O Patriarcado de Lisboa anunciou, a 21 de março, ter afastado quatro sacerdotes cujos nomes constavam na lista de alegados abusadores entregue à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica.

No dia seguinte, o padre Mário Rui Pedras, pároco de São Nicolau e de Santa Maria Madalena, em Lisboa, anunciou ter sido um dos visados. "Nessa denúncia alguém refere ter sido vítima de abusos por mim perpetrados, os quais teriam ocorrido na década de 90, quando frequentava o 8.º ano, num colégio da periferia de Lisboa", explicou numa carta aos paroquianos.

Mais à frente no texto, adianta que se tratou de uma denúncia anónima e, por isso, "não dá a conhecer a identidade de quem a haja feito; não refere o nome da inventada vítima (quem denunciou anonimamente poderia indicar um qualquer nome); não se indica o local onde os falsos abusos teriam sido perpetrados; não fornece qualquer pista para levar a cabo uma investigação, referindo, por exemplo, o nome de potenciais testemunhas que tivessem algum conhecimento sobre o tema".

"Uma denúncia anónima, falsa, caluniosa, sem qualquer elemento útil ou prestável para investigação", denuncia. Nas redes sociais, muitas têm sido as mensagens de apoio ao sacerdote, de quem acredita que não terá culpa, e as críticas ao facto de serem aceites denúncias cuja proveniência é desconhecida, o que dificulta a investigação.

Já o padre Teodoro Sousa, da Malveira e Venda do Pinheiro, anunciou nas missas de 26 de março que seria um dos sacerdotes afastados, mas não foram divulgados detalhes na comunicação social quanto à denúncia.

Dos restantes dois nomes afastados pelo Patriarcado de Lisboa, o SAPO24 sabe que um deles diz respeito a outra denúncia anónima, relativamente a um suposto caso nos anos 80 que envolve um sacerdote atualmente no concelho de Torres Vedras. Prevê-se que a Santa Sé demore cerca de três meses a analisar o caso.

Contactado pelo SAPO24, o Patriarcado de Lisboa não prestou qualquer esclarecimento sobre a tipologia e investigação das denúncias de abuso sexual até à data de publicação deste artigo.

Todavia, independentemente de a denúncia ser anónima ou não, o Vademecum, documento preparado pelo Dicastério para a Doutrina da Fé para a Igreja lidar com os "casos de abuso sexual de menores cometidos por clérigos", frisa que as investigações devem ser continuadas.

Assim, o "possível delito" pode chegar à Igreja através de várias fontes e, inclusive, "de fonte anónima, ou seja, de pessoas não identificadas ou não identificáveis". Mesmo neste caso, o que é dito não deve ser considerado falso, principalmente se for acompanhado "de documentação que atesta a probabilidade de um delito".

"No entanto, por razões facilmente compreensíveis, é oportuno ter muita cautela ao tomar em consideração esse tipo de notitia, que de modo algum deve ser encorajado", é descrito.

Por outro lado, mesmo quando não são indicados "detalhes concretos (nomes, lugares, tempos etc.)", a denúncia deve ser "adequadamente avaliada e, na medida do possível, aprofundada com a devida atenção".

Quanto ao Ministério Público (MP), de recordar que, em fevereiro, tinham sido arquivados nove dos 15 inquéritos instaurados para averiguar denúncias de abuso sexual de crianças por parte de membros da Igreja Católica. Nessa altura, foi explicado que os principais motivos para o sucedido eram a falta de meios de prova ou a morte do denunciado, bem como a impossibilidade de apurar a identidade das vítimas ou dos abusadores.

Também José Matos, coordenador de investigação criminal da Polícia Judiciária, evidencia que o anonimato das vítimas de abusos sexuais dificulta a possibilidade de se fazer justiça.

"O crime sexual é um crime contra as pessoas. E se eu só tiver o abusador e não tiver a vítima, não tenho o corpo de delito. Não consigo fazer prova de um crime sexual se não tiver uma vítima", referiu à Lusa. "O facto de ser denúncia anónima corta a nossa possibilidade de ter, efetivamente, nos processos que foram abertos, a realização da justiça".

José Matos enfatiza que sem a existência de um alvo identificado do abuso torna-se muito difícil uma recolha de prova eficaz, apesar de entender que a opção do anonimato assumida pela Comissão Independente terá contribuído para o elevado número de depoimentos.

"Para um dos objetivos da Comissão é ótimo, mas para a investigação criminal e a realização da justiça é muito difícil, para não dizer impossível. (…) Por isso é que a maioria dos processos o MP nem sequer remeteu à Polícia Judiciária. Porque os elementos eram tão parcos, tão limitados, que não se conseguia fazer", observa.

Um inquérito online que permitia o anonimato

Grande parte dos testemunhos chegou à Comissão Independente através do "inquérito por questionário" colocado online, que garantia "o anonimato de quem o preenchesse enquanto vítima". Assim, aquilo que era apresentado "não continha quaisquer perguntas sobre a identidade (nome, morada, contacto) da pessoa vítima ou sobre a identidade da pessoa abusadora".

Lia-se antes das questões:

"Sobre o que quiser ou puder relatar, terá sempre a total garantia do seu anonimato e do nosso sigilo, bem como a de que as suas respostas serão apenas utilizadas no contexto deste Estudo. Se sentir que não quer ou não pode responder a certas perguntas, passe à frente – nenhuma pergunta é de resposta obrigatória. E pode, a qualquer momento, interromper o preenchimento, fechando a página. Contudo, saiba que quanto mais informação nos der, melhor podemos definir o que aconteceu".

No total, 564 pessoas deixaram o seu testemunho, mas só foram validados 512 depoimentos. "O guião contemplava dois momentos distintos da vida do entrevistado. De um tempo presente, solicitava-se informação de natureza sociográfica sobre a pessoa vítima (ex.: género, ano de nascimento, local de residência, profissão, nível de escolaridade, religião e prática religiosa, grupo doméstico de residência); e ainda sobre a sua família de origem", pode ler-se no relatório.

Por sua vez, "de um tempo passado, solicitava-se à pessoa para recuar ao momento da infância e adolescência em que foi abusada", para daí se obter "um conjunto detalhado de informações sobre o seu contexto de vida na altura, a modalidade de abuso que sofrera e a pessoa agressora que o praticara".

Depois, "para a validação cuidada dos testemunhos, procurou-se a sua consistência narrativa e a triagem de falsas informações, excluindo casos que correspondessem a categorias de idade fora do estipulado, discursos de distorção da memória traumática ou mesmo a confabulações sobre a realidade".

Associações de apoio especializado à vítima de violência sexual:

Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)
910 846 589
apoio@quebrarosilencio.pt

Associação de Mulheres Contra a Violência - AMCV
213 802 165
ca@amcv.org.pt

Emancipação, Igualdade e Recuperação - EIR UMAR
914 736 078
eir.centro@gmail.com

A Comissão diz ainda, no relatório, que "garantiu sempre o anonimato das vítimas — tanto no sigilo na transmissão de informação ao Ministério Público (nos casos não prescritos), como nos contactos com a comunicação social, na articulação com a CEP ou na consulta de arquivos da Igreja". Ou seja, "a base de dados dos testemunhos ficou blindada ao exterior".

Mas porquê? Para o grupo de trabalho, do "ponto de vista de um estudo científico sobre abusos sexuais de crianças, os nomes em concreto são irrelevantes para o objetivo traçado, pois o que importa é construir uma tipologia de contextos de abuso, associados a perfis-tipo de pessoas vítimas e de pessoas abusadoras".

Assim, garantir o anonimato das vítimas "era um princípio fundamental de partida: ninguém, em caso algum, deveria sentir-se exposto (ou em risco) na sua pessoa concreta, sendo que a garantia desta proteção podia levá-la a sentir-se eventualmente mais segura para colaborar com a Comissão Independente e assim aprofundarem-se os seus testemunhos".

Feitas as contas, "apenas 2,7% dos respondentes referem que a possibilidade de falar do abuso 'sem dar a cara' foi a principal razão para preencherem o inquérito ou contactarem a Comissão".

"Não sendo esta Comissão uma equipa de investigação criminal, estava absolutamente fora de questão procurar recolher nomes de alegados suspeitos destes crimes ou encorajar denúncias", foi ainda especificado.

O SAPO24 contactou a Comissão, que já não está no ativo, para saber quantos dos nomes entregues na lista de alegados abusadores surgiram com base em denúncias anónimas, mas não foi recebida qualquer resposta em tempo útil.

E alguém quis revelar a identidade?

Com o decorrer dos trabalhos, "tornou-se inevitável o confronto com numerosos casos de pessoas que, ao preencheram o inquérito autonomamente ou através do contacto com a Comissão, decidiram expressamente identificar-se, oferecendo-se até (algumas delas) para uma colaboração futura e/ou a solicitar um contacto direto com a Comissão. Outras, também, decidiram revelar a identidade concreta dos seus abusadores nos campos abertos do questionário (por exemplo, incluindo-o na resposta à pergunta 'Gostaria de acrescentar mais alguma coisa ao seu testemunho?')".

"Desde o início dos trabalhos, 51 pessoas contactaram a Comissão para marcar um dia e uma hora para virem pessoalmente dar o seu testemunho: ou seja, mais do que preencherem um inquérito anónimo disponível online, abordarem o seu caso telefonicamente ou expondo-o por email ou em carta, esses adultos fizeram questão de falar pessoalmente com membros da Comissão, dando assim a sua cara, quebrando o seu anonimato, desejando participar de uma maneira ainda mais ativa e explícita do que outros neste estudo", é referido.

"Desse número total, resultaram diretamente 34 depoimentos (de 23 homens e 11 mulheres) que confirmaram abusos sexuais sofridos enquanto crianças, por parte de alegados abusadores membros da Igreja Católica".

Além disso, outras 14 pessoas deram "testemunhos considerados importantes ou fundamentais" para o estudo, uma vez que "possuíam conhecimento direto de casos ou situações muito diversas de abuso que aconteceram à sua volta". Estes dados foram "validados posteriormente pelo cruzamento de informação com outros testemunhos".

"Houve ainda mais três pessoas que, tendo sido também ouvidas pessoalmente, não foram consideradas para o presente estudo, uma vez que à data referida do abuso tinham uma idade já superior a 18 anos, logo, situavam-se fora da faixa etária contemplada no estudo", é também explicado.

Do outro lado do telefone

A recolha de testemunhos não aconteceu apenas através do inquérito online e das entrevistas presenciais. "De 11 de janeiro a 31 de dezembro de 2022 (datas de início e de conclusão do Estudo), esteve a funcionar uma linha telefónica" — que neste momento já foi desativada — que "funcionou os cinco dias da semana, no horário compreendido entre as 10h00 e as 20h00, com possibilidade de registo de mensagens verbais e escritas".

"Tal como acontecera com os outros instrumentos de recolha de informação, garantiu-se o total anonimato de números e/ou nomes de todas as pessoas que a utilizaram", adianta a Comissão no relatório, frisando que "nenhuma [chamada telefónica] foi gravada".

"No início de cada atendimento, procedia-se a uma introdução ao trabalho geral da Comissão e objetivo do Estudo, bem como à apresentação da profissional da Comissão que estava ao telefone, voltando a reforçar-se como garantia prévia o anonimato de quem contactava (muitos não hesitaram, no final, em revelar o seu nome e incluir o seu contacto telefónico e/ou o endereço eletrónico), a par do sigilo profissional de quem rececionava o telefonema", pode ler-se.

Testemunhos na primeira pessoa. Como manter o anonimato?

O relatório que foi apresentado em fevereiro contém testemunhos dos abusos na primeira pessoa. "Em todos eles, o discurso das vítimas é reproduzido de forma fiel ao modo como foi transmitido, preservando as expressões da oralidade e incorreções gramaticais ou ortográficas".

Porém, "de forma a manter o anonimato e a confidencialidade das pessoas, apenas se modificaram detalhes das respostas, removendo ou alterando informações relativas a locais concretos, a nomes das vítimas, de pessoas abusadoras ou de outras que sejam mencionadas".

Além disso, a questão do anonimato foi aplicada também aos bispos ouvidos pela Comissão Independente. "Ao contrário do que se verifica em vários relatórios de comissões que investigaram abusos sexuais na Igreja Católica noutros países – relatórios nos quais os bispos e as respetivas dioceses são identificadas nos estudos de caso –, no presente relatório a anonimização estendeu-se às hierarquias religiosas e aos espaços geográficos".

"Tal deve-se, antes de tudo, ao compromisso de confidencialidade assumido pelo Grupo de Investigação Histórica perante a Conferência Episcopal Portuguesa e reiterado em cada diocese e congregação. Esta opção foi condição para o acesso aos arquivos diocesanos e dos institutos e congregações religiosas. Acabou por contribuir para um maior grau de anonimização das vítimas, sobretudo no que diz respeito a casos mais recentes e ocorridos em dioceses de menores dimensões. Ainda no plano da anonimização, cabe dizer que a cada estudo de caso foi atribuída aleatoriamente uma letra do alfabeto, que identifica no texto o sacerdote denunciado por abusos sexuais. A escolha da letra não tem assim qualquer relação com o nome ou o apelido do sacerdote", é explicado.