio da Ajuda, quando se cruzou com Mary Espírito Santo. "Dava-me muito bem com uma filha, a Maria, uma mulher admirável, inteligente, bonita, mas a mãe falava muito com "erres". Vê-me, pega-me na mão: "Ó Adrriano, só eu perdi não sei quanto porr ano com as tuas reforrmas". Pensei: "Ai Jesus! "A família está muito zangada contigo, mas eu acho que fizeste bem". Uff, respirei fundo de alívio", conta a rir. "Não há reformas que não prejudiquem interesses".

Uma vez foi convidado para fazer um discurso na universidade e acabou a ler um sermão do padre António Vieira, "Quando?", que diz que antigamente os ministros estavam às portas das cidades, agora as cidades estão à porta dos ministros. "Para resolver os problemas, quando? A segurança, quando? A pobreza, quando?".

Sobre Adriano Moreira não pendem apenas coisas boas e muitos acusam-no de ter reaberto o Tarrafal, uma história que não se cansa de contrariar. "Quem veio dizer isso foi um cavalheiro comunista [Domingos Abrantes], que está então no Conselho de Estado e que foi companheiro de Álvaro Cunhal. Quando lhe perguntaram como era estar no Conselho de Estado, respondeu que era uma chatice ter de estar sentado diante de um fascista que reabriu o Tarrafal (era eu quem estava à sua frente). Quando uma jornalista me confrontou com essa afirmação, respondi que o senhor tinha bom remédio, podia ficar de pé".

Na reforma que estabeleceu ficou escrito que as penas deviam ser proporcionais à cultura em que cada pessoa vivia. Para Adriano Moreira o que era conveniente para nativos de África eram prisões agrícolas - "não era mau, melhor do que levar pancada". Quanto aos prisioneiros europeus, eram tão poucos que não havia necessidade de os Estados estarem preocupados, tinham as metrópoles onde os tribunais podiam funcionar.

Lopes Alves, governador-geral de Angola (1943-47) e que diversas vezes teve a pasta do Ultramar, "fez um decreto a pedido do Estado-Maior para poderem fazer uma cadeia em Cabo Verde a expensas de Angola, com pessoal de Angola. Quando Adriano foi ministro, o governador de Cabo Verde telefonou-lhe a dizer que se era Angola que mandava, ele não estava ali a fazer nada. "E fiz uma portaria a dar-lhe competência para intervir na construção da tal prisão. Nunca o fizeram".

Duas histórias inesquecíveis

Para Adriano Moreira é necessário, antes de mais, fazer a reforma do Estado - o que implica uma nova Constituição. E a reforma do Estado tem de começar pela revisão do programa dos partidos, com valores essenciais que identificam cada corrente política, mas que reflitam a mudança, porque meio século depois de se terem constituído o mundo é outro.

Uma das forças que praticamente desapareceu na Europa foi a democracia cristã. "O Estado social foi principalmente uma conjugação em que se encontraram a doutrina social da Igreja, a democracia cristã e a social-democracia. No sentido vasto. O que em Portugal se chama Partido Socialista é um partido social-democrata".

E Adriano Moreira foi presidente do CDS, Centro Democrático Social, a quem Manuel Monteiro acrescentou Partido Popular, depois de ter andado à procura de quem, entre os mais velhos, aceitasse liderar o partido (acabou por ficar ele).

"O problema é que os fundadores da União Europeia eram todos líderes da democracia cristã". Adriano Moreira foi presidente do Centro Europeu de Informação e Documentação, anterior ao 25 de Abril, e do qual ainda resta alguma coisa na Suíça, já sem atividade - como sobrevive o Instituto de Estudos Políticos do Liechtenstein, também democrata cristão, e cuja mobília foi oferecida pelo almirante Sarmento Rodrigues. Mas houve tempos em que se fizeram congressos por onde passaram todos os líderes da democracia cristã da guerra, incluindo Winston Churchill.

Concorda que figura do chefe de Estado em Portugal tem sido difícil de redefinir na história constitucional portuguesa desde o fim da monarquia. Mas defende há uma coisa que o chefe de Estado tem de ter, e não é poder, é "autoridade".

Considera que em alguns países, como Portugal, procura-se a maioria absoluta com o voto. E lembra que quando é assim o parlamento perde poder legislativo, porque não pode contrariar a vontade do executivo. "Tem uma consequência, os conflitos com os guardas dos guardas, o poder judicial, aumentam".

Por isso, defende o voto devia ser obrigatório. "Um dos ganhos é que a maioria limita a liberdade das minorias. Se houver voto obrigatório, o equilíbrio dos poderes da sociedade civil é com certeza mais evidente".

Adriano Moreira dá-se conta de que muito do que fez, das instituições por onde passou, estão a desaparecer. "Acontece que os católicos praticantes diminuíram muitíssimo". A fé é marca da mãe, numa vida enquadrado por três autoridades: a professora primária, o padre e o senhor regedor. "Ensinou-me que Deus é companheiro e nunca mais me esqueci disso".

Ainda hoje não adormece sem as orações que a mãe lhe ensinou. Reza sempre o Pai-nosso, a Ave Maria e o Salve Rainha, a primeira oração que aprendeu. Sempre. E muitas vezes acorda de noite e, instintivamente, é isto que reza.

Não gosta do insulto fácil que hoje surge em todas as conversas, onde quer que seja. Até no Parlamento. "Em Portugal a revolução foi feita por sujeitos que nunca andaram em coisas destas. Conversavam, faziam discursos. Onde andava a ala liberal? Estiveram em África na altura da guerra? Não estiveram. Estiveram nas Nações Unidas? Não estiveram. É preciso ler para saber". 

Uma vez mais, os traumas e a memória. E fala do livro "Império", que começa assim: “Em Lisboa há uma praça dedicada à memória de Afonso de Albuquerque e Vasco da Gama e onde existe uma loja que vende os chamados pastéis de Belém". É o que resta do império, os pastéis de nata, ironiza.

Recorda a Academia Internacional da Cultura Portuguesa. "Talvez o governo andasse a dormir, mas nós não. Fizemos a Associação das Comunidades Portuguesas no Estrangeiro. Não havia sócios individuais, só associações de portugueses no estrangeiro, porque as associações duram".

Na última reunião dessa organização, num barco fretado para o efeito, partiram de Lourenço Marques na rota de Vasco da Gama, e foram até à ilha de Moçambique. E aí, onde estavam todos representados, ergueram pela primeira vez na história a bandeira de Portugal e a bandeira do Brasil.

Ainda hoje lá está um rochedo onde se afundou uma das caravelas de Vasco da Gama e o "banquinho" de pedra, onde Sarmento Rodrigues, então governador-geral, se sentava a pensar. "As mulheres da ilha usavam um creme feito à base de raízes, com que andavam o dia todo, para à noite ficarem com a pele agradável para os maridos". E usavam as mesmas insígnias que eles. Foi 1966, já depois de ser ministro do Ultramar e de ter viajado por todas as colónias.

Com histórias curiosas e divertidíssimas, como estas duas que, em tempos diferentes, relatou. "Uma vez fui a Nova Lisboa [actual Huambo], numa cerimónia oficial. E vem uma menina trazer-me um ramo de flores. Devia ter uns 14 anos, a miúda. E disse-me umas palavras. E respondi-lhe: olha, agradeço-te muito e achei tão bonitas as palavras que disseste que, por esse caminho, chegas a ministra. Hoje é doutora em Economia e foi uma grande apoiante de Savimbi. Não chegou a ministra, esteve presa e não transigiu em nada com o governo. Agora vive entre cá e lá, mas diz sempre que é angolana, apesar de branca. Casou segunda vez e eu fui padrinho".

A miúda que quem Adriano Moreira fala é Fátima Roque, mulher de Horácio Roque, fundador e presidente do Banif durante anos.

Noutra ocasião foi ao Havai, "uma terra que me fascina", era presidente da Sociedade de Geografia. "À chegada havia uma comissão de senhoras, já respeitáveis, que se chamava "Comissão de Recepção ao Senhor Professor Adriano Moreira, Presidente da Sociedade de Geografia", e havia um grupo de miúdas de perder a cabeça – que eu ainda tinha idade para perder a cabeça -, que faziam bailado e me puseram uma data de flores ao pescoço. Quando isto acabou, as senhoras levaram-me ao hotel e disseram-me: amanhã, se estiver de acordo, vai tomar o pequeno-almoço com o português mais velho cá da terra. E, também se estivesse de acordo, ia pôr no cemitério, na campa dos portugueses que morreram a defender os Estados Unidos na guerra, as flores que me tinham oferecido. No dia seguinte, lá fui ao pequeno-almoço. Quando cheguei havia uma mesa cheia de tudo, e eu disse ao anfitrião: Peço desculpa mas não vou comer nada disto, porque costumo beber apenas uma xícara de chá ao pequeno-almoço. E ele responde: "Olhe, não vai longe" [ri].

Adriano Moreira, que hoje almoça razoavelmente e come muito pouco ao jantar, embora goste muito de comidas transmontanas, como alheiras, continua a ter um pequeno-almoço moderado: uma xícara de leite com um bocadinho de café e uma torrada e uma colher de chá de mel.

Naquele dia saiu dali para o cemitério, uma rua que se chamava Nossa Senhora de Fátima, mas a profecia não se cumpriu e hoje faz 100 anos, mais do que os 90 que tinha então o homem mais velho daquela aldeia. E tem uma teoria: "Nem todos os inteligentes são pessoas gulosas, mas todos os gulosos são pessoas inteligentes".

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